Henrique Ziller*
Capítulo 1
Nada de pizza: 1.150 indiciados!
Parecia haver um espírito diferente na Câmara dos Deputados naquela manhã. Talvez fosse a proximidade da conclusão da CPI do Tráfico de Cebolas, que tanto tinha recebido atenção da mídia ao longo de mais de um ano. No corredor dos plenários das comissões havia painéis eletrônicos programáveis, recém-instalados, do tipo comum em bancos ou em lojas de atendimento das companhias telefônicas. As letras vermelhas em movimento indicavam a reunião que aconteceria em cada sala, e o horário. Não seria preciso procurar a sala da CPI, em função do movimento intenso, e podia-se identificar o rosto de vários jornalistas que durante tantos meses estiveram ali em busca de matéria-prima. Mas, nada que se comparasse com as reuniões ordinárias e as audiências, principalmente, pois não haveria mais nenhuma surpresa que pudesse ter relevância jornalística. Da parte dos parlamentares, naquele último dia parecia existir mistura de alívio com saudade da movimentação toda, dos trabalhos realizados, da convivência com seus pares.
Durante os dias que antecederam a entrega do relatório, na expectativa de preparar suas matérias, os repórteres já haviam vasculhado cada fonte que lhes pudesse dar informações sobre o seu conteúdo, e, sobretudo, os nomes dos indiciados. Assessores, secretários, consultores e, principalmente, os próprios parlamentares já haviam sido abordados à exaustão, para revelar quem seriam. Afinal, para fugir da pecha, os membros da CPI do Tráfico de Cebolas entenderam que era importante pedir o indiciamento do maior número possível de pessoas: 1.150! A imprensa não poderia sequer mencionar o termo pizza.
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Nos dias que precederam a entrega do relatório final, os gabinetes dos parlamentares, as salas dos consultores designados, e a sala da CPI, no segundo andar do anexo II da Câmara dos Deputados, viveram dias de muito trabalho, em ritmo frenético. Por duas vezes o relator adiou a entrega do documento final, esperando correções de última hora. Além disso, em reuniões fechadas, os parlamentares decidiam sobre casos mais delicados, discutiam a conveniência de alguns indiciamentos.
Durante uma destas reuniões de última hora, realizada no Espaço Cultural da Câmara dos Deputados, o deputado Lineu Júnior ligou para seu gabinete:
– Por que é que ninguém foi indiciado em Santa Catarina? – falou, sem ao menos perguntar quem estava do outro lado da linha.
A maior parte dos parlamentares havia ficado responsável pelo relatório referente a seus próprios estados. A Lineu coube a tarefa de elaborar o relatório, e pedir os respectivos indiciamentos, a partir das diligências realizadas em Santa Catarina. A verdade, no entanto, é que seu estado apresentava um quadro um pouco diferente dos demais, em função do tipo de trabalho que havia sido realizado por lá. As pessoas que foram ouvidas já haviam sido condenadas pela Justiça, ou então já estavam com inquérito instaurado. Não seria possível indiciá-las novamente. Em Santa Catarina, inclusive, não havia sido determinada nenhuma quebra de sigilo, o que era raro em diligências. Mas isso se devia ao fato de que todas as informações necessárias já constavam dos processos preparados pela Polícia Federal.
Lineu Júnior continuava com o gabinete na linha enquanto dizia aos colegas que não era possível indiciar ninguém. Os parlamentares não estavam satisfeitos com aquela situação e tentavam encontrar alguém para constar do relatório. Perguntaram se não seria possível indiciar o Major Bragança, Bráulio Bragança.
Esse Major Bragança havia sido apontado por uma testemunha, que aparecera mascarada ao depoimento à CPI, a quem se deu o codinome de Peralta, como sendo o chefe do tráfico de cebolas num quartel de Criciúma. Peralta era o próprio ForrestGump. Seu depoimento o colocava em alguns dos locais e situações mais importantes do tráfico, que haviam sido apurados pela CPI. Peralta teria participado, pessoalmente, ao sabor do acaso, de pelo menos três situações relevantes para as investigações da CPI, o que era difícil de se acreditar, pois os fatos e seus personagens não guardavam nenhuma relação entre si. Era de se duvidar de que ele tivesse vivenciado tais experiências. Bragança não inspirava confiança, mas o testemunho de Peralta como única fonte de indiciamento para ele era descabido. Não era possível fazer o indiciamento com base num depoimento com muitas evidências de fraude.
Lineu Júnior desligou o telefone não muito satisfeito.
Peralta aparecera na Câmara dos Deputados carregado a tiracolo por um repórter, Duílio Martins. Faziam uma dupla meio brancaleone. Martins era uma figura um tanto incômoda, em função de sua agitação.
