Ricardo Ramos e Edson Sardinha |
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Em meio à tempestade de acusações contra a administração federal, um dos responsáveis por alimentar as páginas dos jornais com notícias que tornaram o ambiente político nebuloso para o Palácio do Planalto sai em defesa do governo: o procurador-geral da República, Cláudio Fonteles. Depois de pedir a abertura de inquérito criminal contra o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, e o ministro da Previdência, Romero Jucá, Fonteles diz que o governo Lula inovou na interação do Executivo com o Ministério Público e no combate à corrupção. A 30 dias de deixar o cargo, o procurador-geral afirma que o atual momento político, marcado por uma série de suspeitas de irregularidades na administração pública, revela que as investigações estão sendo levadas adiante, que a corrupção, pela primeira vez, é combatida sistematicamente no país e que falta critério aos partidos políticos na definição dos candidatos a mandato eletivo. Leia também “O sistema não está corrupto de hoje. O que o sujeito fez foi cortar aqui (apontando para o antebraço). O pus estava ali havia anos. A ditadura alastrou o pus. O silêncio do ditador impedia que você questionasse, e esse pus foi se acumulando. O que houve – e esse dado é muito positivo no atual governo – foi permitir essa interação entre as instâncias do governo que investigam e nós. Quando aconteceu isso pela primeira vez no país, o pus surgiu”, exemplifica. “Você não pára de ver a gente (do Ministério Público) atuando junto com as instâncias do governo federal. O governo Lula permitiu isso”, complementa. Apesar de enaltecer a atuação de órgãos do Executivo, como a Polícia Federal, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e a Receita Federal, no combate à criminalidade, Fonteles critica, indiretamente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva por manter no governo duas autoridades sob investigação. No mês passado, o procurador-geral pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a abertura de inquérito contra o ministro da Previdência, suspeito de ter cometido irregularidade na aplicação de um financiamento bancário, e o presidente do Banco Central, sobre o qual pesam as suspeitas de crime eleitoral e contra o sistema financeiro e de evasão de divisas. “Ou ele (Lula) chega e pede a essas pessoas que estão sendo investigadas que desfaçam imediatamente a pretensão do procurador-geral, por meio de um habeas corpus, para trancar a investigação – o que é possível no tratamento jurídico – ou as afasta cautelarmente e indica outro nome para o cargo”, sugere. Ao contrário de seu antecessor, Geraldo Brindeiro, que foi reconduzido ao cargo três vezes, Fonteles conta os dias para deixar o amplo gabinete da cobertura do moderno prédio do Ministério Público Federal em Brasília. Um grupo suprapartidário de senadores chegou a lançar, em vão, um movimento em favor de sua recondução ao posto, mas o procurador-geral declinou o convite. “Agora vou descansar por três ou quatro meses e sair pela vida”, diz. Na semana passada, Fonteles entregou ao presidente uma lista com as indicações de três candidatos à sua vaga: o vice-procurador-geral da República, Antônio Fernando Souza, o corregedor-geral, Wagner Gonçalves, e a procuradora federal de Direitos do Cidadão, Ela Wiecko Volkmer de Castilho. Nos dois anos em que esteve no cargo, Fonteles causou polêmica ao levar adiante investigações contra o governo que o indicou e ao reiterar seu posicionamento contrário ao aborto, mesmo em casos de anencefalia (em que o feto não possui cérebro). Membro leigo da Ordem de São Francisco, o procurador-geral foi ao STF esta semana contestar a realização de pesquisas com células-tronco embrionárias, autorizadas pela Lei de Biossegurança e consideradas esperança de cura para pacientes de doenças generativas. “Na democracia não há cidadão acima de qualquer
Os parlamentares têm direito a serem julgados pelo STF. Esse foro privilegiado cria algum tipo de distorção? Não, distorção, não. O foro privilegiado, no campo criminal, está consagrado constitucionalmente. Então, enquanto ele estiver na Constituição, nós temos que respeitar essa diretriz constitucional. Houve uma evolução na medida em que nós podemos, de logo, propor a investigação, cabendo à pessoa acusada se valer da paralisação da investigação. Outrora não. Nós tínhamos que pedir licença e essa coisa se arrastava. Essa emenda constitucional (EC 35/01), a meu juízo, foi uma evolução, na medida em que transfere o ônus para quem é investigado ou acusado. O eleitor não fica muito exposto? Que mecanismo ele tem para avaliar os seus representantes na vida política? Nenhum. E o próprio partido