Vocês não estão vendo que ele está mentindo?
A visita ao governador da Bahia, Luiz Freitas, aconteceu no momento em que se agravava a crise política em seu governo. Poucos dias após a estada da CPI no Rio de Janeiro, se consumaria o rompimento do PDE com o PNV, o que viria a causar uma baixa muito lamentada na comissão, e também no próprio Congresso Nacional: Carlos Costa deixaria de exercer o mandato, com a saída de Júlio Cruz da secretaria que ocupava no governo do estado, e o consequente retorno para a Câmara dos Deputados. Já nas diligências de Juazeiro do Norte, Carlos Costa não poderia participar, deixando uma lacuna que não foi possível preencher.
A atuação de Carlos Costa foi sempre de grande relevância. Com muitos anos de experiência no Ministério Público, tinha conhecimento jurídico bem acima de seus pares, o que fez falta a outros parlamentares da comissão durante suas atividades. Não só conhecia os meandros do Poder Judiciário, como tinha conhecimento das leis e das questões processuais. Sabia se concentrar naquilo que era mais importante, manter o foco, qualidade que faltou à maioria dos demais membros da Comissão. Essa sua característica ficou clara nas diligências em Palmas, que foram lideradas por ele.
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Em Palmas, não houve sessões intermináveis varando a madrugada, e todos os horários de visitas e tomada de depoimentos foram cumpridos. Foi realmente lastimável a perda de uma figura com tantos conhecimentos e talentos necessários para o trabalho de uma CPI.
Em Salvador, Carlos Costa se fez assessorar por alguns membros do Ministério Público, entre eles uma procuradora da cidade de Feira de Santana, chamada Paula Bastos. Em Juazeiro do Norte, duas semanas após, Livio Tomé falava com ela ao telefone e informou aos demais membros da CPI que a ida a Salvador tinha sido muito boa para ele: estava namorando Paula. De fato, ela era muito bonita, e chamou a atenção de todos: morena, alta, cabelos compridos; vestia-se com elegância.
O primeiro dia de diligências em Salvador foi marcado pela presença da “testemunha-bomba”. A imprensa estava inquieta, pois já tinha conhecimento desse depoimento, e todos os repórteres procuravam arrancar algumas informações privilegiadas.
Foi em Salvador que ocorreu o lamentável episódio envolvendo o deputado estadual Benito Almeida e o deputado Lídio Mancini, durante o depoimento de Agrício, a “testemunha-bomba”.
Na lógica dos membros da CPI, os acusados, ao se apresentarem, estariam no mesmo fórum onde foram denunciados, recebendo oportunidade de defesa que equivalia à que fora dada à acusação. Isso não se comprovou na prática. Dificilmente pessoas como Benito Almeida, não sendo culpados, teriam a oportunidade de limpar seus nomes, depois de vê-los expostos na mídia de todo o país. A convocação para depor na CPI equivalia a uma condenação antecipada, por mais que se tenha tentado dizer que não era assim.
Não valeria a pena caminhar um pouco mais na investigação antes de se permitir que determinadas informações, fossem levadas a público?
A certa altura, Agrício contou que tinha estado na casa de Benito Almeida. Um dos deputados lhe disse, talvez sem imaginar o risco que a pergunta trazia consigo:
– Já que você esteve lá, descreva a fachada da casa!
– A casa tem dois andares, é pintada com cor clara, tem porta pequena, janelas de madeira…
Nesse momento, Almeida gritou:
– Mentira, esse cara nunca foi à minha casa. Essa não é minha casa, minha casa não é assim!
Mas os parlamentares não deram muita atenção, fato que levou Almeida ao desespero:
– Vocês não estão vendo que ele está mentindo????
Um dos assessores da CPI, durante a acareação, alertou Lídio Mancini – que fora o responsável por trazer aquela testemunha – de que Agrício havia caído em flagrante contradição. Recebeu como resposta:
– Não vou levantar isso porque a testemunha vai perder credibilidade!