Pelo que havia sido possível apurar, Peralta, havia, de fato, vivido no quartel da Polícia de Criciúma por alguns meses, e, possivelmente, presenciado algumas operações ilícitas relacionadas com cebolas.
Duílio, ao conhecê-lo, acreditou ter encontrado sua grande reportagem e, fazendo uma juntada de fatos vivenciados por Peralta com outros que, ao que tudo indica, conhecia por informação, produzira uma história que revelava alguma consistência, mas, talvez na ânsia de produzir uma grande reportagem, adicionou a ela elementos estranhos, acabando por torná-la um tanto inverossímil. Seu grande sonho era fechar exclusividade com a maior revista nacional de circulação semanal. E sonhava com a foto de Peralta, mascarado, na capa! Não conseguiu nada disso; na verdade, depois do depoimento de Peralta, apenas um jornal local deu uma pequena nota, sem nem mesmo dar qualquer crédito a Duílio.
Apesar de os fatos serem relativos a Santa Catarina, Peralta foi ouvido em Juazeiro do Norte. Isso porque ele e Duílio apareceram depois que as investigações em Santa Catarina já tinham sido realizadas, e, para ouvi-lo, a comissão achou por bem fazê-lo nas diligências de Juazeiro do Norte, levando Duílio e Peralta para lá.
O que Duílio conseguiu, de sobra, foram dores de cabeça. Peralta queria proteção da Polícia Federal, pois se julgava perseguido e temia ser morto. Desde o momento em que os dois chegaram à Câmara dos Deputados, criaram tal mistério e tensão com sua história que a comissão procurou tratá-los com cuidado e proteção policial. Duílio afirmava que também estava sendo perseguido. A Polícia Federal concordou em dar proteção ao Forrest, já desde o embarque de Brasília para Juazeiro do Norte, onde ele seria ouvido. Mas a situação começou a se complicar porque não havia verba para pagar o hotel onde Peralta ficou confinado após seu depoimento, e quem acabou arcando com as despesas foi o deputado Lívio Tomé, que, depois de dois dias, disse que não mais poderia continuar pagando a conta.
Para piorar a situação, Peralta revela-se rebelde contra as imposições da proteção fornecida pela Polícia Federal: queria descer do quarto do hotel e passear pela cidade. Reclamava da comida, do quarto, do policial que tomava conta dele, falava alto e xingava. Duílio se descabelava. Depois de muitas idas e vindas a Polícia Federal decidiu suspender a proteção.
Duílio acabou conseguindo levá-lo para Brasília, a fim de tentar incluí-lo no programa de proteção a testemunhas da Polícia Federal, mas Peralta ficou pouco tempo por lá. Logo brigou com os policiais. Ligava para o gabinete de Lineu Júnior e fazia inúmeras exigências, gritava, xingava. Depois que saiu do programa, chegou a tentar encontrar-se com alguns parlamentares na Câmara, sem sucesso.
Peralta, em seu depoimento realizado em Juazeiro do Norte, fez com que os presentes acreditassem que tivesse passado por situações de muita humilhação sofrida da parte de policiais e outras autoridades, mas isso não lhe angariava simpatia. Pelo contrário, era o que se pode chamar de chato.
Depois de se decepcionar com os resultados de seus esforços em Juazeiro do Norte, e passar novamente por Brasília para tentar incluir Peralta no programa de proteção a testemunhas da Polícia Federal, Duílio voltou para Santa Catarina. De vez em quando ligava para o gabinete de Lineu:
– Estou sendo perseguido!
– Tem certeza, Duílio?
– Claro, não sou doido. Fala com o deputado aí que eu preciso de ajuda! Se ninguém me ajudar vou acabar morto!
Era necessário ter paciência para conversar com ele, mas, na verdade, não havia muito a fazer. Ninguém nem ao menos sabia se o repórter precisava mesmo de ajuda. Ele chegava ao ponto de chorar ao telefone.
A impressão final foi de que, Peralta serviu, como muitos outros depoentes, para tomar tempo de depoimentos mais importantes, o que era negativo, mas, por outro lado, para criar aquele clima tenso, às vezes de suspense, que agradava a alguns parlamentares: seu depoimento foi feito em sessão pública, e Peralta estava encapuzado. Poucas situações causavam tanta sensação entre os presentes, em especial a mídia, quanto o depoimento de um encapuzado. Em alguns casos, como no de Peralta, esse procedimento era absolutamente inócuo. Todos os que foram por ele acusados, e que compareceram a Juazeiro do Norte para depor e, posteriormente, serem acareados com ele passar, conheciam sua identidade!
