O presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves, jamais esquecerá o dia 28 de agosto de 2013. E jamais os brasileiros bem informados deixarão de associar o deputado, que exerce o cargo pelo 11º mandato consecutivo, à data em que a casa legislativa por ele presidida tomou a inédita decisão de absolver um parlamentar condenado pelo Supremo Tribunal Federal a mais de 13 anos de prisão, em regime fechado, com sentença transitada em julgado (isto é, sem possibilidade de recurso).
Assim, passamos a ser o estranho caso – talvez único – de país em que um presidiário é deputado federal, embora seja impedido legalmente de sê-lo. Pior. Mal a Câmara decidiu manter o mandato de Natan Donadon (sem partido-RO), Henrique Alves anunciou aquilo que vários parlamentares gostariam que ele tivesse feito muito antes. Declarou formalmente a impossibilidade de Donadon exercer o mandato, colocando-o em licença forçada e convocando o suplente, Amir Lando (PMDB-RO), para assumir o seu lugar.
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Fez, portanto, exatamente o contrário do que os deputados haviam acabado de decidir. Na prática, cassou Donadon, que não poderá reassumir a cadeira na Câmara enquanto estiver preso. Como a sentença de prisão não pode mais ser modificada, ele é um deputado que só manterá esse título e os símbolos que lhe são próprios: o famoso botton, que abre portas em Brasília mas inspira revolta pelo país afora, o passaporte diplomático, de pouco uso para quem está na cadeia etc.
Henrique ainda arcará com o desgaste de ter protagonizado um raro espetáculo de desmoralização da política e do Congresso, mesmo para uma instituição habituada à prática da autodesmoralização. Foi o inusitado desfecho de um capítulo em tudo peculiar da história política brasileira.
Veja a seguir os principais lances dos bastidores da decisão.
Os alertas que Henrique não ouviu
Parlamentares de diferentes partidos, à esquerda e à direita, alertaram Henrique sobre os riscos de levar a decisão para plenário. “Eu disse ao Henrique: ‘Você vai cometer o maior erro da sua vida. Avoca a decisão para a Mesa Diretora e declara vago o mandato’”, relatava ao Congresso em Foco o experiente deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP), já temendo pelo pior, quando a votação de ontem à noite ainda estava em andamento.
Naquele momento, outro deputado, Jutahy Jr. (PSDB-BA), subia à tribuna para lamentar a realização da votação então em curso quando ele próprio havia apresentado, no debate sobre o tema na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a solução que evitaria o constrangimento imposto à Câmara e ao Poder Legislativo como um todo: aplicar o artigo 15 da Constituição, que prevê expressamente a perda dos direitos políticos em caso de “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”. Ora, argumentava, se alguém deixou de ter direitos políticos, não pode exercer mandato parlamentar. Algo lógico, razoável e em consonância com o que o STF – órgão máximo do Poder Judiciário – havia decidido.
No que Jutahy emendava outro argumento. Desde que a Constituição de 1988 foi alterada para permitir que o STF abrisse processo criminal contra parlamentares sem necessidade de autorização prévia do Congresso, o Supremo tornou-se o titular do julgamento de crimes cometidos por deputados e senadores. Bastaria assim que a Mesa Diretora da Câmara declarasse “de ofício” – ou seja, sem consultar o plenário ou qualquer outra instância – a perda de mandato de Donadon e a convocação do seu suplente.
Henrique atuou fortemente para evitar que o parecer de Jutahy fosse aprovado. Também se mobilizaram no mesmo sentido o PT e o PMDB, acompanhados pelo PTB, pelo PR e pela maioria dos partidos da base governista.
Por trás das articulações, o PT e o mensalão
A intensa mobilização para levar o assunto a plenário nada tinha a ver com o desejo de salvar Natan Donadon, um deputado do chamado “baixo clero”, cujo destino nunca foi objeto de preocupações maiores por parte dos caciques da Câmara. O objetivo era, isto sim, estabelecer um padrão para lidar com os deputados condenados pelo Supremo no processo do mensalão: João Paulo Cunha (PT-SP), José Genoino (PT-SP), Pedro Henry (PP-MT) e Valdemar Costa Neto (PR-SP).
Foi para protegê-los e lhes assegurar “amplo direito de defesa” que o PT pressionou seus representantes na CCJ a fulminarem o parecer de Jutahy. A ideia era lhes oferecer uma possibilidade final de se defenderem, atacarem a decisão do STF e, quem sabe, salvarem o mandato, com a prestimosa ajuda proporcionada pelo voto secreto. Na votação de ontem, curiosamente, 131 deputados rejeitaram a cassação do deputado de Rondônia e 41 se abstiveram, mas nenhum deles teve a dignidade de declarar o voto de público. Somente Natan Donadon defendeu a absolvição, num longo discurso (aqui, a íntegra). Afora as afirmações típicas (“sou inocente”, “não sou ladrão”, “sou vítima da imprensa sensacionalista e do Ministério Público”), sempre recebidas com cumplicidade numa casa em que muitos deputados são réus de ações criminais, Donadon causou impacto ao relatar, emocionado, como é a vida de quem está atrás das grades desde 28 de junho.
Na sessão, chamou atenção o fato de nenhum deputado do PT, maior bancada da Câmara, ter se manifestado. No plenário, vários petistas, em conversa com jornalistas, diziam ter votado pela cassação de Donadon, como ocorreu na semana anterior, na reunião da CCJ. Alguns parlamentares alinhados com o Palácio do Planalto, como o Delegado Protógenes (PCdoB-SP), chegaram a publicar no Twitter foto, feita pelo celular, para comprovar o voto sim, pela cassação do deputado de Rondônia. Mas a banda governista da Câmara preferia não lembrar de uma etapa decisiva do processo que culminou na votação de ontem à noite.
