Sylvio Costa
O comportamento dos candidatos a presidente durante o primeiro debate entre os presidenciáveis, promovido ontem à noite pela TV Bandeirantes, colaborou pouco para criar momentos de fato interessantes. Muito respeitosos, eles pareciam unidos por um código tácito: evitar polêmicas entre si, liberando todas as energias para críticas ao grande ausente, o presidente Lula.
Assim, o clima foi mais de troca de gentilezas e de elogios mútuos do que de embate de idéias. Rompendo com o modelinho sonolento que predominou na maior parte das mais de duas horas de debate, a senadora Heloísa Helena (Psol-AL) terminou sendo o destaque da noite.
Ora agressiva, ora terna, mas sempre com firmeza, ela soube contornar a rigidez das regras do programa para transmitir alguns dos sentimentos-chave que sua candidatura pretende catalisar: a rejeição à política econômica implementada pelo PSDB e pelo PT, especialmente no que diz respeito aos altos juros; o combate à corrupção e ao crime organizado; o compromisso com os mais pobres; e a valorização da participação social e política da mulher.
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Heloísa Helena também proporcionou algumas das raras situações em que se explicitaram divergências entre os candidatos. Foi o que ocorreu, por exemplo, quando ela se dirigiu a Geraldo Alckmin (PSDB) e afirmou que tanto o partido dele quanto o PT fracassaram na área da segurança pública. "Poderia ter sido feito, os senhores não fizeram", afirmou em tom de censura, sem que Alckmin – sempre formal e distante – respondesse à altura.
A questão da segurança
A segurança pública foi um dos principais temas do debate. O assunto veio à tona no segundo bloco, quando José Maria Eyamel (PSDC) perguntou a Alckmin: "Durante o governo de seu partido nasceu e se desenvolveu o PCC. O que o senhor não fez para que isso acontecesse?".
Alckmin disse que em sua gestão no governo de São Paulo tirou "90 mil criminosos das ruas" e reduziu a taxa de homicídios. Também enalteceu o contingente da Polícia Militar paulista: 130 mil homens, mais – observou ele – que os efetivos da Aeronáutica e da Marinha. Prometeu ainda implantar o sistema de regressão penitenciária para os presos que cometeram crimes leves e endurecer o regime para os líderes do crime organizado.
Não chegou, contudo, a responder à pergunta de Eymanel. Este, na réplica, defendeu a criação do Ministério da Segurança Pública, a implantação de um Plano Nacional de Segurança Pública e a reforma do sistema prisional, de modo que as cadeias não sejam apenas "depósitos de presos".
No quarto bloco, o tema voltou a ser discutido quando o jornalista Franklin Martins também questionou Alckmin sobre a situação da segurança pública em São Paulo, estado que ele governou durante quase seis anos: "As coisas deram errado porque seu governo fez tudo certo?". Heloísa Helena foi encarregada de comentar.
Alckmin responsabilizou o governo federal pelos problemas de segurança do estado, que, segundo ele, estariam associados principalmente à falta de combate adequado ao tráfico de drogas, ao contrabando de armas e à lavagem de dinheiro, crimes que cabe à União reprimir.
Foi quando Heloísa Helena entrou em cena criticando tanto o PT quanto o PSDB pelo tratamento dispensado à questão da segurança. "O PT e o PSDB fazem um jogo demagógico jogando a responsabilidade de um para o outro", afirmou.
Numa crítica indireta ao candidato do PSDB, ela acrescentou: "Para analisar a situação de segurança pública de São Paulo, basta olhar os jornais. É o caos. Foram 12 anos de irresponsabilidade do PSDB e do PT".
A tese de Heloísa Helena é que os dois partidos canalizaram somas absurdas de recursos para a especulação financeira, via pagamento de juros da dívida, e deixaram de cuidar de questões fundamentais, como a segurança. É uma tese-curinga que vale para tudo, para explicar os problemas da saúde, da educação, do Nordeste… mas que tem inegável poder persuasivo.
