Na coluna anterior critiquei a leniência brasileira com a criminalidade violenta que permite a maiores autores de crimes bárbaros, como foi o assassinato do jornalista Tim Lopes, sair em 4 anos, por “progressão de pena”. Vou agora analisar o PLC 122, apresentado como uma arma contra a homofobia.
O substituitivo ao PLC 122 agrava as penas de crimes violentos quando motivados por ódio, inclusive, homofobia – o que me parece correto, e apoiarei – mas, por outro lado, pune com pena de prisão fechada diversos delitos sem violência: palavras e atitudes de discriminação alguns de tipificação muito difícil ou complexa na vida real.
Vamos lá:
“Pena – prisão de dois a sete anos, se o fato não se constitui em crime mais grave.”
A pena ali se aplica a atos de tipificação complexa como:
“I – ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem;”
Pergunta: como se caracteriza exatamente “ofender a saúde” ou até a “integridade corporal”. Um olhar de desprezo pode ofender a nossa saúde?
Quanto à “integridade corporal”, no nosso ordenamento legal a agressão com lesão corporal é definida de forma objetiva num exame de corpo delito.
Leia também
Nesse caso como exatamente provar uma “ofensa”? Isso pode dar margem uma litigância de má fé em larga escala mas, também, o que é mais provável, tornar perfeitamente inaplicável essa disposição obtusamente redigida.
Mais adiante:
“II – ofender a honra das coletividades previstas no caput”
É razoável punir com penas de prisão de dois a sete anos algo que claramente configura um delito de opinião/expressão? Existe algo mais subjetivo do que uma suposta ofensa “à honra”?
A prisão por “ofensa” é algo inconcebível em democracia.
Notem que ela se aplica ao preconceituoso Juquinha que ofende a honra da comunidade gay ao insulta-los como: “uma cambada de boiolas”, mas também a Mariazinha que, tendo em mente o pastor Feliciano, “ofende a honra” dos evangélicos quando os qualifica como “uma cambada de crentes idiotas e fanáticos”.
O projeto aqui criminaliza esse tipo de invectiva genérica, não personalizada, pois extensiva a “coletividades”. Em português claro: xingar um grupo de pessoas vira crime passível de prisão!
De todas as disposições equivocadas desse texto – supostamente expurgado delas, imaginem o original! – essa é, na minha opinião, a mais grave.
Dirão: não era bem isso que o legislador tinha em mente. Saibam que o que o legislador tem em mente não conta mais depois que o projeto vira Lei. Contará o que o advogado mais esperto, o promotor mais implacável ou o juiz mais mal humorado terão em mente em milhões de situações futuras imprevisíveis…
Não menos complicado é:
“I – impedir ou obstar o acesso de pessoa, devidamente habilitada, a cargo ou emprego público, ou obstar sua promoção funcional;”
Imaginemos: Maria, uma gestora pública, na nomeação para um cargo comissionado de livre provimento ou numa promoção, preteriu um pretendente homossexual – notem bem: a disposição menciona explicitamente “cargo” de forma separada de “emprego púbico”, esse último, naturalmente, dependente de concurso público.
Pois ela, presidente do órgão público em questão, preteriu José, que é gay, porque achou João mais competente ou apropriado para aquele cobiçado DAS 5. Inconformado, José aciona Maria na justiça por “obstar seu acesso” àquele “cargo” alegando que ela o fez pelo fato dele ser gay. Maria, em tese, fica exposta a pena de prisão!!!
Provavelmente não terminará presa, mas sua vida, nos próximos anos, vai virar um inferno porque José, implacável, contratou o Dr. Vivaldino Rábula – advogado cheio das manhas e truques, muito bem relacionado com juízes, MP, etc…- que sabe batalhar uma litigância dessas como ninguém. Maria está em maus lençóis…
Mas tem lá aquele outro carguinho, um DAS 7, se Maria for “razoável”, fica tudo resolvido…
Outra pérola do PLC 22:
“Art. 4º Aumenta-se a pena dos crimes previstos nesta lei de um sexto a metade se a ofensa foi também motivada por raça, cor, etnia, procedência nacional e religião, indicativos de ódio ou intolerância.”
Aqui, vamos imaginar a seguinte situação: partida Flamengo x Boca Juniors no novo Maracanã. A Raça Rubronegra, com sua habitual graça e delicadeza, resolve ofender o time argentino, sobretudo aquele craque mais perigoso, gritando: “maricón, maricón!”.
Alguns milhares de torcedores acabam de se expor a uma pena de dois a sete anos…
Mas fica ainda pior: noutro momento, diante de uma falta digna de cartão vermelho, mas impune, aí minha torcida passa a delinquir agravadamente contra a “procedência nacional” do jogador e passando a bradar: “argentino maricón!”.
Dessa forma, pelo projeto, ela se vê sua potencial prisão agravada de “um sexto da pena”.
E, na sequencia, a torcida reincide atribuindo certa orientação sexual ao árbitro da partida, em termos singularmente chulos…
Fosse isso uma Lei aplicada a sério estaríamos diante do perigo de um gigantesco incremento na população carcerária no país… Iríamos ter que usar os próprios estádios como presídios, gênero Santiago do Chile, 1973.
Semana passada discuti se, em última análise, pessoas que mataram aos 17 anos poderiam ou não voltar rapidamente às ruas. Nesse caso aqui não há essa dúvida. A prisão é o único destino dos delitos previstos no PLC 122 já que:
“Art. 5º Em nenhuma hipótese as penas previstas nesta lei serão substituídas por prestações pecuniárias.”
