Um dos principais líderes da esquerda tradicional do país no século passado, o presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro (PSB), deputado federal Miguel Arraes de Alencar, morreu no sábado aos 88 anos. Arraes, que estava internado desde o dia 16 de junho, faleceu em decorrência de um choque séptico provocado por infecção respiratória e agravado por conta da insuficiência renal. Foi sepultado ontem, às 17h45, no cemitério de Santo Amaro, no Recife.
O corpo do político que governou por três vezes Pernambuco foi enterrado com honras de chefe de Estado, após ter sido ovacionado por um cortejo de 6 mil pessoas que o seguiram desde o Palácio do Campo das Princesas, sede do governo estadual, até o cemitério, onde, de acordo com a polícia, outras quatro mil pessoas esperavam para dar o último adeus a Arraes.
Personalidades políticas de vários partidos estiveram no velório dele, local por onde passaram mais 15 mil pessoas desde sábado. Acompanhado de seis ministros, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem Arraes franqueou o apoio do PSB para as eleições de 2002, passou pela manhã no Campo das Princesas. Mesmo alvo de denúncias de irregularidades, Lula foi recebido sob aplausos e saudações.
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Contudo, adversários do presidente não tiveram a mesma sorte. Foram recebidos com vaias o governador e o prefeito de São Paulo, Geraldo Alckmin e José Serra, ambos do PSDB, e os deputados federais pernambucanos pelo PPS Roberto Freire, presidente nacional do partido, e Raul Jungmann.
“Sentimento do mundo”
O corpo de Arraes foi enterrado numa cova simples, sob a placa “O homem marcado pelas duas mãos e o sentimento do mundo”, trecho baseado num poema de Carlos Drummond de Andrade, citado por ele ao retornar do exílio em 1979, 14 anos após embarcar para a Argélia e que resume bem a trajetória política desse cearense tratado como mito da esquerda.
A história dele se confunde com a luta pela resistência contra a ditadura. No dia 1º de abril de 1964, um dia após a deflagração do golpe que derrubou o presidente João Goulart, o então governador de Pernambuco negou-se a deixar o Palácio do Campo das Princesas, mesmo sob a mira dos militares, fortemente armados. Foi preso já de noite, metido dentro de um fusquinha e, posteriormente, levado para a ilha de Fernando de Noronha, onde ficou na cadeia por 11 meses.
Em 1962, ele havia sido eleito governador com quase 50% dos votos pelo Partido Social Trabalhista (PST), com o apoio do Partido Comunista Brasileiro e de setores do PSD. Em seu discurso de posse, citou Drummond ao dizer que tinha “duas mãos, mas todo o sentimento do mundo”.
Realizou um governo com forte viés de esquerda. Forçou usineiros e donos de engenho da Zona da Mata do Estado a estenderem o pagamento do salário mínimo aos trabalhadores rurais. E deu forte apoio à multiplicação de sindicatos, associações comunitárias e às Ligas Camponesas, que estavam se alastrando pelo país.
Antes de entrar para a política, Arraes saiu da sua cidade natal Araripe, no interior do Ceará, para cursar Direito, no Rio de Janeiro. Caçula e único homem de uma família de sete filhos, casou-se duas vezes e teve 10 filhos.
Em seu primeiro emprego, como funcionário público no Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) no Recife, conheceu Barbosa Lima Sobrinho. A indicação de Lima Sobrinho para o cargo de secretário de Fazenda, em 1949, valeu-lhe seu primeiro contato com a política.
Quatro anos depois, elegeu-se pela primeira vez deputado estadual pelo PSD, reelegendo-se em seguida. Em 1959, concorreu e venceu a disputa pela prefeitura do Recife, com apoio de uma frente de partidos de esquerda.
Rumo à Argélia
Perseguido pela ditadura militar (1964-1985), passou por prisões em Fernando de Noronha e no Recife. Solto em maio de 1965, embarcou para um exílio na Argélia.
Voltou ao Brasil em 1979 e, pelo PMDB, se elegeu deputado federal em 1982, para, quatro anos depois, voltar ao governo de Pernambuco. Arraes apoiou Tancredo Neves na eleição para presidente da República do Colégio Eleitoral em 1984. Entraria, dez anos depois, pela porta do Palácio das Princesas para governar mais uma vez o estado onde se projetou politicamente.
Tentou sem sucesso se reeleger em 1998. Foi derrotado por Jarbas Vasconcelos, atual governador do estado. Nos períodos em que não esteve à frente de Pernambuco, acumulou duas eleições para deputado federal e presidiu o PSB.
Apoios e ideologias
Miguel Arraes apoiou Lula desde sua primeira campanha presidencial e deixa seu neto Eduardo Campos, deputado federal e ex-ministro do presidente, como principal herdeiro político.
Pelo que pensava e escrevia, o maior político de Pernambuco não gostava de rótulos, nem personalismo na política. “Acho que o personalismo em política é um erro, nós devemos é lutar para que surjam quadros novos (…). A posição de chefe, em política, é um grave defeito, um grave erro”, afirmou em 1979.
Quatro anos depois disse: “Nunca me preocupei com rótulos. O rótulo de radical, conciliador, não tem nenhum sentido para mim, como não tinha sentido me chamarem de comunista no passado. O que importa é a prática política; o que importa são os posicionamentos que se tomam ao lado de determinadas camadas sociais em defesa de teses que interessam à nação como um todo”
Sobre o papel do Estado brasileiro, em 1991, disse: “ Não defendemos nem um Estado mínimo nem máximo. Defendemos e lutamos, isso sim, por um Estado que, a partir de suas peculiaridades, cumpra suas finalidades públicas”. No mesmo ano, quando se iniciaram as primeiras privatizações do governo Collor afirmou: “Privatizar por privatizar significa não apenas alienar o patrimônio público por preços irrisórios, mas abandonar qualquer plano coerente de crescimento”.
Já a respeito do socialismo disse que as experiências vividas no Leste Europeu “não eram socialismo”. “Eram regimes de grandes partidos, bastante assistencialistas. A juventude não foi incorporada, não se identificou com o processo.”
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