fica exposto. Se ele quer criar quadros sérios e competentes, tem de estabelecer processo de filtragem, não é possível deixar de fazer isso. “Nesses dois últimos anos, passou a haver um embate O senhor considera preocupante esse número de 102 congressistas com questionamentos judiciais no STF? Não, preocupante, não. Faz parte. Nós também temos denunciado pessoas no poder Judiciário. Isso está dentro dessa luta muito forte contra a corrupção. Nesses dois últimos anos, passou a haver um embate às claras no país contra todo um quadro de corrupção que vem se acumulando há bastante tempo. Voltando à questão do foro privilegiado. Por exemplo, se o próprio Ministério Público de 1ª instância pudesse oferecer denúncia contra prefeitos ou deputados… Na parte penal não tem jeito, porque só com reforma constitucional. Agora, para as ações de improbidade, as ações populares, eu considero o foro privilegiado flagrantemente inconstitucional. Porque essas ações não têm natureza penal. Portanto, não há previsão constitucional para elas. O Supremo disse isso claramente ao eliminar a Súmula 394 (com ela, em 1997, o STF pôs fim ao foro privilegiado para o político sem mandato), que ali o fazia por uma interpretação constitucional. A lei não pode vir e alterar uma interpretação constitucional. No caso das ações de improbidade, ação civil pública e ação popular, quando se questiona não um crime mas uma infração administrativa – a condução do negócio público pelo prefeito, deputado, senador, procurador-geral, por quem quer que seja – aí o poder tinha de estar no primeiro grau. Porque, nesse caso, a sanção será política. Você vai ressarcir o dano causado e ficar impedido por oito anos de exercer a função pública. Até porque a maioria das acusações contra parlamentares envolve crimes contra a administração pública, a ordem tributária e a legislação eleitoral. É verdade. Pode se caracterizar crime, mas, às vezes, também não é. Mas o universo na área não criminal abrange mais fatos do que na área criminal. “Ou ele (governo) chega e pede a essas pessoas que estão sendo investigadas que desfaçam imediatamente a pretensão do procurador-geral, por meio de um habeas corpus, para trancar a investigação – o que é possível no tratamento jurídico – ou as afasta cautelarmente e indica outro nome para o cargo” O senhor recebeu recentemente críticas por parte de membros do governo por causa do pedido de abertura de inquérito contra o ministro da Previdência, Romero Jucá, e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. A manutenção dessas autoridades – apontadas como suspeitas – em cargos tão importantes para o país não cria uma imagem ruim para as instituições? Eu já me pronunciei publicamente sobre isso. Se o procurador-geral apresenta um quadro em que há necessidade de se investigar, de duas, uma para o governo. Ou ele chega e pede a essas pessoas que estão sendo investigadas que desfaçam imediatamente a pretensão do procurador-geral, por meio de um habeas corpus, para trancar a investigação – o que é possível no tratamento jurídico – ou as afasta cautelarmente e indica outro nome para o cargo. “Na administração dos negócios públicos, vale O homem público tem de dar o exemplo, não? Tem. Quer dizer, se ele não tem argumentação para mostrar que aquilo que eu fiz carecia de uma base jurídica, então é melhor se afastar. Claro, é bem como foi dito no início da pergunta: o fato de ser investigado não criminaliza ninguém. Mas deixa alguma coisa no ar que fica com necessidade de esclarecimento. Na administração dos negócios públicos, vale aquela história da mulher de César: não basta ser honesta, tem que parecer honesta. A manutenção dessas autoridades não estimula o cidadão a desacreditar nas instituições? É, fica uma dúvida. Afinal, o homem que lá está mantido é ou não é culpado? Quando você está num cargo público, é melhor que ninguém tenha dúvida do seu desempenho. O Congresso Nacional está envolvido nessa discussão da CPI dos Correios, por conta de supostos casos de corrupção. Como o senhor avalia os trabalhos das CPIs? Elas conseguem avançar mais do que as investigações realizadas pelo Ministério Público e pela Polícia Federal? Desde que assumi o cargo de procurador-geral aconteceu uma coisa muito boa: a interação entre as CPIs e o Ministério Público. A CPI do Banestado, por exemplo, ajudou muito. Se as investigações tivessem ficado restritas ao Ministério Público, os avanços teriam sido menores? Não teríamos avançado na velocidade em que avançamos. Para isso, foi útil a interação entre o Ministério Público e a CPI. Apesar daquelas divergências entre relator e presidente? Aquilo não atingiu exatamente o Ministério Público, foi uma coisa deles, interna. Essa CPI (dos Correios) pode