O ex-governador justificou-se com o argumento de que "o Congresso Nacional atual e o presidente Lula amoleceram com o crime organizado". Segundo ele, "uma lei nova, votada pelo atual Congresso" dificultou a colocação de líderes do crime organizado no chamado regime disciplinar diferenciado (RDD).
Impropriedades para todos os gostos
Mediado pelo jornalista Ricardo Boechat, o debate teve seus melhores momentos no quarto bloco, quando os jornalistas Franklin Martins, Joelmir Beting e José Paulo de Andrade passaram a fazer as perguntas. Até então, os candidatos fizeram indagações entre si (segundo e terceiro blocos) e responderam a uma pergunta comum, sorteada entre questões formuladas por internautas.
Ainda assim, um dos entrevistadores – Andrade – cometeu uma gafe grosseira ao se referir ao "pernambucano Celso Furtado". Furtado, o economista brasileiro de maior renome nos meios acadêmicos estrangeiros, nasceu na Paraíba.
Em termos de impropriedades, Luciano Bivar (PSL) e Eymael travaram uma disputa árdua e particular. O primeiro, bem-sucedido empresário pernambucano, abusando dos erros de concordância. O outro, de um tom grandiloqüente que beirava o folclore.
"Enquanto houver um corrupto desviando verba pública, não descansarei", afirmou. "Quando estiver com a faixa presidencial no peito, direi aos brasileiros: ‘Agora é comigo’", prenunciou, ao fazer suas considerações finais.
Antes, havia demonstrado que a linguagem televisiva não é o seu forte ao tentar explicar as bases de seu plano de governo. "Meu plano de desenvolvimento tem cinco vetores. O primeiro é a reforma tributária", disse, desfiando em seguida uma sucessão de adjetivações e lugares comuns. Seu tempo acabou antes que passasse ao segundo "vetor".
Questionado sobre seus planos para a Amazônia, fez a defesa genérica do crescimento econômico do país sem apresentar uma só proposição concreta para a região. A sensação de que falta algo em seu plano de governo aumentou quando ele deixou escapar esta: "Minha proposta central é a conquista da Presidência".
Lula e reforma tributária
A Eymael, no entanto, deve-se creditar a boa sacada em relação à ausência de Lula. "O presidente nunca ouve nada, não vê nada, provavelmente não sabia que teria debate", provocou o candidato do PSDC.
Cristovam Buarque (PDT) disse que, ao faltar ao debate, o presidente Lula descumpriu um dever democrático. "O eleitor tem o direito de saber o que pensam os candidatos olhando no olho", afirmou o pedetista.
Heloísa, a primeira a falar da ausência de Lula (cuja cadeira, como previsto, foi deixada vazia pela Bandeirantes), qualificou de "arrogância" a atitude de Lula. De acordo com Alckmin, "Lula teria que estar aqui para prestar contas porque se omitiu na questão da segurança".
Outro tema recorrente, ao longo do debate, foi a reforma tributária. Bívar defendeu a instituição de um imposto único, com alíquota de 1,7%, para substituir todos os impostos federais, como estratégia para acabar com a informalidade e gerar empregos. Não demonstrou a viabilidade da sua proposta nem foi questionado a respeito.
Todos os demais pregaram a mudança do sistema tributário de modo genérico. Foi o que fez, também, Heloísa Helena. Mas, mesmo assim, ela brilhou mais que seus concorrentes ao pôr em dúvida a promessa de Alckmin de encaminhar ao Congresso um projeto de reforma tributária já em janeiro de 2007, caso seja eleito. "Fernando Henrique teve oito anos de mandato e não fez a reforma tributária", lembrou a senadora.
Ela e Alckmin assumiram um compromisso comum: acabar com a Desvinculação dos Recursos da União (DRU), que assegura ao governo autonomia para utilizar livremente 20% das verbas federais.
O estilo de cada um
Se Bivar e Eymael transitaram entre o folclórico e o irrelevante, o senador Cristovam Buarque foi definido por um dos entrevistadores (José Paulo Andrade) como o autor "do samba de uma nota só", pela insistência com que defende uma revolução na educação. Ele reagiu na primeira oportunidade: "Isso não é samba de uma nota só. Isso é o samba da nota fundamental".
