Elian Rovani passou o dia na fazenda do pai, distante cerca de oito quilômetros de Marcelândia, no extremo Norte do Mato Grosso, naquela segunda-feira, 30 de novembro de 2015. Estava acompanhado do irmão, Edgar, e do primo Lucas, que tinha vindo do Paraná para visitar a família. Elian estava feliz porque o pai, Milton, deixou-o dirigir o trator e levar sal para o gado. Aos 15 anos, trabalhava como homem na fazenda, mas tinha sonhos de menino. Queria estudar no Canadá e montar um zoológico na propriedade do pai. No início da noite, os irmãos e o primo pegaram o Fiat Uno preto, acompanhados do empregado Everaldo, e seguiram para a cidade. Chegaram rapidamente à ponte de madeira sobre o Rio dos Patos, na estrada estadual MT-320, às 19h35. Velha, sem muretas, sem proteção nas cabeceiras, sem iluminação e sinalização, não apresentava qualquer segurança. Mas naquele dia eles enfrentariam um perigo ainda maior.
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Na direção, Edgar, de 25 anos, percebeu que um caminhão se aproximava velozmente no sentido contrário, vindo da cidade. O veículo, descontrolado, passou reto pelo quebra-molas e seguiu saltando, aos trancos. Como a ponte permitia a passagem de apenas um veículo por vez, Edgar acelerou para atravessar logo e evitar um possível choque. Elian estava ocupado digitando mensagens ao celular e, talvez, nem tenha percebido o que ocorria. O carro passou a ponte e estacionou no acostamento à direita. Mas Edgar viu que a carreta Scania, de uma transportadora de Sinop (MT), se aproximava rapidamente.
Passou por um trecho de terra e seguiu em direção ao bueiro que estava em construção. Deveria ter feito uma curva à direita para chegar à ponte, mas bateu num monte de terra que impedia a passagem para o bueiro. O cavalo – composto pela cabine e pelas rodas que tracionam o caminhão – dobrou à direita. A carga da carreta arrebentou a tampa e a madeira transportada caiu em cima do carro, esparramando-se por todos os lados. A carreta seguiu desgovernada, passou com as rodas traseiras da carroceria por cima do carro e parou em cima da ponte, meio que capotada, com parte da carroceria dependurada para fora.
Meio metro
Milton Rovani, o pai, estava na fazenda consertando uma cerca quando tocou o telefone. Eram 19h39. Não atendeu. Quando terminou de esticar o arame, seguiu para a cidade. Não haviam combinado o horário da volta. Passou por duas porteiras, três quilômetros em estrada de chão e chegou ao asfalto. O celular tocou de novo. Quando viu que era o DDD 44, pensou: “Ah! É o meu irmão [pai de Lucas]. Chegando lá, eu ligo”. Era o sobrinho Lucas, já acidentado.
Poucos minutos após, Milton chegou à ponte e viu um cenário de tragédia. Os faróis do carro mostravam aquele caminhão meio torto em cima da ponte, com tábuas de madeira esparramadas ao redor. Estava difícil transpor os montes. Alguém veio pelo outro lado e disse:
– Tem um carro aqui com três pessoas presas dentro.
Não imaginou que seriam seus filhos. Milton viu o motorista do caminhão caído de bruços, como se estivesse morto. Estava desmaiado. Pensou: “Com o motorista não tem o que fazer”. Passou por cima das madeiras e atravessou a ponte, procurando o carro. Estava uma bagunça, mas o encontrou. Apontou a lanterna e viu apenas a primeira letra da placa, coberta por madeiras, vigas, pranchas. O carro, reduzido a pouco mais de meio metro de altura.
– Quando vi que era um Uno preto levei um choque. Dei uma volta grande, desviando as tábuas, e fui clarear na frente. Quando identifiquei duas letras da placa, eu vi alguém tentando tirar as madeiras de cima do carro com a mão.
Ele iluminou e perguntou?
– É você que tá aí, filho?
Edgar confirmou. Lucas já havia saído pelo vidro da porta direita. Milton perguntou:
– Quem mais veio com vocês?