acrescentar, então, muito nas investigações? Claro. Os colegas de primeiro grau podem ajudar bastante. Hoje em dia a integração é total. Eu lembro na época da CPI do Orçamento (1993-1994) que um caminhão derrubou papéis e mais papéis na porta da Procuradoria-Geral da República. Iríamos fazer o que com aquela papelada? Não dava para fazer nada. Agora, não. Temos uma interação total. O Ministério Público tem sido chamado com muita freqüência para mediar conflitos que envolvam direitos humanos e conflitos agrários – como é o caso do assassinato da missionária Dorothy Stang… Entreguei hoje (segunda-feira) o meu último parecer sobre o caso. Eu mantenho a linha inicial de federalizar (o crime). Já havia feito o pedido antes, mas o Estado e o Ministério Público Estadual (do Pará) responderam contra a minha pretensão. Aí o relator (ministro do STF responsável por autorizar pedidos de federalização) abriu vista para mim há dez dias, e respondi hoje mantendo a linha de federalizar. Mas nessa questão de direitos humanos e conflitos agrários, o problema maior é de legislação, da aplicação da lei ou da ausência de instituições mais sólidas? Na parte agrária, quando vai ser feita uma reintegração de posse, geralmente em municípios pequenos, o juiz e o promotor devem se fazer presentes na hora em que é dada a ordem para reintegração da terra, junto com a polícia, para evitar massacres como o de Corumbiara (em 1995, o município de Rondônia foi alvo de um conflito de reintegração de posse no qual nove sem-terras e dois policiais morreram). Naquela ocasião, eu recomendei ao ministro Nelson Jobim (na época ministro da Justiça) que isso fosse feito. Eu era presidente do CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, órgão do Ministério Público Federal). Nós aprovamos por unanimidade essa recomendação. Se o juiz está lá, ele conversa com os dois lados e já evita o conflito. O fato de o juiz sair do gabinete é bom para esses conflitos? É muito importante. No meu caso, estou terminando um ciclo de inúmeras viagens só pelas procuradorias da República, para fechar o último estado da federação. Viajei para dialogar e estar presente. Você tem que sair detrás da mesa e ser uma pessoa mais dinâmica, senão não resolve. A desburocratização da justiça também passa por isso. “O sistema não está corrupto de hoje. O que o sujeito fez foi cortar aqui (apontando para o antebraço). O pus estava ali havia anos. O que houve – e esse dado é muito positivo no atual governo – foi permitir essa interação entre as instâncias do governo que investigam e nós” Na semana passada, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o senhor disse que a corrupção está institucionalizada no país… Há décadas. O sistema não está corrupto de hoje. O que o sujeito fez foi cortar aqui (apontando para o antebraço). O pus estava ali havia anos. A ditadura alastrou o pus. O silêncio do ditador impedia que você questionasse, e esse pus foi se acumulando. O que houve – e esse dado é muito positivo no atual governo – foi permitir essa interação entre as instâncias do governo que investigam e nós. Quando aconteceu isso pela primeira vez no país, o pus surgiu. E como fica para o cidadão, a percepção dele. Se a corrupção está encastelada nessas instituições, como é que podem essas mesmas instituições extirpar essa prática? Colocando esse pus para fora. Nós estamos num tecido social e esse tecido social está conspurcado pelo pus. E o que fazer? Cortar, fazer a incisão e ir espremendo. É um processo doloroso, não? Dói, dá desespero, é feio, mas sai esse troço todo. Nós estamos num momento de tirar ele. Para sempre? Talvez, para sempre, não. Mas à medida que a gente vai tirando, o tecido vai recompondo. Mostrando o quê? Que vale a pena ser honesto, trabalhar até o seu último dia de vida e não dar golpe em ninguém. Qual a contribuição do Ministério Público nessa “cirurgia”? Você não pára de ver a gente (do Ministério Público) atuando junto com as instâncias do governo federal. O governo Lula permitiu isso. O Legislativo tem acompanhado o Executivo, o Judiciário e o Ministério Público nesse processo? Não, porque essa não é uma atribuição do Legislativo. Ele só colabora com a reflexão normativa, a feitura de leis. No trabalho de campo é o Ministério Público, a polícia, a Receita Federal, o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras, órgão vinculado ao Ministério da Fazenda e responsável por identificar ocorrência de atividades ilícitas relacionadas à lavagem de dinheiro), o Banco Central e o INSS que atuam. E, depois, o Judiciário, para julgar. “Se queremos uma Justiça ágil, temos que mudar a mentalidade das pessoas, o que passa necessariamente As leis atuais são suficientes, pelo menos? Não, mas