Giuliander Carpes, da Agência Pública
Em julho do ano passado, um grito ecoou na maior favela da zona Sul do Rio de Janeiro e ultrapassou fronteiras. Como se viesse das caixas de som da rádio poste da Rocinha, o clamor da viúva do pedreiro desaparecido nas mãos da polícia multiplicou-se pelas faixas dos protestos de rua, que sacudiam o país desde junho, e ganhou as redes sociais.
“Cadê o Amarildo?”, o mundo passou a perguntar, como se o conhecesse ali do botequim do Julio, na parte baixa da comunidade. Com a pressão da sociedade, as investigações seguiram adiante. Acabaram revelando que o marido de Elisabete Gomes, trabalhador e pai de 7 filhos, foi torturado e morto pelos policiais da UPP da Rocinha.
Os 25 policiais indiciados por participação nas torturas que levaram Amarildo à morte começaram a ser julgados este mês. Seu corpo, porém, continua desaparecido. Ainda assim o desfecho é uma raridade entre os casos de desaparecimento no Rio de Janeiro – muitos sequer são investigados.
O caso de Amarildo foi o único a ganhar visibilidade entre os 6.034 desaparecimentos contabilizados entre novembro de 2012 e outubro de 2013, pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) – não há dados mais recentes disponíveis. Desde o primeiro ano do governo Sérgio Cabral, as estatísticas do ISP (vinculado à Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro) apontam quase 40 mil desaparecidos.
Além da fragilidade das investigações policiais, o desaparecimento do pedreiro, denunciado por Elisabete, escancarou a violência encoberta pela empolgação com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), criada a partir de novembro de 2008, com a promessa de “pacificar” as favelas cariocas, martirizadas pelo crime organizado e pela polícia.
“Eu não vou parar de gritar, deixar isso impune. Já que eles (os acusados pelo crime) tão na m…, porque não falam logo onde está meu marido? A família do Amarildo não é fácil. Não vamos calar a boca. Mesmo que meu marido fosse traficante, não tinha que matar, tinha que prender”, reafirma ainda agora Elisabete, as palavras atropeladas pela velocidade da fala, que é a sua arma desde o desaparecimento de Amarildo. Quanto mais gente ouvir o que ela diz, melhor. “No outro dia eu já estava no Wagner Montes (programa policial da Record), na Globo, em tudo que é lugar”, conta.
Dedo apontado para a polícia
Desde 15 de julho, Bete insiste: o marido desapareceu pelas mãos de policiais da UPP, instalada 10 meses antes para substituir a dominação territorial do tráfico de drogas na favela da Rocinha. O disse-me-disse para desacreditar a versão da mulher de Amarildo começou naquele dia. O soldado Douglas Vital, responsável pela abordagem agressiva do pedreiro, disse que não conhecia Amarildo e o confundira com um traficante chamado Guinho – apesar de já ter prendido um de seus filhos e de testemunhas relatarem que ele ameaçava Amarildo. O comandante da UPP, major Edson Santos, disse que o pedreiro havia sido liberado depois de uma averiguação de rotina e saíra da sede da unidade pela “escada da Dionéia” – câmeras de segurança não confirmaram sua versão.
O então delegado adjunto da 15ª Delegacia de Polícia (Gávea), Ruchester Marreiros, disse que Amarildo e Bete prestavam serviços para o tráfico e chegou a pedir a prisão da esposa do pedreiro. Por ele, a investigação teria terminado logo na primeira semana, com a conclusão de que Amarildo teria sido morto pelos traficantes, que persistem na comunidade, como suposto X-9 – numa escuta telefônica forjada pelos PMs, um “traficante” assumia a culpa pelo crime. Mas Bete não desistiu.
“Procuramos em tudo que era parente. Fomos em Nova Iguaçu, Alcântara, e nada. Aí começamos a procurar em delegacia”, lembra Bete enquanto caminha pelas ruelas da Rocinha, sob olhares dos policiais da UPP, ao lado dos três filhos mais novos, que se recusam a deixar a mãe sozinha desde o sumiço do pai.