– Pai, o Elian não está conversando – respondeu o filho mais velho.
Como ele não conseguiu ver o caçula, deu mais uma volta grande e iluminou o filho por baixo das ferragens. O menino estava com a boca quebrada, imóvel, já ficando pálido, com sangue escorrendo dos dois ouvidos. Como não estava preso, foi retirado pela janela.
– Tive mais um choque. “Tá morto”, pensei. Pedi ajuda a Deus: “O que eu faço aqui?”.
A esperança
Ainda havia uma esperança, e era preciso retirar Edgar das ferragens. Inicialmente, fez uma alavanca com um pedaço de madeira e tentou levantar o teto do carro, sem sucesso. Lembrou que tinha uma serra de ferro no interior do veículo. Foi até lá, pegou a serra e uma corrente e voltou. Com a ajuda de pessoas que chegavam, tentou abrir a porta. Não deu certo. Começou a serrar onde a porta dobra e conseguiram entortar a parte que sustenta o vidro. Mas com cuidado, porque Edgar estava todo amassado, transpassado por ferragens. Reclamava de dores. A chave do carro estava enfiada na sua perna direita. Foram chegando mais moradores, mas não havia corpo de bombeiros na cidade.
Naquele momento, já era possível entender o que havia acontecido. Parte da madeira caiu em cima do carro e esmagou as pessoas que estavam dentro. Elian, que digitava no celular, recebeu a pancada em cheio na cabeça. O pneu abaixo dele estourou com o peso da madeira. Os outros três deitaram-se para a direita para fugir do choque, e assim ficaram. Edgar e Everaldo, que estava no banco de trás, ficaram presos. Everardo sofreu um corte profundo acima do joelho. Arranhou o osso da perna e cortou o tendão, que teve de ser emendado. Também quebrou a clavícula e a perna. Fez cinco cirurgias.
Enquanto ainda serrava, chegaram o médico, a sua mulher e a funcionária no escritório de contabilidade, Keila. Milton orientou o médico:
– Vê o Elian que ele não tá conversando.
Ainda aquela esperança. Quando cortava a coluna do meio, Milton olhou para a ambulância e viu que estavam fazendo massagem cardíaca em Elian.
– Meu Deus, tá morto!
Os médicos insistiram por algum tempo, mas depois pararam, com ar de desânimo, e acomodaram o corpo do menino na ambulância. O pescoço havia quebrado em dois lugares no momento do choque. Era o fim.
Mas não havia tempo para chorar. Milton continuava tentando salvar o outro filho. Faltaram-lhe as forças e ele teve que passar a serra para um rapaz. As pessoas continuavam tirando a madeira de cima. Terminaram de cortar, engataram a corrente e levantaram o teto do carro. Ele sentou-se no banco do carona e ficou apoiando o filho, que já estava mais confortável. Imaginou que as pernas estavam quebradas. Edgar ficou por duas horas preso. Tiveram que ir buscar macaco hidráulico na cidade, distante cinco quilômetros, para levantar a parte dianteira do carro. Ele foi levado para um hospital em Colíder, distante 126 quilômetros.
Aulas suspensas
Centenas de pessoas aguardavam, em frente ao hospital da cidade, notícias sobre o acidente na ponte. Aulas foram suspensas nos dias seguintes. Elian cursava o segundo ano do segundo grau. Estaria formado aos 16 anos no final do ano seguinte. O terceiro ano da escola particular já estava pago. Queria estudar veterinária, com o irmão. Ajudava o pai no escritório de contabilidade, mas dizia que preferia trabalhar na fazenda. Torcedor do São Paulo, tinha “uns namoricos”, mas nada sério, conta o pai.
A mãe interrompe o relato do pai e fala dos sonhos do filho:
– Ele falava que ia para o Canadá estudar e depois fazer um zoológico na nossa fazenda. Ele dizia: “É muito investimento, mas não é agora, mãe”.
A mulher começa a chorar baixinho e não consegue falar mais nada. Recostado na mesma poltrona onde costumava assistir televisão junto com o filho, o pai controla a emoção e prossegue:
– Estava feliz porque deixamos ele levar sal no cocho. Dirigia trator, camionete, Golf lá na fazenda. Aqui na cidade, não.
