Lauro Rutkowski*
Fotógrafos se espremem às portas da sala da CPI, à espera do momento de captar as melhores imagens do indiciado. Repórteres dividem preciosos metros quadrados com os colegas e, ansiosos, aguardam o momento certo de ligar seus microfones. Os flashes iluminam o ambiente e, conduzido por policiais federais, irrompe no local o acusado, com um jeitão meio assustado e um tanto suado – afinal, foi trazido “sob vara” direto da academia de ginástica, por deliberação dos parlamentares integrantes da Comissão meia hora atrás…
Passado o frisson inicial, surge a primeira pergunta do relator da comissão.Faz-se o silêncio. E, em seguida, a primeira resposta do acusado: “Gostaria de exercer o meu direito constitucional ao silêncio” – balbucia o indiciado. Frustração: nenhuma revelação.
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A hipotética cena pode se tornar realidade com a aprovação do projeto de Lei 2.226/2007. Acusados (culpados ou inocentes, não importa) e testemunhas poderão ser trazidos “na marra” às salas da CPI sem necessidade de ordem judicial. Para tal, bastaria modificar a Lei 1.579/52, que dispõe sobre as CPIs.
É lei antiga, diploma anterior à atual Constituição de 1988, mas que apresenta comandos plenamente vigentes quanto à condução coercitiva de indiciados e testemunhas. Diz a lei de 1952:
“Art. 3º. Indiciados e testemunhas serão intimados de acordo com as prescrições estabelecidas na legislação penal.
§ 1o Em caso de não-comparecimento da testemunha sem motivo justificado, a sua intimação será solicitada ao juiz criminal da localidade em que resida ou se encontre, na forma do art. 218 do Código de Processo Penal. (Renumerado pela Lei nº 10.679, de 23.5.2003)”
No Código de Processo Penal, o artigo 218 (referido pela lei) está localizado no Capítulo VI (que versa sobre as testemunhas), por sua vez inserido no Título VII (que trata de diversos aspectos das provas), inserto no Livro I (que traz as regras básicas do processo em geral). Diz o artigo:
“Art. 218. Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.”
A norma estabelece, portanto, que a condução coercitiva exige ordem de um terceiro poder alheio ao Legislativo: o Judiciário. A CPI, sozinha, não pode ordenar à autoridade policial que traga, à força, terceiros à sua presença. O que faz o maior sentido, uma vez que é racional dividir o poder para evitar seu abuso por déspotas de plantão.
A Constituição, no artigo 58, parágrafo 3º, conferiu às CPIs “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas” para “a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”. Ou seja, o dispositivo não deu expressamente a essas comissões o poder de condução coercitiva – e muito menos lhes atribuiu as prerrogativas de promoção da ação penal e de julgamento.
Ou seja, se a pessoa foi regularmente intimada e não aparece na CPI, basta à comissão requer ao Poder Judiciário que mande a polícia conduzi-la à presença dos parlamentares que a convocaram. Atente-se, porém, que a letra da lei permite a condução coercitiva apenas das testemunhas – e não do indiciado, suspeito, acusado – enfim, da pessoa sobre a qual, por algum motivo ou outro, paira a suspeita de cometimento de ato ilícito.
O projeto de lei que tramita na Câmara coloca testemunhas e indiciados no mesmo pacote – embora, como se verá adiante, o ordenamento as coloque em “gavetas” devidamente distintas. Afinal, uma é obrigada a dizer tudo que sabe (testemunha compromissada) e outra pode fazer cara de paisagem e recorrer ao direito de permanecer calada (a pessoa acusada). Diz o texto do PL, que modifica o parágrafo 1.º da Lei 1.579/52:
“Em caso de não comparecimento de indiciado ou testemunha, sem motivo justificado, a CPI determinará sua condução coercitiva para que preste depoimento”.
Enfim, unidos pela lei, testemunhas e acusados poderão ser trazidos à CPI sem necessidade de intermediação do Judiciário, por ordem dos parlamentares que a compõem. Terão o poder de mandar a Polícia Federal arrastar até o plenário quem quiser. Para escapar da CPI, acusados e testemunhas poderão apenas alegar “motivo justificado” – expressão vaga na qual se pode enquadrar desde uma consulta ao dentista até uma viagem de última hora ao exterior. Na prática, irão mesmo é buscar a tutela judicial via habeas corpus.
Em uma primeira análise, pode-se até louvar a iniciativa de mudar a lei, uma vez que a medida poderá dar eficácia a convocações desprezadas por quem não quer – de jeito algum – aparecer nos jornais e na televisão sentado em uma cadeira durante um interrogatório sem fim. Sem dúvida as CPIs terão mais força para impor a terceiros sua vontade. Bastará uma deliberação da CPI e uma ordem à Polícia Federal.