Ou seja, não dá para aplicar nem sequer multas pesadas, o que seria a punição mais razoável para comportamentos abusivos, mas sem violência, que de alguma forma prejudiquem injusta, individualmente e comprovadamente outras pessoas, notadamente por sua opção sexual.
Minha posição é clara: devem ser agravadas as penas previstas no Código Penal por assassinato ou agressão quando praticadas contra homossexuais, de forma claramente relacionada a ódio ou preconceito. Deve ser coibida e punida com severidade a incitação à violência nesse contexto. Mas defendo que apenas os casos envolvendo violência possam ser punidos com prisão.
Devem doer no bolso delitos – comprováveis e comprovados – que acarretem inequívoco e personalizado dano moral (vedação de ingresso em estabelecimento) ou profissional (tipo: bullying, demissão abusiva) a gays, deficientes, ou religiosos de alguma crença em razão de ódio e preconceito.
Sou totalmente contra criminalizar e prender pessoas por delito de opinião/expressão. A liberdade de expressão não se restringe ao discurso “politicamente correto”. O imbecil, o energúmeno, o preconceituoso tem direito a se exprimir – desde que não incite à violência e ao crime – e pontificar suas barbaridades. Coibi-lo na minha opinião ameaça a democracia.
Defenderei sempre o direito do Bolsonaro e do Feliciano dizerem suas barbaridades e os combaterei com outras palavras na tribuna, na imprensa e na internet, como tenho feito.
Já a “defesa da honra” fica a cargo da litigância cível. Os ofendidos podem acionar os difamadores na forma da lei existente.
O pano de fundo dessa discussão na Rede é crucial pois nesse aspecto funcionaremos como microcosmo da realidade brasileira. Se não conseguirmos administrar isso no nosso contexto, a sinalização para o Brasil como um todo será terrível.
Os evangélicos são uma força importantíssima na sociedade brasileira – junto com os católicos – e nós, de sensibilidade laica/libertária, precisamos saber dialogar em eles sobre esses temas: direitos gays, aborto e drogas buscando um terreno comum que possa ser encontrado na pregação de Cristo e na própria Bíblia – dependendo a interpretação, no caso desta última – mas explícita na pregação de JC.
Devemos nos armar de infinita paciência para esse diálogo. Digo-lhes, sempre, que embora eles possam não aceitar o homossexualismo, devem respeitar os homossexuais e aceitar que numa república laica estes têm todo o direito a uma vida em comum e a constituir família à luz dos direitos que nossa sociedade laica confere via matrimônio civil.
Que nesse sentido só caberia sua resistência política e sua mobilização se de alguma forma absurda o estado quisesse obrigar as igrejas a celebrarem esse tipo de casamento, o que naturalmente não é o caso.
E se Jesus ama a todos – inclusive os gays – não cabe a um cristão comportamento que os faça sofrer enquanto seres humanos. No mais, Deus cuidará do assunto, no final.
Na questão da aborto, que somos contra a sua prática, em si. Topamos trabalhar com eles para diminuir ao máximo, até idealmente chegar ao zero sua prática na nossa sociedade. Mas a verdade é que o aborto é praticado todos os dias e de fato tolerado – em clínicas com nome de santo – em troca de corrupção policial.
Fosse o aborto de fato coibido drasticamente redundaria numa mortandade gigantesca por auto-aborto. Por isso não se promove nem no Brasil nem em nenhum outro país uma repressão drástica e regular ao aborto e as igrejas sabem perfeitamente disso.
Nessa circunstância a solução correta numa república laica é legaliza-lo, coibindo maior risco à saúde das mulheres e corrupção policial, ao mesmo tempo que se procura através da educação e instrução reduzi-lo mais e mais ao prevenir a gravidez não desejada.
Mesma abordagem para as drogas: não defendemos o uso de nenhuma droga e topamos campanhas de prevenção as mais amplas possíveis que, aliás, no caso do cigarro – depois do crack e da heroína a droga mais difícil de se largar – tem tido um sucesso retumbante.
Mas as drogas matam mais – na proporção de cem para um – à bala, na disputa pelo seu mercado. O dano que a economia subterrânea da droga provoca à sociedade é muito maior da intoxicação química e dependência, que deve ser vistas como um grave problema de saúde pública.
Por essa razão sustentamos que a proibição e a repressão não resolvem e que outros caminhos devem ser buscados embora fique entendido que um país não conseguirá fazer isso isoladamente. De qualquer forma, se partirmos da compaixão cristã, a redução do sofrimento humano é a grande prioridade e nessa base queremos discutir os assunto com o povo cristão.
Precisamos nos dar conta que simetricamente à intolerância religiosa, existe aquele sectarismo típico da cultura de extrema esquerda, que viceja entre nós, bem como o tipo de abordagem “identitária” da questão gay que privilegia a “luta anti-homofobia” e o “orgulho”. São discursos que criam, do lado laico-progressista, uma barreira ao entendimento com determinados segmentos evangélicos com os quais poderíamos eventualmente nos entender com base na democracia e no amor ao próximo.
A forma como conseguiremos, ou não, resolver essa questão entre nós será sintomática do destino futuro da nossa sociedade: será ela laica, democrática, tolerante e plural? Ou ficará “balcanizada”, tribalizada, sectária, hostil e mutuamente intolerante?
Eis a questão.
Deixe um comentário