A fazenda de 800 hectares já teve mais de 800 cabeças de gado. Mas Milton teve que vender a maior parte para investir na faculdade do filho e da nora.
– Tivemos bem mais gasto do que renda e foi murchando o gado. O gado é o que se vende quando precisa de dinheiro.
Sobre a vocação de Elian, comentou:
– Primeiro, falou em fazer veterinária porque o outro irmão tinha feito. Depois, eu falei: “Ah, filho, você faz o que você quiser, mas pra dar um par bonito, você faz agronomia. Ele cuida dos animais e você cuida da terra”. Ele gostou bastante, mas era jovem ainda.
O pai confirma que o rapaz preferia a fazenda ao escritório. Gostava de andar a cavalo, ajudava a vacinar o gado. Já estava pegando todo o serviço.
– Eu dizia: você pode ser um adolescente. Mas lá, na fazenda, você já é um homem para trabalhar. Toda hora que trabalhar, você marca e eu pago R$ 6,00 por hora. Ele anotava tudo no celular. Quando morreu, tinha R$ 1,2 mil para receber.
Cinco pontes
A estrada estadual que liga Marcelândia à BR 163, numa extensão de 92 quilômetros, é quase toda asfaltada, mas conta com cinco pontes de madeira, todas sem guarda, sem sinalização, sem proteção nas cabeceiras, com espaço para a passagem de apenas um carro por vez. A primeira delas, partindo da BR-163, está inclinada para um lado. Quando estivemos na cidade, em maio deste ano, observamos por baixo que um pilar está quebrado, torto. Ele é mantido por uma emenda de ferro, presa por quatro parafusos.
Conversamos com o prefeito da cidade, Arnóbio Andrade (PSD), no final de mais uma tarde quente e abafada. Era um sábado. No quintal, à beira da piscina, ele comentou o descaso do estado com a estrada:
– Não sei se faltou recurso ou planejamento para construírem as pontes.
Ele lembra que o trânsito é intenso, com muitas carretas transportando gado, madeira, grãos.
– Tem cidadão que coloca até 100 toneladas de carga numa carreta dessas de nove eixos. As pontes foram construídas para os chamados caminhões truque, com o máximo de 25 toneladas. Elas não suportam o peso, e a cada seis meses têm que ser recuperadas.
Mas ele ressalta que as estradas estaduais são da “exclusiva responsabilidade” do governo do estado.
A Secretaria de Infraestrutura (Sinfra) do Mato Grosso afirmou que já encaminhou ao governo federal projeto de instalação de pontes na MT-320. Aguarda agora o aval da União para a liberação de recursos para investimentos na recuperação de pontes no estado. A reportagem enviou à Sinfra fotos do pilar de madeira quebrado em uma das pontes. A secretaria respondeu que tem conhecimento da situação e estuda quais medidas irá tomar para a resolução do caso.
Desmatamento
O transporte de madeira é responsável por boa parte das cargas que passam pela MT-320. Há grandes madeireiras no município, que foi implantado a partir da derrubada de mata nativa na década de 70. Chegou a ter cerca de 200 madeireiras. O desmatamento superou os 300 mil hectares, ou 3 mil quilômetros quadrados – mais da metade da área do Distrito Federal. O prefeito conta, com orgulho, como foi esse processo.
– Deve-se a criação da cidade ao arrojo de um cidadão chamado José Bianchinni. Na época da revolução, tinha um slogan: “Integrar para não entregar”. Ele foi incentivado a colonizar. E as madeireiras abriram isso aqui, a trancos e barrancos, porque naquela época exigia-se que o ocupante da área a desmatasse, sob o risco de perder a posse. Tinha que desmatar. Então, foi um cumprimento à determinação legal.
O nome da cidade é uma homenagem ao filho do colonizador, Marcelo.
Questionado se era tudo mata nativa, o prefeito responde prontamente:
– Tudo mata nativa. Aqui faz parte da Floresta Amazônica. Nós temos 1 milhão e 230 mil hectares da área, com cerca de 300 mil hectares abertos. O resto está tudo com mata. Só na Reserva do Xingu tem 160 mil hectares de floresta.
