Diego Moraes
Polêmica que divide todos os partidos, a discussão sobre a descriminalização do aborto ganhou um estímulo do Palácio do Planalto. Pela primeira vez, o governo federal incentivou a criação de uma comissão tripartite, dentro da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, para discutir meios de reduzir as mortes provocadas pela interrupção da gravidez. Entre as propostas estão a liberação e a realização do procedimento em hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS). O grupo de trabalho gerou uma lista de sugestões que acabou incorporada ao relatório final do Projeto de Lei 1135/91.
A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), médica e relatora da proposta na Câmara, sustenta que o aborto é um problema de saúde pública. Ela afirma que a proibição é ineficaz porque as clínicas clandestinas continuam abertas. A relatora entende que a regularização vai evitar a morte de mulheres pobres. “Não se deixa de fazer aborto por conta da ilegalidade. Varias mulheres estão fazendo e estão morrendo.”
Jandira afirma que o discurso da corrente contrária ao projeto não é pela vida, mas unicamente pela contestação. Como exemplo, ela cita a liberação do aborto para fetos sem cérebro (anencéfalos), proposta que recebeu parecer favorável na Comissão de Seguridade Social em maio deste ano. “Não há vida nesses casos e eles foram também contra”, recorda. “A discussão é moral, religiosa, da fé. Estão achando que a lei é da religião, mas ela é da sociedade. O Estado é laico”, argumenta.
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Para o deputado Luiz Bassuma (PT-BA), o aborto é um problema de saúde pública, mas não pode ser resolvido com a regulamentação de “um crime”. “O aborto é o crime mais hediondo que existe, porque atenta contra um total indefeso”, avalia. Espírita kardecista e médium, o parlamentar diz que a ciência já avançou a ponto de oferecer meios para que as mulheres evitem uma gravidez indesejável. “A mulher tem o direito de ser mãe, mas, se engravidar, não tem o direito de matar uma vida que não é dela”, considera. Para os religiosos, a vida começa no momento da concepção do embrião (o momento no qual o esperma penetra no óvulo).
Método contraceptivo
O deputado afirma que o governo não precisa liberar o aborto para combater a clandestinidade, pois, na avaliação dele, o Estado tem meios para identificar e fechar as clínicas. Contudo, reconhece, falta fiscalização adequada. “Todos os anos, 240 mil mulheres dão entrada nos hospitais (por conta de abortos mal realizados). Tem como identificar onde foram feitos esses abortos”, avalia. Bassuma afirma que não pretende esperar pelo governo e pretende criar, na Câmara, uma CPI para investigar os abortos ilegais.
Um dos temores dos grupos contrários à liberação do aborto é a possibilidade de as mulheres, principalmente as com renda mais baixa, transformarem o procedimento em um método contraceptivo. Para Daniel Martins, membro da Associação dos Fundadores da Tradição Família e Propriedade (TFP) – entidade ligada à Igreja Católica –, a descriminalização é o início de uma transição cultural que vai abrir margens para outras práticas condenadas pelos religiosos.
“Os abortistas defendem tudo, o homossexualismo, o uso de drogas. (A liberação) é o primeiro passo para a degradação de valores”, considera. O frei franciscano Luís Felipe, que acompanhou as discussões na Comissão de Seguridade Social, afirma que a descriminalização vai banalizar o valor que a sociedade tem pela vida. “Gravidez não é problema de saúde pública. Todo o ser humano tem direito a vida. É um direito fundamental”, reforça.
Para a antropóloga e professora da Universidade de Brasília (UnB) Lia Zanotta, a descriminalização não vai transformar o aborto em um método contraceptivo. “As seqüelas do aborto são muito graves. A mulher só realiza o aborto se for o último recurso dela”, afirma.
Lia fez parte da comissão tripartite criada pelo governo e diz que a proposta pretende assegurar às mulheres que não vêem problemas em praticar um aborto infra-estrutura adequada para realizar o procedimento. “O direito da vida é fundamental, mas o direito das mulheres de ter saúde também é fundamental”, analisa.
Culpa do médico
Em meio à polêmica em torno do PL 1135/91, há apenas um ponto de consenso entre os grupos contrário e favorável à proposta: é o de que a mulher não deve ser penalizada em casos de abortos ilegais. Para o deputado Bassuma, a lei deve punir somente os médicos que aceitam praticar o procedimento.
“O médico que ganha dinheiro matando crianças inocentes deve ser punido com cadeia”, afirma. O deputado Rafael Guerra (PSDB-MG) é contrário ao projeto, mas diz que votaria a favor caso a proposta previsse apenas a derrubada do artigo 124 do Código Penal. “A mulher não pode ser penalizada porque ela é a maior vítima. Sofre durante o aborto e sofre depois as conseqüências pelo resto da vida”, reforça.
Para Daniel Martins, da TFP, a mãe deve ser responsabilizada nos casos de aborto e arcar com as conseqüências do ato. Mas, segundo ele, a punição maior deve ser para o médico e, principalmente, o parceiro da mulher.
Na avaliação de Martins, a descriminalização pode causar um conflito de princípios na classe médica. Isso porque, se a proposta for aprovada pelo Congresso, os médicos serão obrigados a atender as mulheres que optarem pelo procedimento. No caso de se recusarem a atendê-las, eles poderão ser indiciados por negligência e correr o risco de perder o registro profissional – ou, até mesmo, de ir parar na cadeia.
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