Além de não saber descrever a fachada da casa, Agrício não soube citar o bairro onde ficava, o que deveria ser fácil para alguém que, supostamente, tinha estado com Alves em sua residência. O acusado continuou tentando se fazer ouvir, mas sem sucesso. Os parlamentares não se mostraram muito interessados em permitir que ficasse claro que a “testemunha-bomba” tinha caído em contradição. Talvez por medo de perder o restante de seu depoimento, que em muito se demonstrou verdadeiro.
A impressão que ficou era de que a esta altura não interessava se Almeida era ou não culpado. Mais importante seria salvaguardar a testemunha para a acareação que se daria no próximo dia, com Flávio Almeida, irmão de Benito, acusado de ser sócio de Lúcio Augusto, esse um dos mais famosos traficantes de cebolas do país.
Um delegado da cidade de Flávio Almeida, que havia sido convocado a depor, relatou que realmente pesava sobre Flávio uma gama de acusações de participação no crime organizado, mas que Benito, embora podendo ter sido financiado por seu irmão em campanhas políticas, não só não tinha controle sobre o que ele fazia como também não se envolvia em suas atividades.
Se Benito era realmente culpado, o mal seria menor, se não era, viu sua vida e sua carreira política e como médico escorrendo pelo ralo.
Era muito questionável essa sistemática de especulação e denúncia; ao mesmo tempo em que era o motor que gerava notícias, gerava o interesse da mídia, e em função disto, ganhava importância, tornava-se um instrumento de possíveis injustiças – impossíveis de serem reparadas. Só quem já sentou na cadeira dos depoentes, em uma CPI, sabe o que é ser interrogado naquela arena, na qual muitos dos inquisidores são mestres da oratória, e, ainda por cima, têm o direito à palavra final.
Será que havia outro modo de se trabalhar, algo menos agressivo e ruinoso para tantas pessoas? O barulho da CPI em Salvador, no entanto, estava só começando.
Encontrava-se entre os depoentes convidados o advogado de Lúcio Augusto, que, já de noite, pedia para ser liberado. Estava ali desde as 9 horas da manhã, e, aos 75 anos, achava-se no direito de ser tratado com maior consideração. Além disso, perguntava para quem quisesse ouvir:
– Para que me convidaram? Acham que vou falar alguma coisa? Eu sou advogado do Lúcio, não preciso e não vou falar nada; meu sustento vem dele, que sempre me paga em dia, não sei o que estou fazendo aqui…
Afirmava, também, que Lúcio estava sendo avaliado “para cima”. Seu poder não seria tão grande como a fama que lhe vinha sendo imputada. Depois de fugir da prisão – seria posteriormente recapturado –, Lúcio continuava comandando seu negócio e sendo procurado incansavelmente por policiais. Mas os propósitos deles variavam.
Dois agentes da Polícia Civil da Bahia foram atrás de Lúcio Augusto em Santarém, Pará; Miguel Argenta e Erasmo Miramar. Lá aconteceu uma conversa telefônica interceptada com ordem judicial, na qual ficava claro que os dois estavam “minerando” Lúcio Augusto. “Minerar” é a terminologia que indica extorsão, termo que provavelmente venha de “mineração” em garimpo, algo assim. Naquele caso, os dois policiais haviam sequestrado uma namorada que Augusto havia mandado trazer de Salvador para Santarém, juntamente com o segurança que a escoltava.
A fita não deixava nenhuma dúvida quanto ao ilícito praticado por Miguel e Erasmo. No entanto, o maior alvo atingido por essa gravação foi o Capitão Dinelson. As gravações revelavam que Lúcio Augusto tinha confundido os dois policiais. Achava que pertenciam ao grupo de Dinelson. Quando os dois revelaram que não tinham nada a ver com ele, Augusto começou a contar que já tinha se cansado de ser minerado por ele, que teria lhe tomado U$ 300.000,00 e um imóvel.