Ele não se conforma com essa situação.
– Hoje, o cidadão que tem uma área pode desmatar até 20% para explorar com lavoura, com pecuária. O resto tem que ficar como reserva. O Brasil é um dos poucos países do mundo onde se faz reserva ambiental. Na Europa, até nas margens dos grandes rios tem agricultura. Nós entendemos a necessidade de manter uma reserva, mas em termos racionais. Foi, parece-me, um delírio etílico do Sarney Filho, que entrou com essa proposta, executada pelo presidente FHC, de fazer uma reserva de 80%.
E faz uma comparação estranha:
– Você compra uma residência com 10 quartos e pode usar dois? Quem é que remunera o proprietário para manter a floresta? Nós temos que ser o pulmão do mundo, mas quem vai nos compensar por esse trabalho?
Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Marcelândia tem hoje 3,5 mil quilômetros quadrados de área desmatada – o equivalente a 28,7% do território do município. Quanto ao aumento do desflorestamento em relação ao ano anterior, está em quarto lugar no estado em área devastada: 35 quilômetros quadrados.
O acidente
Sobre o acidente que vitimou Elian, o prefeito aponta o motorista como único responsável:
– Foi um coitado de um carreteiro, não sei se por irresponsabilidade ou se tomado pela droga. Consta nos laudos médicos e da polícia que ele estava drogado, porque o álcool também é uma droga. Não foi a ponte a causadora. Antes da ponte, a carga já havia tombado. Se fosse para dois carros, aconteceria do mesmo modo.
O bueiro que estava em construção era uma obra da prefeitura. Foi aberto ao trânsito logo após o acidente. Já apresenta defeitos. Uma parede lateral, feita de tábuas, abriu com a pressão das pedras colocadas no aterro.
O prefeito foi questionado sobre a ponte que tem um pilar quebrado, com uma emenda de ferro.
– Com o suporte, ela aguenta bem o peso – respondeu.
Milton Rovani também aponta o motorista como principal responsável pela morte de seu filho. Ele acionou a transportadora de Sinop na Justiça e pediu ressarcimento financeiro.
– O dono da empresa veio conversar comigo, queria que a gente não entrasse com processo. Mas a seguradora não vai pagar nada se não tiver um processo. Segundo, eu quero ver esse motorista preso. Porque um cara que vai dirigir de noite, bêbado, e passa por cima de um carro… Foi tirada mostra de sangue e feito exame. Deu 19 ml de álcool. Três ou quatro já estão acima do limite. Agora vou fazer acordo? O que adianta pegar dinheiro? Vou pedir dinheiro porque o carro acabou.
Mas ele também aponta outras falhas que resultaram no acidente:
– Se fosse mover ação contra a prefeitura, contra o estado, seria mais sério porque o governo não fez a ponte, não tem sinalização no asfalto. A prefeitura estava fazendo uma obra. Se tivesse feito quebra-molas lá pra trás, o caminhão teria parado. A madeira não estava bem amarrada com aquelas fitas. As fitas estouraram e muita madeira caiu esparramada.
Na madrugada do dia 2 de junho deste ano, o policial Celso Montipó, acompanhado do advogado Vinícios Menegol, perdeu o controle da sua Lifan vermelha e caiu numa das pontes de madeira no trecho da MT-320 entre Marcelândia e Nova Santa Helena. Uma das pontes estreitas, sem guarda, sem iluminação, sem sinalização e sem compromisso com a segurança do usuário. O carro capotou e ficou muito amassado. Presos às ferragens, os dois não resistiram aos ferimentos. Morreram no local.
Confira amanhã: “As pontes de toras de árvore em meio à Floresta Amazônica”
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Cadê os motoristas baba ovos do Bolsonaro que ficam filmando estradas e pontes sendo construídas no meio da Floresta Amazônica, que ligam nada no nada, pra filmarem as pontes caindo aos pedaços nas áreas de grandes tráfegos por esse Brasil afora?