Relembra a história: “Chegamos na delegacia e fomos maltratados pelo delegado lá. O delegado veio cheio de abuso comigo. Disse que a gente era envolvido. Disse ‘vai embora, some daqui, vai procurar seu marido noutro lugar’. Depois disse ‘tô só alisando a sua cabeça’. Eu falei ‘moço, tô atrás do meu marido, o policial sumiu com o meu marido e os documentos dele também’.”
Naquele julho, o Brasil, em especial o Rio de Janeiro, vivia uma onda de protestos, reivindicando principalmente cidadania. A violência dos agentes do Estado contra um negro, morador de favela, tantas vezes repetida, dessa vez foi cobrada nas ruas por uma multidão indignada. O governo teve que dar prioridade ao caso. Foi quando o então delegado titular da 15ª DP, Orlando Zaccone (hoje na 30ª DP -Marechal Hermes) mudou o rumo das investigações. O crime passou a ser apurado como assassinato e o caso passou depois para a Divisão de Homicídios (DH).
Na divisão especializada, os investigadores concluíram que o pedreiro foi torturado dentro da própria sede da UPP.As “técnicas” utilizadas envolviam asfixia com saco plástico na cabeça, choque elétrico na planta dos pés molhados e afogamentos na privada.
Mais grave: esses “métodos” eram usados corriqueiramente contra “suspeitos” na unidade comandada pelo major Edson Santos, ex-agente do Batalhão de Operações Especiais (Bope), de acordo com os depoimentos de 22 pessoas que sobreviveram às torturas, anexados ao inquérito de mais de 2,6 mil páginas sobre o caso Amarildo.
A resistência dos policiais acusados em dizer onde está o corpo de Amarildo também chamou a atenção de especialistas em violência para um fenômeno cada vez mais nítido no Rio de Janeiro: o crescimento no número de desaparecimentos, que alguns relacionam com outro índice alterado, este, em queda: o registro de mortes provocadas por policiais.
O sobe e desce do crime
O Instituto de Segurança Pública (ISP) do Estado do Rio de Janeiro reconhece que o desaparecimento de pessoas assumiu viés de alta desde o início dos anos 1990. Em 1991 foram registrados 2.616 casos. Em 2003, o número pulou para 4.800 desaparecidos, e depois de uma queda de 19,4% no governo de Rosinha Garotinho – foram 3.877 em 2006, recuperou o fôlego no governo Cabral quando os sumiços aumentaram 32%.
Por outro lado, os números do ISP referentes a homicídios dolosos caíram praticamente na mesma medida: 35% (de 6.133 casos, em 2007, para 4.543 de novembro de 2012 a outubro de 2013). E a queda é ainda maior ao se examinar as taxas de autos de resistência (mortes de civis em confrontos com policiais) na comparação dos mesmos períodos: 72% (de 1.330, em 2007, para 402 casos entre 2012 e 2013).
Em 2009, o ISP realizou uma pesquisa para verificar se – e em quantos casos – os desaparecimentos poderiam estar encobrindo homicídios – praticados por policiais ou não-policiais – através da ocultação de cadáver. As conclusões minimizaram a importância do fenômeno: segundo o instituto de pesquisa da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, com pouco mais de 400 familiares de desaparecidos contatados por telefone, 71% dos desaparecidos já haviam retornado para casa e apenas 7% foram encontrados mortos; 15% jamais foram vistos novamente, vivos ou mortos.
Como os crimes não foram investigados, pouco se sabe além desses números obtidos em um estudo que “apresenta algumas limitações metodológicas, como uma mostra pequena e um contato com os denunciantes feito pela via telefônica”, como explica o sociólogo Ignacio Cano, sociólogo coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Leia a íntegra da reportagem “Desaparecidos e esquecidos” na Agência Pública
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