Essa afirmação foi o fundamento do pedido de prisão preventiva obtida pela CPI contra Dinelson, o que ocorreu juntamente com as prisões de Miguel e Erasmo. Foi um momento duro. Mesmo um deputado, como Clésio Filho, com anos de experiência na Polícia Federal, e agora já com quase um ano de CPI, revelou não ficar à vontade em situações como aquela momentos antes de anunciar a prisão de Dinelson. Dirigindo-se a Dinelson, mencionou o bom trabalho que ele havia feito à frente da Divisão Anti-Sequestro da polícia, e falou que apesar disso precisaria fazer o que seria feito a seguir.
Os três presos foram encaminhados para outra sala, no mesmo andar do prédio em que ficava o auditório. Nesse momento, a imprensa estava em polvorosa, preocupada em registrar cada momento. Fotógrafos e repórteres procuravam se posicionar para conseguir as melhores fotos, e, quem sabe, alguma declaração dos policiais presos, quando eles deixassem a sala na qual estavam, e embarcassem nos camburões da polícia. Homero Alves determinou que eles não fossem algemados diante da CPI, e foi assim que chegaram nessa sala ao lado, procurando seus telefones celulares para avisar suas famílias do que acontecera, antes que o fato fosse divulgado nos telejornais do horário do almoço.
– Leve minha mãe para dar um passeio, não a deixe assistir o jornal – pediu Miguel a um interlocutor.
Aqueles instantes de profunda consternação foram marcados, também, por serenidade e equilíbrio. Os outros policiais civis, encarregados de escoltarem os presos, se encarregaram de baixar a temperatura:
– Alguém tinha que sair preso daqui, vocês foram os escolhidos!
– Nós já sabíamos que alguém seria preso; agora vamos manter a calma e procurar decidir o que fazer.
– Não quero esse negócio de sair com as viaturas cantando pneu, a imprensa adora isto…
Não havia revolta ou xingamentos, tumulto ou reclamações. Ninguém “jurou” deputados ou quem quer que fosse. Dinelson, Miguel e Erasmo viram o mundo desabar sobre suas cabeças, e as primeiras referências que lhes ocorreram foram suas famílias. Lamento, arrependimento, dor, saudade, um misto de sentimentos que criavam um ambiente de profunda consternação. Um redemoinho parecia se aproximar: como que um sentimento de profunda depressão tomou conta daqueles homens.
Dinelson havia sido preso, e alguns assessores se perguntavam se não estaria faltando mais “substância” às acusações contra ele. Alguns deputados informavam que o Ministério Público dispunha de provas contra ele; Carlos Costa afirmou que nenhum juiz atenderia ao pedido de prisão provisória se não houvesse base factual na justificativa.
Dinelson havia impressionado a todos por sua articulação, inteligência e preparo, e talvez fosse esse o motivo dos sentimentos que havia a seu favor. Pairava no ar o sentimento de que uma injustiça poderia ter sido cometida.
Informado dos acontecimentos na sala ao lado, Valdo Antunes afirmou que não levava jeito para enfrentar situações como aquela. Ele, como sempre, revelava-se humano, cordial e equilibrado.
À medida que o trabalho continuava, ficavam para trás tais especulações, e os novos depoimentos transportavam as preocupações e atenções dos deputados para novas questões. Enquanto isso, culpado ou inocente, Dinelson estava indo para a prisão juntamente com Miguel e Erasmo, e suas famílias estavam atordoadas. Se a CPI parasse para chorar a dor de seus condenados, o trabalho não iria adiante, mas situações como aquela certamente povoavam as mentes de alguns deputados, quem sabe produzindo algum remorso que lhes pesava por um pouco os ombros.
Dinelson iria passar a noite na prisão.