Durante um pequeno intervalo em seu depoimento, Peralta estava sentado na cadeira reservada às testemunhas, e alguns deputados andavam por perto, sem lhe dirigirem a palavra. Naquele momento, já surgiam algumas dúvidas sobre seu depoimento. Homero Alves já havia comentado com um colega:
– Estranho… o que ele fala é exatamente igual à história narrada neste papel! – referindo-se ao documento preparado por Duílio e que havia sido distribuído a todos os membros da comissão.
O outro deputado argumentou:
– Bom, se ele está falando a verdade, tem mesmo que ser igual.
– Não!!! Uma pessoa, quando conta fatos que presenciou, sempre acrescenta ou omite detalhes, erra em um ponto ou outro. Ele não deixa de mencionar nadinha de nada do que está no documento, e tudo na mesma ordem dos fatos, nomes… E é um calhamaço com sete páginas!
Peralta serviu para ajudar um pouco a manter o interesse do público na CPI, mas não deu a Duílio o resultado pelo qual tanto lutara – foram meses trabalhando com Peralta, (re)construindo a sua história. Para Lineu, também, não deu um bom resultado. O Major Bragança estar envolvido no tráfico de cebolas, mas basear seu indiciamento no depoimento de Peralta – o único fundamentação de que a CPI dispunha para esse fim – era muito arriscado.
Lineu conformou-se. Mas, entre 1.150 indiciamentos, ele não havia sido responsável por nenhum, e temia que este fato pudesse ter repercussão negativa. Bragança não poderia ser indiciado, e não havia outra solução.
Mas, a rigor, isso não fazia diferença nenhuma. Sua atuação havia sido destacada, e entre os resultados da CPI tinha-se o mapa do tráfico de cebolas, que havia sido traçado com detalhes nos últimos 18 meses. A riqueza dos depoimentos, das informações coletadas nas viagens dos parlamentares, o trabalho conjunto com a Polícia Federal, as diligências, os dados disponíveis por intermédio das quebras de sigilo, enfim, tantos elementos permitiram que se conhecesse com profundidade as entranhas daquela atividade.
Apesar desta riqueza de informações, que poderia determinar que a ênfase do relatório se estabelecesse sobre as questões estruturais e conjunturais do tráfico, o ambiente político demandava que seu conteúdo versasse, principalmente, sobre o indiciamento de criminosos.
Ao longo dos meses, foi estarrecedor constatar o elevado número de autoridades que se associavam aos traficantes. Parlamentares nos níveis municipal, estadual e federal; magistrados dos Estados e federais; policiais civis e militares; além de toda uma gama de empresários que se dedicavam a prestar serviços aos traficantes, sem se envolverem diretamente na comercialização de cebolas.
Essa demanda por indiciamentos, conquanto absolutamente indispensável, pois se tratavam de criminosos, viria a se revelar, por certo, completamente incapaz no enfrentamento do problema a longo prazo. Todos sabiam, e até mesmo a imprensa exploraria o fato de que as pessoas que fossem, eventualmente, condenadas em função dos indiciamentos propostos pela CPI, seriam rapidamente substituídas por outras que não deixariam a engrenagem do tráfico de cebolas parar de funcionar.
Para exemplificar este problema, alguns membros da Polícia Federal constatavam que a queda do grande traficante de cebolas colombiano, Angel Esteban, no início dos anos 90, havia criado o ambiente propício para o surgimento de um sem número de pequenos empreendedores, criando uma teia de negócios muito mais difícil de ser combatida do que o império que Angel antigamente comandava e centralizava.
Os parlamentares concentraram seus esforços nos indiciamentos.
A despeito de alguma preocupação inicial de Lineu, a boa repercussão do relatório final, junto à imprensa, dissipou-lhe qualquer cuidado. A CPI tinha colhido bons frutos de seu trabalho, e a imprensa, majoritariamente, o reconhecia. A atuação de Lineu havia sido destacada, sua presença constante e corajosa e, ao final, nada o desabonara.
O relatório seguiu então o seu curso. Após a divulgação detalhada na imprensa, diversos órgãos e, principalmente, o Ministério Público, receberam o relatório e os documentos que o subsidiavam. A CPI terminara. Os parlamentares foram para casa descansar, pensando em o que fazer a seguir. Alguns deles se candidatariam às prefeituras de suas cidades, outros pensavam na reeleição, dois anos depois.
Uma novela política, em capítulos – Introdução
* Auditor concursado do Tribunal de Contas da União (TCU), presidiu a União dos Auditores Federais de Controle Externo (Auditar), mantém o blog http://www.ziller.com.br/blog/ e preside o Instituto de Fiscalização e Controle (IFC).
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