André Rehbein Sathler
Malena Rehbein Sathler (*)
Imaginando, quase sabendo, o que viria do governo, escrevemos aqui sobre a Reforma da Previdência sob a ótica da confiança. Estávamos certos. Uma mudança profunda nas regras do jogo, um jogo que para o pacato cidadão envolve uma vida inteira. Pior, envolve em muitos casos uma vida inteira que se passou e será desconsiderada porque o resultado quer ser mudado em cima da hora, e no tapetão.
No país dos bacharéis, assume-se como natural a visão de que o direito adquirido à aposentadoria só se configura quando se alcançam as condições necessárias para solicitá-lo. Ou seja, quando o jogo já se encontra em seu final. Somente os crédulos no poder mágico da norma jurídica para criar realidades puras podem dormir em paz com essa afirmação. Pois, nessa lógica, por exemplo, embora você tenha assinado um contrato de que receberá o salário X ao final do mês, só ao final do mês trabalhado é que terá direito ao X. Enquanto isso, embora tenha assinado um contrato, o valor de X poderá ser
alterado! Ora, você trabalharia um mês inteiro se houvesse a chance de não ganhar o valor do contrato? Ou só vai até o fim porque confia no que receberá? Só toparia se não tivesse certeza em caso de muita necessidade, não é mesmo? E é com ela que o governo está jogando para te convencer. Se você não aceitar, poderá nem receber. Isso é o que diz o governo. Ele conta com o seu medo para aceitar a quebra de contrato em seu desfavor.
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Há muito tempo a Ciência Econômica descobriu que as “regras do jogo” são instituições e que o respeito a essas instituições é essencial para processos de desenvolvimento econômico. Embora muitas vezes não sejam nem regras faladas, elas estão tacitamente nas relações, que só se mantém estáveis por elas. Isso pode ser mais facilmente constatado com exemplos da vida real: os Estados Unidos têm uma enorme dívida pública e consideráveis dificuldades para a sua rolagem. Durante o governo de Barack Obama, houve momentos em que a administração pública federal americana teve que
reduzir suas atividades, em função de problemas fiscais. Contudo, a dívida pública norte- americana segue com excelentes classificações de risco. Porque ao longo de sua história, não houve episódios de quebra de regras, então as pessoas confiam nas regras mesmo em épocas ruins. E, perceba, essa explicação não precisou nem de ser dada claramente aos cidadãos americanos, pois a confiança mútua é estável.
Parece simples e transparente, mas, infelizmente, nem sempre é simples como parece. Um dos principais argumentos apresentados pelos agentes públicos que encaminham a proposta de Reforma da Previdência, como já citamos no início deste artigo, é o de que “é preciso mudar para garantir que as pessoas possam receber”. Os pressupostos desse argumento são eivados por uma hipocrisia original que impede que seja aceito pacificamente. “Estamos rompendo com as regras para garantir que vamos cumprir as regras no futuro”. Na verdade, o argumento se autodestrói, como aquelas mensagens da série Missão Impossível. Como confiar em quem está justamente provocando a desconfiança e se justificando com base nessa própria desconfiança? A reação natural é, como o Estado tem o monopólio da violência contra mim, eu cumpro o básico, mas tento resolver o meu lado fora das regras (poupando aqui ou fora do país, sonegando ou adotando qualquer outra prática que também viole as regras, já que não posso confiar no meu agente estatal).
As regras da Previdência são regras do jogo, de um jogo de tempo longo (uma vida inteira). As pessoas estruturam suas vidas com base nessas regras, tomam decisões de grande monta (uma carreira no serviço público, por exemplo), poupam ou deixam de poupar, investem ou não, trabalham muito mais ou não, tudo segundo as regras do jogo em vigor. Falar em mudar essas regras no meio do jogo, em se tratando de vidas, cheira crueldade. Aos que insistem na “necessidade fundamental” da Reforma (terminologia assumida integralmente pela mídia – mesmo quem vai criticar a Reforma na mídia começa dizendo que ela é fundamental), perguntamos: por que não o calote na dívida pública?
Antes da gritaria, ressaltamos que não defendemos, por princípio, o calote na dívida pública. Ao contrário, consideramos que o Brasil ainda amarga, mais de vinte anos depois, os efeitos de suas condutas irresponsáveis. O que pretendemos é ressaltar que o calote na dívida pública seria uma quebra de regras tanto quanto a intencionada Reforma da Previdência. Só que com efeitos maiores, pois a conta de juros é maior que o alegado déficit da Previdência. Mas fica clara, neste caso, a escolha de onerar, nos moldes como está a reforma, classes mais pobres.
Mais do que uma discussão jurídica de quando se configura um direito adquirido, a discussão da Previdência envolve confiar ou não confiar nas regras do jogo. Quando o Estado chega e diz que vai romper com as regras, unilateralmente, instala-se, definitivamente, a desconfiança, que já era acentuada. A tentativa de fazê-lo por meio de lei (tecnicamente, emenda constitucional) é apenas um ingrediente a mais nessa trapaça, uma tentativa de dar-lhe cara oficial, ou seja, colocar uma máscara no monstro. A lei é algo que estabiliza comportamentos e gera expectativas de previsibilidade, por isso tão valorizada pela humanidade. Sem a lei, vale a desconfiança total do mundo imaginário de Hobbes: um mundo povoado por lobos. Usar a lei para atestar que nenhuma lei, mesmo as que foram concebidas para o longo prazo, são intocáveis, é decretar a vitória do oximoro: Estado sem Lei. Depois disso, por que cumprir qualquer lei? Ou as leis existem se as pessoas não tiverem intenção de cumpri-las.
Roubar, mentir, trapacear, enganar é o que o Estado absolutista sempre fez. O processo de rompimento com o absolutismo e afirmação da lógica parlamentar e democrática foi, em grande medida, um processo de afirmação dos direitos privados perante um direito público que então era totalmente tirânico. Que isso volte a acontecer em plena democracia é de acabar com as esperanças de qualquer um. Aliás, imaginar que as pessoas não irão perceber que, ao terem de trabalhar 49 anos para receber proventos integrais, o Estado está é retirando da sociedade o direito de se aposentar – e não lhe garantindo como faz parecer – é mesmo ter certeza de que a maioria dos brasileiros é ignorante ou não tem força e voz (hoje pode-se ter certeza de que o governo pensa assim) para reivindicar o que lhe é devido. Mas tudo bem. Continuem assim. E estejam prontos para as verdadeiras consequências de uma terra em que ninguém respeita Constituição… Quase uma cena da Idade Média, em que as pessoas têm suas casas saqueadas pelo rei, somente para sanar a avidez financeira dos caprichos de Sua Alteza.
(*) André Rehbein Sathler e Malena Rehbein Sathler são docentes do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.
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