Fábio Góis
Houve de (quase) tudo na abertura do 42º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, ontem (terça, 17). Vaias de anfitriões aos convidados, “convites” vendidos na porta do teatro, atores sem assento para assistir à própria atuação, faixa com os dizeres “Libertem Cesare Battisti” dentro da sala de exibição e muita desorganização naquele que é considerado o mais importante festival de cinema do país.
Após uma abreviada apresentação de duas peças da impecável Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro (TNCS) – afinal, o adiantado da hora impunha rapidez na execução –, eis a tão esperada exibição do longa Lula, o filho do Brasil, adaptação do livro homônimo de Denise Paraná. Com mais de uma hora de atraso, começava o épico meio agreste, meio paulicéia.
A todo instante, esse “quase tudo” tentava fugir ao tão falado “olhar de cronista”, tamanho era o turbilhão de personalidades, absurdos, sutilezas e encantos que a noite guardava em vários lugares entre o proscênio e a última fileira. Deixando um pouco de lado a política crua, o Congresso em Foco reservou um lugar no evento. Ganhou assento num puído batente de escada encarpetada na extremidade esquerda da fileira “J”. Foram duas horas e oito minutos de dor na lombar.
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Este redator entrevistou dezenas de pessoas antes da sessão pipoca. A tecnologia captava o que os olhos não conseguiam. Depois da sonata, eis que surge no palco Luiz Carlos Barreto, produtor e pai do diretor do filme, Fábio Barreto, para alardear:
“Nos bastidores, não há a presença de nenhum bombeiro. Isso é absolutamente impensável!”
Pânico? Não. Vaias. A bem educada plateia brasiliense queria logo o começo do filme, e não arrastou o pé, mesmo que o chão do teatro afundasse com o excesso de peso.
Convidados extras
Minutos antes, a reportagem ouviu do gerente técnico de operações do Teatro Nacional, Adauto da Silva Moreira, a seguinte estimativa: havia cerca de 1.800 pessoas na Sala Villa-Lobos, e mais um bom punhado tentando entrar (ao fim e ao cabo, boa parte delas conseguiu). Imagine o caro leitor a situação: o auditório possui 1.407 poltronas e mais 100 cadeiras extras…
“O problema é que você manda um convite para um deputado, e ele vem com dez, 15, 20 pessoas. Aí não tem condições…”, resignou-se Adauto, com walk-talk (ou rádio comunicador, para os ufanistas) em punho.
Barretão, como o produtor é conhecido no meio cinematográfico, disse que subiu ao palco junto com o seu filho Fábio para “avisar” que as pessoas sentadas nas escadas e em pé nos corredores obstruiriam uma eventual evacuação, caso houvesse acidente ou incêndio, por exemplo. “Se houver qualquer probleminha de estouro de uma lâmpada que esquentou, isso aqui vira um perigo de vida. As pessoas estão correndo perigo de vida”, declarou, acrescentando que já teria alertado o vice-governador do DF, Paulo Otávio, e o secretário de Cultura do GDF, Silvestre Gorgulho, sobre o problema.
Luiz Carlos Barreto chegou a sugerir que as pessoas sem assento deixassem o auditório, sob a promessa de que uma sessão extra seria exibida logo após a primeira. Mais vaias. E nenhuma pessoa se ausentou.
Uma mulher gritou: “Cala a boca!”. Outro espectador sapecou, com a mesma aristocrática educação: “Coloca o filme!”. Vergonha alheia é pouco.
Barretinho aproveitou o ensejo do pai e emendou, sem sucesso: “A organização do festival não guardou lugar para Glória Pires sentar, nem para outras pessoas do elenco. Então, eu gostaria de pedir que uma fila de, pelo menos, 30 pessoas, se levante para os atores poderem assistir ao filme”, disse o diretor, provocando vaias ainda mais intensas. E reforçando a cola na poltrona.
O secretário de Cultura do GDF, Silvestre Gorgulho, apressou-se em dizer ao Congresso em Foco que esse é o espírito do festival – e que, se os organizadores quisessem uma sessão mais restrita e “certinha”, que a tivessem feito no Palácio da Alvorada. “Quando ele [Barretão] sobe no palco, para uma plateia de 1.400 pessoas [sic], e diz que não tem corpo de bombeiro aqui, isso me agride. Ele foi perguntar se tinha Corpo de Bombeiros? Tem a brigada do Corpo de Bombeiros aqui”, reclamou.
Na era da comunicação em tempo real, parlamentares não perderam tempo e reclamavam da desorganização do festival por meio de instrumentos como o Twitter e o MSN. Muitos, do lado de fora da sessão. Oposição em ensaio de contestação à “peça eleitoral” junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – com lágrimas de raiva, em contraposição ao pranto comovido dos correligionários ou meros cinéfilos.
Sem som
Segundo Silvestre, havia 120 cegos e surdos-mudos na plateia. Se os primeiros apenas ouviam diálogos, trilha sonora e barulhos diversos, os últimos contavam com a ajuda de dois intérpretes de Libras (Língua Brasileira de Sinais) – que, de costas para a tela e de frente para uma luz alaranjada, traduziam-lhes o texto do filme e as minúcias dos ambientes.
Envolvida na realização do festival, a professora de Musicografia Braille da Escola de Música de Brasília, Dolores Tomé, não se conformava com o fato de que o filme não seria legendado, tendo de recorrer à “autodescrição ao vivo”. E por que o filme não foi legendado? “Por que os senhores Luiz Carlos Barreto e Fábio Barreto bateram o pé e disseram que não iam legendar.” Simples assim, dizia Dolores. “Queria que vocês os entrevistassem para eles dizerem o que falaram para mim.” Melhor não.
Solícita, a intérprete de Libras do setor de Política de Inclusões da Secretaria de Cultura do GDF Simone Moura deu voz às reclamações de Fátima Costa, portadora de deficiência auditiva. “Isso é muito ruim”, dizia Fátima à reportagem, por meio dos gestos de Simone. “Tudo bem ter um intérprete, melhor do que não ter nada. Mas a legenda é muito melhor, porque a gente acompanha o contexto todo do filme. Às vezes, a gente perde a imagem olhando para o intérprete. É muito complicado isso. Eu não me sinto igual aos ouvintes.”
De resto, seguranças aos vultos cruzando a ampla “sala de exibição”, produtores à beira de um curto-circuito, e atores acomodados não se sabia onde – enquanto a luz cruzava o ar para pousar no rosto dos intérpretes. Ah! Barretão e os seus logo ganharam cadeiras no cantinho da sala, com visão obtusa para a película. Na tela, Lula mostrava sua cara, revelava o nome de seus sócios e negócios, sem confiar muito na realidade dos anos de chumbo. “Grande pátria desimportante…”, suspiraria Cazuza.
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