Mariana Abreu
Em um país como o Brasil, que conta hoje com tantas mulheres em posição de destaque na sociedade, fica difícil acreditar que até pouco tempo a população feminina era considerada, ao lado dos índios e dos menores de idade, parcialmente incapaz para atos da vida civil. As mulheres dependiam da concordância dos maridos para, por exemplo, assinar contratos e podiam até mesmo ter o casamento anulado caso não fossem virgens.
As mudanças no Código Penal, de 1940, a partir da Lei 11.106/05, e no Código Civil, de 1916, vieram tarde, principalmente por não acompanharem as alterações no cotidiano feminino. Só em 2003, quando entrou em vigor o novo Código Civil, é que o termo que designa o direito dos pais de criarem seus filhos foi mudado de "pátrio poder" para "poder familiar". E a adesão do sobrenome do marido deixou de ser obrigatória para a mulher. Aliás, agora, os homens também podem usar o sobrenome de solteira da mulher.
Mas, depois de todas essas alterações apontadas como necessárias, seria possível dizer que as leis ainda são machistas e que sua linguagem está impregnada de preconceitos?
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Para a deputada Iara Bernardi (PT-SP), coordenadora da bancada feminina no Congresso Nacional, a resposta é sim. Autora da proposta que alterou o Código Penal, a parlamentar agora aguarda a tramitação de outro projeto de sua iniciativa (PL 4610/01), que propõe o uso de uma linguagem inclusiva na legislação e em documentos oficiais. O texto está pronto pra ser examinado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.
Vocábulos nos dois gêneros
Segundo o projeto da deputada, leis e atos normativos passariam a usar os vocábulos que designam o gênero masculino apenas para se referir ao homem. Dessa forma, toda menção à mulher, nos textos escritos ou falados, deverá ser feita mediante o uso de gênero feminino. Na prática, significa que o uso de "deputados e deputadas", já freqüente nos discursos proferidos no plenário da Câmara, vai ter que se estender para os textos escritos de qualquer legislação e documento oficial. Assim, se a intenção é falar em homens e mulheres, a lei terá de usar vocábulos dos dois gêneros, como servidor e servidora.
De acordo com a proposta original, o artigo 12 da Constituição, que tem a seguinte redação:
"Art. 12 – São brasileiros:
I – natos:
a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros desde que estes não estejam a serviço de seu país;
§ 2º A lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição."
Ficaria da seguinte maneira:
"Art. 12 – São brasileiros e brasileiras:
I – natos e natas:
a) os nascidos e as nascidas na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros e mães estrangeiras, desde que estes e estas não estejam a serviço de seu país;
§ 2º A lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados e brasileiras natas e naturalizadas, salvo nos caso previstos nesta Constituição."
Iara Bernardi argumenta que é necessária "uma mudança de mentalidade e o descondicionamento de profundos hábitos culturais". Para a deputada, é preciso eliminar qualquer prática ideológica que tenha em mente a exclusão dos direitos das mulheres "enraizados em preconceitos disfarçados e ‘inocentes’ condutas do nosso cotidiano".
Conscientização
A simples criação de leis ou convenções antidiscriminatórias, na opinião da deputada, não acaba com a desigualdade entre os sexos, mas funciona como uma conquista. "A língua é um dos elementos essenciais formadores da consciência humana e seu papel é primordial na construção da realidade", diz. Por isso, é que o processo de reconstrução da linguagem seria inevitável para gerar uma nova consciência e práticas sociais baseadas na real aplicação igualitária dos direitos entre homens e mulheres.
Homem, só para homem
Aprovado em 2002 pela Câmara, o projeto de Iara Bernardi retornou do Senado, no ano passado, com uma sensível modificação feita pela relatora, a senadora Serys Slhessarenko (PT-MS). Uma das coordenadoras da bancada feminina na Casa, Serys entendeu que, embora meritória, a mudança proposta pela colega traria um impacto muito grande à legislação brasileira. "Diante da complexidade da nossa língua, o projeto faria ser rescrita praticamente toda a nossa legislação", advertiu a senadora.
"O impacto sobre a construção morfológica e sintática da língua portuguesa (segundo a proposta original) é gritante. Por certo, haveria reação, por todo o país, contra tal imposição lingüística, a despeito de seu futuro de ação incidir apenas sobre normas legais e documentos oficiais", alega a senadora em seu parecer.
A ponderação de Serys acabou sendo acolhida pela deputada Iriny Lopes (PT-ES), atual relatora da proposição na CCJ. O substitutivo do Senado restringe a obrigatoriedade de referência à mulher a todas as vezes em que o substantivo "homem" estiver sendo empregado para designar ambos os sexos. Ou seja, será aplicada a forma masculina e feminina somente quando houver o termo "homem(ns)" se referindo a pessoas de ambos os sexos. Nesse caso, deverá ser aplicada a forma inclusiva "homem(ns) e mulher(es).
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