O Ministério da Justiça (MJ) deve apresentar nas próximas semanas um projeto que, caso aprovado, diminuirá consideravelmente a privacidade do usuário de internet. O texto vai aumentar o rigor na identificação dos internautas, exigindo dos provedores de acesso dados como o número do RG e nome dos pais de quem está atrás do computador durante toda a navegação. O objetivo é coibir a prática de crimes na rede.
A ideia do MJ seria similar a um taxista que, quando parasse para pegar um passageiro, exigisse o nome, o RG e a filiação para começar uma corrida. Segundo o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), autor do substitutivo ao Projeto de Lei (PL) 84/99, que muda o Código Penal para tipificar condutas relacionadas ao uso de sistema eletrônico ou da internet, o ministério quer a inclusão de pontos que não foram discutidos até hoje pelo Congresso.
“O Ministério da Justiça quer alterar alguns pontos do projeto. Entre eles, a pasta propõe a identificação do usuário durante a navegação na internet”, disse ao Congresso em Foco o senador, que foi informado pelo próprio ministério da mudança. A proposta é mais restritiva do que a elaborada pelo tucano. No texto que tramita na Câmara, os provedores seriam obrigados a guardar todos os registros de conexão de seus usuários – hórário de log on e log off – em seus arquivos. O texto diz que eles seriam acessados somente com decisão judicial.
A minuta é guardada em sigilo pelo Ministério da Justiça. O secretário de Assuntos Legislativos do ministério, Pedro Abramovay, responsável pela discussão do projeto, confirmou que um novo projeto está sendo confeccionado, mas não quis adiantar o teor do texto. O substitutivo de Azeredo, aprovado pelo Senado, tramita em três comissões da Câmara. Em uma delas, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), ele já recebeu parecer favorável.
Na última quinta-feira (19), ele se reuniu com o deputado Régis de Oliveira (PSC-SP), relator do PL 84 na CCJ. Ele relatou ao parlamentar que a intenção é apresentar uma série de mudanças no substitutivo. O ministério recomendaria a aprovação da matéria em tramitação desde que uma série de artigos fossem excluídos. Depois, a pasta enviaria a nova proposta para o Congresso.
“Toda a discussão fica prejudicada com essa decisão”, comentou Oliveira ao Congresso em Foco. O parlamentar foi o primeiro a apresentar seu relatório, já que o substitutivo também tramita nas comissões de Segurança Pública e Ciência e Tecnologia. Em 5 de março, ele disse que o projeto é constitucional, tem amparo legal. Oliveira também pediu a aprovação do mérito. A matéria, entretanto, não chegou a ser votada pelos membros da comissão.
“A preocupação que surge é que, juntamente com a evolução das técnicas na área da informática, a sua expansão [da internet] foi acompanhada por aumento e diversificação das ações criminosas, que passaram a incidir em manipulações de informações, difusão de vírus eletrônico, clonagem de senhas bancárias, falsificação de cartão de crédito, divulgação de informações contidas em bancos de dados, dentre outras”, afirmou o deputado no relatório.
Para o professor da Faculdade Cásper Líbero e membro do movimento Software Livre Sérgio Amadeu, o MJ foi obrigado a se posicionar por conta de pressões feitas pela Polícia Federal e pela própria sociedade civil. Na visão de Amadeu, a ideia de aumentar o rigor na identificação do usuário atenderia a pedidos da comunidade de vigilância. Órgãos como a PF e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) teriam interesses nos dados.
“As comunidades de vigilância também querem que a obrigatoriedade da identificação seja estendida aos provedores de conteúdo”, afirmou o professor. Amadeu, porém, frisa que o MJ, até o momento, mostrou-se mais disposto ao diálogo com a sociedade civil organizada. “O secretário Pedro Abramovay tem algumas opiniões muito próximas da comunidade acadêmica.”
O jornalista Pedro Dória, bolsista do programa John S. Knight Fellowships da Universidade de Stanford (EUA), onde estuda os rumos da democracia pressionada pela tecnologia e pelas novas formas de ditadura no mundo, acredita ser sintomático a criação de um novo texto pelo Ministério da Justiça. “O Congresso não ouviu [a sociedade civil]. Foi o ministério que agiu. Há mais e mais gente no Executivo atentos [à discussão].” Em seu blog, Dória abordou o assunto por diversas vezes.
“Se [os críticos] achavam o substitutivo ruim, vão considerar esse muito pior”, comentou Azeredo. Uma das polêmicas, no substitutivo, com relação à manutenção dos dados do usuário no provedor, é o tempo que ele ficaria armazenado. Durante a discussão da matéria, não se chegou a um consenso do período.
Enquanto os parlamentares consideravam até três anos, membros da sociedade civil aceitavam até seis meses. “Uma empresa guardar o nosso rastro por mais de seis meses é inaceitável. Nós precisamos equilibrar a segurança com a privacidade. Do jeito atual, a balança está completamente desequilibrada”, afirmou Amadeu.