as leis são para ser cumpridas. Aí você puxa para uma outra conversa. Se queremos uma Justiça ágil, temos que mudar a mentalidade das pessoas, o que passa necessariamente pela melhoria da qualidade do ensino jurídico. Eu acho que o ensino está muito abstrato, erudito, cheio de citação. Você tem que formar profissionais objetivos, preparados, com bom material intelectual, sim. Mas com objetivos, sem blá-blá-blá. Depois, é preciso fazer uma reforma na codificação, no Código de Processo Penal e no de Processo Civil, para fazer audiências menores e resolver logo o problema, eliminar os recursos e substituir o processo escrito pela sustentação oral. Querem um exemplo? Aqui está me pegando logo (aponta para o gravador). Eu estou oralmente, vocês estão oralmente e a gente vai chegar a uma conclusão. Já pensou se vocês mandassem as perguntas, por escrito, pela assessoria de imprensa, para encaixar na minha agenda? Alguns desses dispositivos que o senhor citou fazem parte da reforma do Judiciário. Como o senhor vê a Emenda Constitucional 45, aprovada no ano passado? A emenda foi boa para iniciar. Mas ela não é mesmo a solução, não. Os projetos de reforma infraconstitucional, que estão tramitando no Congresso, são a solução? Aí é que está. Como eco da Emenda 45, é preciso partir já para a reforma infraconstitucional do processo penal e do processo civil. Entendeu a diferença? O exemplo da sustentação oral nos processos entra bem nisso. Uma coisa que a gente poderia resolver em meia hora, como essa entrevista, vai levar três meses. Mas essa morosidade da Justiça tem beneficiado muita gente, não? Claro. Muita gente gosta. No campo criminal, os advogados de defesa trabalham com uma coisa chamada prescrição. O que é a prescrição? É você trabalhar com o tempo, para que as coisas não sejam definidas. A defesa tem que fazer isso, já que se permite. Ela está no papel dela. A criação dos conselhos nacionais do Ministério Público e do Judiciário, como órgãos de controle externo, termo que o senhor não gosta muito de adotar, vai tornar as instituições mais transparentes? É, não é muito correto, não. Prefiro um acompanhamento externo. Sou a favor da criação desde o primeiro dia. Os conselhos vão ser instalados no dia 7. O conselho pode avançar em que sentido? Abrir e flexibilizar estruturas herméticas. Para mim, o Judiciário e o próprio Ministério Público são muito herméticos. O Ministério Público é até um pouco mais aberto. As indicações para o conselho são feitas tanto pelo parlamento, como pela OAB. Isso é muito bom. Tem um movimento suprapartidário no Senado para que o senhor continue no cargo. De jeito nenhum. Por que não? De jeito nenhum. Veja só a ênfase da minha resposta (risos). Isso foi decidido com a minha família, minha mulher e os meus filhos. Uma decisão fortemente familiar e quando a coisa começou a ficar muito quente, dois anos atrás, reuni-me com eles e a gente decidiu isso. Eu não quero mais nada, é um momento da minha vida. Não quero ser magistrado. O que o senhor pretende fazer agora? Agora vou descansar por três ou quatro meses e sair pela vida. Tem gente me chamando para pescar. Depois, volto pra cá, como homem simples, como procurador. “Em nome do presidente Lula, o ministro Márcio Thomaz Bastos (da Justiça), há cerca de três semanas, convidou-me para ficar. Mas, realmente, desde o primeiro dia, eu disse com muita clareza que agradecia o convite” O antecessor do senhor foi reconduzido três vezes. Há manifestação do próprio PSDB para que o senhor permanecesse no cargo. O mesmo não se percebe da parte do governo que o indicou… Não, mas eles pediram. Em nome do presidente Lula, o ministro Márcio Thomaz Bastos (da Justiça), há cerca de três semanas, convidou-me para ficar. Mas, realmente, desde o primeiro dia, eu disse com muita clareza que agradecia o convite. E disse também ao presidente numa recepção que tive com ele (semana passada). Que lembrança o senhor vai levar desses dois anos em que esteve à frente do Ministério Público Federal? Um trabalho muito bonito de equipe, de fazer viver um ideal. Qual ideal? O ideal de lutar pelos valores maiores. De construir uma instituição. É o que coloquei num recente artigo publicado na grande imprensa. Eu consegui passar um pouco isso. Nas instituições nós somos importantes por um período só. Na família, não. Nela somos essenciais sempre. Sempre vai ter o amor pelo pai, pela mãe, pelo avô, pela avó, pelo filho, pela filha. Família, homens e mulheres são essenciais e, portanto, perenes. Nas instituições, nós passamos. Viemos, deixamos uma mensagem, trabalhamos por ela e passamos. É o ideal da temporalidade da instituição e da eternidade de uma família. |
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