Pegue estudos incompletos e de fontes pouco confiáveis. Se necessário, ainda distorça as suas conclusões. Ignore retificações. Tempere suas declarações com termos técnicos que pareçam dar legitimidade ao que está sendo dito. Finalmente, arregimente uma multidão de pessoas nas redes sociais para compartilhar o que está sendo dito. A partir dessa receita, parlamentares negacionistas aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro conseguiram vencer a batalha digital durante a CPI da Covid, em 2021.
É a conclusão a que chega o estúdio de inteligência Lagom Data, no estudo “Evidências em Debate”, financiado pelo Instituto Serrapilheira, ao qual o Congresso em Foco teve acesso. O estudo mostra que, mesmo tendo durado seis meses, levado uma série de autoridades e pesquisadores para depor, com suas sessões assistidas por milhares de pessoas, culminando com graves denúncias, imputação de diversos crimes e indiciamentos, a CPI passou longe do embasamento científico.
A CPI teve amplo domínio dos parlamentares que faziam oposição ao governo Bolsonaro. Foi proposta pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que se tornou seu vice-presidente. Foi presidida pelo senador Omar Aziz (PSD-AM). Seu relator foi Renan Calheiros (MDB-AL). E destacaram-se nomes como Otto Alencar (PSD-BA). A formação de uma bancada informal de mulheres (já que oficialmente não havia mulheres na composição da comissão) destacou também Simone Tebet (MDB-MS) e Soraya Thronicke (União Brasil-MS). Todos nomes de oposição. Apesar disso, porém, o estudo mostra que foi a tropa de choque governista que ganhou os debates nas redes sociais. E, por incrível que pareça, foi o discurso negacionista da tropa de choque o que mais citou artigos científicos e pesquisadores.
Mais correto seria classificar como estudos pseudocientíficos. Estudos falhos, contestados, de fontes duvidosas. Mas que, embalados por um discurso recheado de termos técnicos para lhe garantir um véu de credibilidade, ganhavam as redes sociais turbinados pela militância bolsonarista.
“Praticamente só os estudos falhos foram debatidos, passando ao largo de quase toda a melhor produção científica sobre a Covid já feita no Brasil”, lamenta Marcelo Soares, editor do relatório e diretor da Lagom Data.
“Com o apoio de um grupo de Whatsapp de médicos governistas, a “tropa de choque” governista metralhou a comissão com referências enviesadas de estudos, vocabulário científico fora de contexto e demandas de credenciais, tudo usado como argumento de autoridade. Esse tipo de argumentação é um clássico usado pelos ‘mercadores da dúvida’ para confundir o ambiente de informação”, diz o texto.
O estudo observa que cientistas convidados para depor na CPI para reforçar as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre os riscos da pandemia, a necessidade de uso de máscaras e das vacinas, que refutaram a eficácia do chamado “tratamento precoce” com o uso de cloroquina e outros remédios foram mais “didáticos” em seus depoimentos, fazendo menos citações de estudos e textos científicos. “Do lado governista, havia um grupo que municiava depoentes e senadores com vocabulário e referências que, apresentadas como argumento de autoridade, corroborariam as ações tomadas. Do lado da ciência, faltou esse tipo de mobilização”, constata o estudo.
Três milhões de palavras
Foram três milhões de palavras ditas em 91 mil falas ininterruptas durante 69 sessões. O estudo constatou que, embora a ampla maioria dos parlamentares envolvidos não tivesse alinhamento com o governo, o mesmo não se deu com relação aos depoimentos. Houve mais depoentes bolsonaristas que não alinhados ao governo.
E esse foi o ponto inicial a partir do qual as sessões eram ilustradas com citações científicas, que eram fornecidas por um grupo de médicos e técnicos negacionistas, que forneciam o material a partir de um grupo de whatsapp.
O resultado é que “referências científicas” eram mais citadas pelos bolsonaristas.
O negacionismo de Heinze
E o senador que mais fez citações “científicas” foi Luiz Carlos Heinze (PP-RS), que nem titular da CPI era, mas suplente. Mas Heinze seguiu à risca a cartilha que os professores Daniel Duarte, da Universidade de São Paulo (USP), e Pedro Benetti, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) apontam para a construção do discurso negacionista: “a identificação de conspirações; o uso de falsos experts; a seletividade ou ênfase em pesquisas que contrariam o consenso científico; a criação de expectativas impossíveis para as pesquisas, e o uso de falácias lógicas e deturpações”.
Das 110 referências científicas feitas durante a CPI, 42 (39,3%) vieram de Heinze. Ao final da CPI, Heinze apresentou um relatório paralelo para defender o governo citando dezenas de estudos. A maioria eram o que o jargão científico chama de “preprints”, não passaram pela revisão de outros pares científicos.
Heinze citou com frequência, por exemplo, um estudo do médico francês Didier Raoult que evidenciaria a eficácia da cloroquina a partir do acompanhamento de 42 pacientes. O senador gaúcho ignorava, porém, que o próprio Raoult mais tarde admitiria que seu estudo tinha falhas e se retratou dos resultados. .
Mia Khalifa
Heinze chegou a citar como verdadeiro um meme da internet, onde uma moça de óculos era identificada como uma médica brasileira responsável por estudos favoráveis ao uso da cloroquina. Na verdade, tratava-se da ex-atriz pornô libanesa Mia Khalifa. Quando constatou o equívoco, Heinze disse que se tratava de uma estratégia para difamar o medicamento.
Mas a principal estratégia de Heinze era metralhar as sessões com referências de difícil verificação. Em uma das falas , citou a pesquisa de “um moço, brasileiro”. Em outra fala, disse ter acesso a 284 pesquisas positivas sobre os efeitos da hidroxicloroquina e 137 sobre a ivermectina. Em outras sessões , Heinze perguntava aos convocados qual era o seu índice H – métrica utilizada para quantificar a o impacto de cientistas a partir de seus artigos mais citados”
Segundo o estudo, o senador Eduardo Girão (Novo-CE) também adotou estratégia semelhante. O resultado disso é que os parlamentares conseguiam assim fazer reverberar nas redes sociais, especialmente nos grupos bolsonaristas, a psdeudociência que muito contribuiu para agravar a pandemia no Brasil. No Brasil, a covid-19 matou mais de 700 mil pessoas.
Veja abaixo a íntegra do estudo:
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