Por mais que afirmasse não criar denúncias e não prender ninguém, a CPI sabia de sua influência sobre os responsáveis por atender seus pedidos. Sobre um pedido de prisão provisória emitido pela CPI pesava a pressão do poder da comissão e da cobertura da mídia. Um promotor de justiça que fizesse o mesmo pedido sem esses dois elementos teria muito menor chance de consegui-lo. Por mais que o Judiciário tenha se pautado pelos limites legais, a pressão política num caso desses o levava a explorar todo o universo das possibilidades disponíveis para atendê-lo. Teria um promotor (sem poder e sem mídia) a mesma acolhida que a CPI?
Dizer que uma CPI não cria denúncia é imaginar que sua existência dependa do denunciante. Na verdade depende da exposição da mídia, e de sua abordagem. Laureano já havia denunciado o esquema do crime organizado ao Ministério Público – alguém tinha ouvido falar? Alguém havia levado em consideração?
A CPI não só criava as denúncias por meio de seu potencial de mídia, como estabelecia juízo em muitas situações. Esta percepção só ocorria, esporadicamente, a alguns dos membros da CPI. Mas isso não ficou estabelecido com clareza na percepção dos parlamentares, e não gerou nenhuma preocupação. Alguns editoriais de jornais chegaram a denunciar o abuso de poder ou o exibicionismo de alguns dos membros da comissão, mas não identificaram essa questão.
O dia seguinte da prisão de Dinelson foi o último de trabalho da CPI em Salvador. Flávio Almeida seria ouvido por horas a fio. Por volta de 20 horas, Kátia Sampaio assumiu a presidência dos trabalhos, enquanto João Francisco interrogava o acusado. Ele tentava, sem sucesso, estabelecer uma prova contra Almeida, alegando que em sua declaração de Imposto de Renda, ele guardava R$ 600 mil em casa. Ao ser questionado sobre isto, Almeida respondeu que fazia isso porque não era proibido. A resposta não agradou a João Francicso, que, no entanto, não conseguia se aproveitar desse fato admitido por Flávio Almeida para, de alguma maneira, comprometê-lo com algum ilícito.
Francisco parecia um palestrante em dificuldades para dar fim a sua palestra. Kátia Sampaio pediu-lhe que tomasse apenas mais cinco minutos e encerrasse seu interrogatório. Francisco continuou por bastante tempo, e Kátia, duas vezes mais, alertou-lhe quanto ao tempo. Neste momento, Francisco, bastante irritado, alegou que precisava de mais tempo. Kátia disse que já lhe havia dado o suficiente. Francisco descarrilhou:
– Vou parar porque tem gente aqui acobertando traficante… – levantou-se, bateu o microfone na mesa e saiu.
Outro deputado prosseguiu com o interrogatório. Poucos minutos após esse incidente, Carlos Costa pediu um aparte, no qual aprovou a atitude de Kátia e reprovou a de Francisco. Nessa hora, Kátia baqueou. Ela havia permanecido impassível, havia exigido respeito por parte de João Francisco, e continuado na presidência. Mas quando Costa fez seu comentário, equilibrado como sempre, e importante para o bom andamento e continuidade dos trabalhos, Kátia viu seus olhos marejarem. A seguir, levantou-se e saiu da sala, num misto de raiva de Francisco e de si mesma – por estar chorando. Abriu a porta do auditório e se retirou para o hall dos elevadores, onde havia um banheiro. Do lado esquerdo, encostado na parede conversando com alguns repórteres, estava Francisco. Kátia partiu em sua direção com o dedo em riste exigindo respeito, e ele se calou. Deve ter agido assim mais pela surpresa de ser confrontado daquela maneira.
A voz de Kátia estava alterada, e os repórteres correram para tentar cobrir o incidente, mas tudo foi muito rápido. Kátia foi para o banheiro e, depois, saiu de lá para o hotel sem dar entrevistas. Decidiu entrar com uma representação contra Francisco; ele havia ultrapassado os limites.
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* Auditor concursado do Tribunal de Contas da União (TCU), presidiu a União dos Auditores Federais de Controle Externo (Auditar), mantém o blog http://www.ziller.com.br/blog/ e preside o Instituto de Fiscalização e Controle (IFC).
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