Crimes
A proposta tipifica 13 novos tipos de crimes. Se aprovada, entram para o Código Penal manipulações de informações, difusão de vírus eletrônico, clonagem de senhas bancárias, falsificação de cartão de crédito, divulgação e informações contidas em bancos de dados, por exemplo. “A ação criminosa também pode configurar ações já tipificadas na legislação penal”, afirmou Régis de Oliveira.
Nesse caso, furto, apropriação indébita, estelionato, violação da intimidade ou do sigilo das comunicações, crimes praticados contra o sistema financeiro, contra a legislação autoral, contra o consumidor e a divulgação de material pornográfico envolvendo crianças e adolescentes são reforçados com o novo projeto.
As novas tipificações modificam e ampliam cinco leis brasileiras: Código Penal, Código Penal Militar, Lei de Repressão Uniforme, Lei Afonso Arinos e Estatuto da Criança e do Adolescente. “A criminalidade envolvendo a informática tem crescido rapidamente na mesma proporção que o avanço extraordinário das novas tecnologias da comunicação e da informação”, analisou o deputado do PSC.
Críticas
Alguns parlamentares ouvidos pelo site se preocupam com o tempo usado na discussão da matéria. O projeto original, da Câmara, começou a tramitar em 1999. A ele, foram incluídos outros dois vindos do Senado. “Boa parte das discordâncias é semântica. O Ministério da Justiça, com esse novo projeto, desrespeita todo o trabalho feito pelos parlamentares”, atacou Azeredo.
Ele diz até aceitar a retirada de alguns pontos, mas considera prejudicial a inclusão de temas que não foram discutidos até o momento. Régis de Oliveira tem a mesma preocupação. Ele acrescenta, porém, que o próprio Congresso já poderia ter transformado o projeto em lei. “Ele está demorando muito nas comissões. Não sei por quê ele foi para distribuído para três diferentes.”
Mesmo que o Ministério da Justiça não fosse apresentar um novo texto, o PL 84/99 já estava com seu trâmite prejudicado. Dois dos seus relatores não foram reconduzidos às comissões: Julio Semeghini (PSDB-SP), da Ciência e Tecnologia, e Pinto Itamaraty (PSDB-MA), da Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado. Como eles não chegaram a apresentar um parecer sobre o projeto, os presidentes das comissões teriam que apontar novos relatores.
Em novembro, por meio de uma audiência pública, a Câmara discutiu o projeto, que acabou sendo altamente criticado. “Precisamos reforçar o caráter democrático da internet, que é uma grande conquista da sociedade”, disse Abramovay na oportunidade. O desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) Fernando Botelho acrescentou que a legislação não pode ferir garantias constitucionais, como a liberdade de expressão e o direito à privacidade.
Durante a audiência, os professores da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ), Luiz Fernando Moncau e Thiago Bottino, defenderam a criação de um modelo civil, onde os direitos e deveres de cada parte estejam bem definidos. Depois, se houver problemas, que surja a parte penal. “A maior parte da Europa é assim, nos EUA também, na Argentina”, citou Moncau. Para ele, o projeto não é adequado, e é capaz de criar instabilidade jurídica.
Na internet, o receio sobre o projeto é grande. Tanto que um grupo de internautas começou a se mobilizar para impedir que a matéria vire lei. O primeiro passo foi criar um abaixo assinado virtual. Dirigido ao Senado brasileiro, ele já conta com mais de 140 mil assinaturas. “O substitutivo do Senador Eduardo Azeredo quer bloquear o uso de redes P2P, quer liquidar com o avanço das redes de conexão abertas (Wi-Fi) e quer exigir que todos os provedores de acesso à Internet se tornem delatores de seus usuários, colocando cada um como provável criminoso”, diz o texto da petição.
É aí que entra um outro problema. Na visão de muitos internautas, o projeto acabaria policiando a troca de arquivos de música e vídeo, dificultando a discussão dos direitos autorais no país. “Pirataria é a circulação de mercadorias em troca de dinheiro, compartilhamento não visa fins lucrativos”, disse ao Congresso em Foco o membro de um grupo que se mobiliza na internet. Ele não quis se identificar.
Pedro Dória aponta que o substitutivo torna crime divulgar, utilizar, comercializar ou disponibilizar dados e informações pessoais. “Isso é o que a internet faz toda hora. Ele basicamente inviabiliza você enviar o e-mail de uma pessoa para outra. Ou utilizar informações que encontre num Facebook ou Orkut, ou mesmo Google. É um artigo sem pé nem cabeça”, opinou, em entrevista por e-mail ao site.
Mas ele acredita que, caso o projeto seja aprovado com a atual redação, não vai mudar o comportamento do internauta. “As pessoas continuarão baixando músicas e filmes. É uma ilusão achar que criminalizar, ou facilitar a condenação judicial, vai mudar o problema maior que as gravadoras e estúdios têm”, comentou.
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