Sem o formalismo e a frieza de Alckmin ou a inconsistência de Bivar e Eymael, Cristovam deu, entretanto, seus escorregões. Ao falar do turismo, retornou ao samba: "A causa pela qual os turistas não vêm é, sobretudo, a falta de educação do Brasil. Faz parte do turismo ter uma população que fale idiomas".
Ao defender o seu Bolsa Escola, implantado quando governou o Distrito Federal (1995-99), terminou atirando pedras em um dos mais festejados programas do governo Lula, o Bolsa Família. "É uma deformação do Bolsa Escola", afirmou, mais parecendo o professor universitário em atividade do que o candidato que até agora não foi capaz de passar de 1% das intenções de voto.
O professor voltou a atacar após mais um discurso de Heloísa Helena prometendo a redução imediata e radical dos juros, se eleita. "Não é a taxa de juros que considero meu maior compromisso. O meu maior compromisso é zerar a taxa de analfabetismo", rebateu Cristovam.
No tom enfático que lhe é peculiar, Heloísa havia prometido reduzir os juros, como parte de uma nova estratégia de desenvolvimento. "A meta de crescimento econômico do país não será essa tragédia de 3,5% (ao ano). O meu Banco Central será autônomo, independente do capital financeiro", afirmou ela.
"Sou engenheiro, mas acabei me especializando em economia. E meus 40 anos de estudo de economia ensinaram que não se pode prever qual será a taxa de juros daqui a seis meses", replicou Cristovam, acrescentando que isso depende de fatores variáveis como guerras externas, pressões internacionais etc. E ressaltou seu compromisso com a educação e a valorização do magistério.
Na tréplica, Heloísa disse que seu compromisso com a educação é que a leva a defender a queda dos juros. Lembrando que o Brasil "pagou quase R$ 500 bilhões em juros em quatro anos", ela disse que essa política monetária tem como principal efeito engordar os lucros dos bancos. E completou: "Não quero acabar com a Bolsa Família, mínima. Quero acabar com a Bolsa Banqueiro".
Alckmin mostrou que fez o dever de casa direitinho. De olho na população pobre que forma a principal base de sustentação da candidatura Lula, prometeu manter o Bolsa Família. Cortejando os agricultores e a classe média, anunciou que fará a reforma agrária sem tolerar invasão de propriedade. Aproveitando seu ponto mais forte, relembrou sua experiência administrativa e o elevadíssimo índice de aprovação que tinha ao deixar o governo de São Paulo (69% de ótimo e bom, ressaltou).
Não bastassem as alfinetadas de Heloísa, porém, seu maior problema foi o estilo travado, pouco à vontade, diante da câmera. À qual se dirigiu no final para entoar, como se fazia antigamente, "ao senhor, à senhora".
Por tudo isso, brilhar mesmo só quem conseguiu foi Heloísa Helena. Mesmo distante de demonstrar que tenha um programa sólido de governo, ela produziu algumas frases que mostram, definitivamente, que a noite foi dela. Alguns exemplos:
"Vou assentar 1 milhão de famílias no campo por ano, o que terá um impacto de R$ 1,27 bilhão. O que fizeram até agora foi favelização rural, sem dar crédito, infra-estrutura, nada. Vou fazer a reforma agrária que os governos do PSDB e do PT não fizeram".
"Me sinto representando os homens e mulheres de bem deste país, que têm vergonha na cara e amor no coração".
"Quero ter a honra de ser a primeira mulher brasileira a ser presidente para, com a mão firme de mãe, mulher e trabalhadora, ajudar o povo brasileiro a fazer deste país uma pátria soberana".
Concorde-se ou não com a senadora, é difícil negar que ela sabe usar bem as palavras para capturar os eleitores. No final do debate, aliás, entrevistada pela própria Band, ela foi explícita: "Peço a cada uma das pessoas que já decidiram votar em mim para conseguirem dois votos, e estaremos no segundo turno".
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