Tudo bem: a dicotomia direita x esquerda, inspirada na localização dos liberais girondinos (à direita) e os extremistas jacobinos (à esquerda) no salão da Assembleia Nacional em 1789, na Revolução Francesa, pode até ter se esgotado. Mas é absurdo imaginar que os ideais iluministas que inspiram os que lutam por uma sociedade mais justa em contraposição aos que atuam na contramão dos movimentos de inspiração progressista tenham sido extintos.
A dicotomia foi largamente utilizada como fórmula simplificadora, até mesmo para facilitar a compreensão das diferenças básicas entre mudancistas e conservadores. Mas o espectro ideológico é muito mais complexo. Hoje, é possível enquadrar na ala da esquerda progressistas sociais-liberais, ambientalistas, socialistas, comunistas e anarquistas, entre outras categorias de pensamento. E, à direita, os neoliberais, capitalistas, conservadores, reacionários, neoconservadores (sim, existem!), anarcocapitalistas, monarquistas, teocratas (o que são os governos islâmicos?), nacionalistas furiosos, fascistas e nazistas (sim!, continuam muito ativos, e negando até hoje o holocausto).
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O espectro continua crescendo e abarcando agora as novas categorias geradas pela revolução tecnológica. Onde enquadrar os que apostam tudo na crença de um equilíbrio amparado nos mecanismos de transparência assegurados pela automação? E os que, ao contrário, satanizam a tecnologia, encarada como instrumento de controle e espionagem social (big brother) pelas mesmas possibilidades de transparência?
Os que apostam no esgotamento da fórmula direita-esquerda se esquecem que a atuação dos partidos e governos é muito mais definidora de um posicionamento político do que a retórica de seus líderes e ideólogos. Quando Trotsky foi perseguido e assassinado por ordem do comunista Stalin, quem estava à esquerda e quem estava à direita? Quando o comunista Luís Carlos Prestes se aliou a Getúlio em 1950, na eleição presidencial vencida pelo baixinho de São Borja, quem estava onde?
Ou seja: são a práxis, a atuação e a ação os fatores determinantes de um posicionamento à direita ou à esquerda, e não os discursos. Partidos que se autoproclamam de esquerda no Brasil por vezes têm assumido posturas liberais conservadoras em sua atuação nas câmaras e assembleias. Foi por inspiração do PTB getulista que surgiu a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) modernizadora das relações de trabalho, com a demarcação dos direitos trabalhistas. Direitos hoje combatidos pelo PTB e defendidos bravamente pelo PT de Dilma, que teve por vice Michel Temer, acusado agora de responsável por uma reforma trabalhista acoimada de eliminar esses mesmos direitos. Onde ficam direita e esquerda no meio disso tudo?
O populismo e o pragmatismo empurraram o principal partido trabalhista brasileiro da era moderna à vala comum da velha política em que os fins justificam (quaisquer) meios, embora o PT ainda se autoproclame uma legenda de esquerda. E talvez porque a esquerda ainda desperte um certo charme, legenda alguma, entre as dezenas de partidos que nascem como cogumelos dia sim e outro também, se assume como de direita. No máximo, se dizem de centro-esquerda, seja lá o que isto signifique. O PSDB de José Serra, militante de esquerda durante a ditadura, quando presidiu a União Nacional dos Estudantes (UNE), se autodenominava legenda de centro-esquerda em seus primórdios.
Nem é necessário pregar a necessidade de uma refundação da esquerda brasileira: essa deveria ser tarefa constante e diária. Desses embates surgiram inclusive legendas como o Psol. Em sentido inverso, o abandono de postulados superados da doutrina comunista clássica como ditadura do proletariado, luta de classes e a estatização dos meios de produção resultou em experiências como o PPS, legenda derivada do velho Partidão, e que ainda busca um azimute ideológico.
A necessidade de um partido ostensivamente assumido à direita, bem como a renovação e a revisão assumida e honesta dos postulados da esquerda seriam muito salutares à conturbada quadra atual da vida política brasileira. Como diriam Millôr Fernandes e Flávio Rangel, naquela alegoria deliciosamente escrachada que integra o texto da peça “Liberdade, Liberdade”, em plena ditadura:
– Neste momento, achamos fundamental que cada um tome uma posição definida. Sem que cada um tome uma posição definida, não é possível continuarmos. É fundamental que cada um tome uma posição, seja para a esquerda, seja para a direita. Admitimos mesmo que alguns tomem uma posição neutra, fiquem de braços cruzados. Mas é preciso que cada um, uma vez tomada sua posição, fique nela! Porque senão, companheiros, as cadeiras do teatro rangem muito e ninguém ouve nada.
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