Porém, como foi dito acima, acusados e testemunhas estão em “caixinhas jurídicas” diversas. O primeiro deve falar. O segundo pode calar. O problema é que, quando se fala em CPI, há sempre uma testemunha “enrolada” – a um passo de virar indiciada. Salvo no caso de testemunhas voluntárias – como secretárias e motoristas do passado –, que se dirigiriam à CPI sem necessidade de condução policial forçada. Para estes últimos, a mudança na lei é inócua.
Porém, testemunhas ou acusados, na dúvida sobre se podem vir a ser incriminados pelas próprias palavras, poderão ficar em silêncio, escorados em inciso do art. 5.º da Constituição:
“LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (grifo nosso).
Embora pareça ao leigo algo fora de esquadro comparar o preso comum a pessoas que são convocadas por CPI, dá-se o direito ao silêncio a estas últimas pela necessidade de atribuir ao dispositivo constitucional mencionado a interpretação que mais eficácia lhe empreste. Isto é, se o preso pode não se incriminar diante do delegado ou do juiz, o mesmo vale em situações análogas, vividas por quem está a ser acusado de ilicitude em processos de outras naturezas.
A esta altura, uma pincelada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal mostra que calar é possível, admissível, legítimo e constitucional, como demonstram o acórdãos abaixo citados, com destaques nossos:
“Qualquer pessoa tem o direito público subjetivo de permanecer calado quando for prestar depoimento perante órgão do Poder Legislativo, Executivo ou Judiciário” (HC 83357 / DF – DISTRITO FEDERAL).
“É jurisprudência pacífica no Supremo Tribunal Federal a possibilidade do investigado ou acusado permanecer em silêncio, evitando-se a auto-incriminação. “(HC 89269 / DF – DISTRITO FEDERAL)
“O privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário. – O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental. Precedentes. O direito ao silêncio – enquanto poder jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativamente a perguntas cujas respostas possam incriminá-la (nemo tenetur se detegere) – impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou venha, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado. – Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada
A esta altura do artigo, o leitor deve pensar que nada há a fazer, então, a não ser assistir a um festival de convocações inócuas de pessoas que, apesar de conduzidas coercitivamente, ficarão emudecidas diante da CPI. Claro que algumas testemunhas e alguns indiciados – juridicamente menos esclarecidos – podem vir a se contradizer e até revelar verdades às comissões. Serão exceções – como foram ontem e são hoje. Abrir o bico em CPI é algo que só acontece com quem quer ou com quem se descuidou. E mesmo nesse último caso basta “desdizer” tudo mais adiante, ao longo de eventual processo judicial.
O caminho das CPIs passa pela coleta robusta de provas de outra natureza, em trabalhos de técnica investigativa apurada e, preferencialmente, “na surdina” – a exemplo do que faz a Polícia Federal em longos meses de tocaia. Perícias e documentos comprovam mais fatos do que as palavras tortas de testemunhas “enroladas” e o silêncio dos culpados. É trabalho árduo e detalhado, mais afeito aos assessores da CPI do que aos parlamentares que a compõem.
Dessa forma, a mudança permitirá conduzir indiciados e testemunhas para sessões de fotos nas salas da CPI, submetendo-os ao constrangimento público (uma espécie de “pena antecipada”). Em alguns casos, essa seria a única punição – daí porque muitos a consideram “justa”. “Já que esse sujeito nunca vai ser condenado, afinal o processo não acaba nunca, vamos execrá-lo e queimar seu filme para sempre. Vamos humilhá-lo e submetê-lo ao escárnio em praça pública”, pensam muitos, às vezes recorrendo adjetivos mais fortes para (des) qualificar os depoentes “mudos” da CPI.
No entanto, se o objetivo é investigar, apurar e esclarecer para depois possibilitar uma condenação judicial fundamentada, parece não haver muito sentido mudar as regras da condução coercitiva. Mais vale uma consistente investigação em busca de provas incontestáveis, conduzida por assessores juridicamente capacitados, do que um triste espetáculo de perguntas sem respostas. E mais vale investir na reforma do Processo Penal com profundidade, dotando o Ministério Público e o Judiciário de boas condições de trabalho, do que atribuir mais poderes a comissões parlamentares que muitas vezes servem apenas a interesses políticos momentâneos.
*Lauro Rutkowski, 40 anos, é jornalista e advogado, sócio do escritório Quintanilha, Rezende & Rutkowski, com sede em Brasília.
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