Na CCJ, em votação aberta, todos foram favoráveis à cassação de Donadon. O ponto de divergência ali foi levar ou não para plenário a discussão do assunto. De um lado, em voto separado, Jutahy e os partidos de oposição defendiam que a Constituição não apenas permitia, mas obrigava a Mesa Diretora da Câmara a declarar a perda de mandato, sem consulta ao plenário. Por 39 votos a 16, prevaleceu o parecer do relator Sérgio Zveiter (PSD-RJ). Não entraremos aqui em detalhes de uma sinuosa discussão jurídica, cujas minúcias os interessados poderão compreender melhor, se assim desejarem, examinando a íntegra do parecer derrotado de Jutahy e comparando-o com o relatório vencedor de Zveiter. O resumo da ópera é que Zveiter entendeu que o caso de Donadon se inscrevia no disposto no inciso VI do artigo 55 da Constituição, que se refere à hipótese de perda de mandato por “condenação criminal em sentença transitada em julgado”. Assim, seria impossível escapar da previsão do parágrafo segundo do mesmo artigo, que submete à decisão de cassar à deliberação “por voto secreto e maioria absoluta”, na casa legislativa a que pertencer o parlamentar (Câmara ou Senado). Não caberia, segundo ele, a aplicação do artigo 15, porque este trataria da situação de cidadãos comuns, não de parlamentares.
Engano imaginar que se tratava de uma discussão predominantemente técnica. Era, sobretudo, política. Vamos aceitar as condenações da Justiça que transitarem em julgado – algo, por sinal, perfeitamente adequado ao princípio da separação e do respeito mútuo entre os poderes, argumentavam os oposicionistas e uns poucos dissidentes do governo – ou vamos revê-las em plenário? Venceu a segunda tese.
Veja aqui como cada deputado votou na reunião da CCJ
Erro de cálculo
O que nem Henrique nem os alquimistas do PT e dos demais partidos da coalizão governista imaginavam é que Donadon seria inocentado. Aliás, o próprio Jutahy Jr., pouco antes de encerrar a votação de ontem, com o painel já apontando o número de 405 deputados votantes, previa que a cassação de Donadon passaria, com algo entre 270 e 285 votos favoráveis.
Todos subestimaram a força do “baixo clero”, do corporativismo e, sobretudo, do espírito de sobrevivência dos deputados. “Muita gente pensa assim: hoje é Donadon, mas e se amanhã for eu? Anota aí. A pizza já está saindo do forno, e será intragável. Esse pessoal do PT precisa parar de querer defender mensaleiros. Acabou, a Justiça julgou, e quem julgou foram os ministros indicados pelo próprio PT. A população não aceita mais isso. Quer vê-los presos. O PT se desgasta e desgasta todos nós”, protestava, exigindo off, um respeitável parlamentar da base do governo.
“Aconteceu o que temíamos, embora no fundo nem acreditássemos que fosse acontecer”, dizia após a votação o deputado Chico Alencar (Psol-RJ), que por pouco não foi vaiado ao tentar defender durante a sessão de ontem à noite a cassação de Natan Donadon. “Votar cassação em plenário, nesta legislatura e com voto secreto ainda por cima, era um risco que não precisávamos correr. Abriu-se essa possibilidade e estamos aí diante dessa vergonha total. Estou chocado, é uma loucura. Pela ausência, pela abstenção ou pelo voto contra a cassação, a maioria da Câmara demonstrou não ter nenhuma objeção à subtração de recursos públicos, mesmo que ela seja condenada pelo Judiciário, após longo processo transitado em julgado”.
O deputado César Colnago (PSDB-ES), que – assim como Chico Alencar – votou com o parecer de Jutahy na CCJ, ressalta a falta de pontaria de Henrique Eduardo Alves, do PMDB e do PT. Os dois primeiros, agindo em nome de um suposto gesto de afirmação da independência do Legislativo e da garantia do amplo direito de defesa. O último, mais que qualquer outro partido, solidários aos seus quadros históricos, condenados no processo do mensalão. “Eles queriam desmoralizar o Supremo, mas erraram o tiro. O PT há muito tempo vem tentando desmoralizar o STF, e acabou dando nisso. Um desgaste profundo do Parlamento, que infelizmente não afeta apenas aqueles que permitiram que isso acontecesse, mas todos os parlamentares, indistintamente”, analisa ele.
Apesar do monumental estrago, nem mesmo Natan Donadon saiu vitorioso da votação de ontem. Embora tenha conservado o mandato, foi colocado em licença e continuará sem receber os salários e demais benefícios (apartamento funcional para a família, verba de gabinete e cota para despesas extras). Perderam o Parlamento, as bancadas da oposição e do governo, a democracia e o próprio Donadon. Vitória mesmo só para quem vê na política uma forma de enriquecimento fácil, ainda que ao arrepio da lei. O recado da Câmara para estes é cristalino: roubem à vontade, que depois a gente livra a barra de vocês. E assim será até que Henrique Eduardo Alves finalmente leve a plenário a PEC do Voto Aberto, que acabará com as votações secretas no Congresso. Não custa lembrar que com o voto aberto, na reunião da CCJ, a cassação de Donadon foi mantida por unanimidade.
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