Devota de São Francisco de Assis, o protetor dos pobres, a senadora Heloísa Helena (Psol-AL) não vê mais salvação para o governo Lula. Para a ex-petista, as alianças feitas pelo presidente para o segundo mandato o afastam ainda mais da esquerda e o aproximam de novos escândalos.
“A gente sempre espera que as pessoas aprendam, que as lições da vida as ensinem. Mas o conglomerado de forças políticas que se associam no segundo mandato consegue ser pior do que no primeiro. Objetivamente é. Basta ver as personalidades que não estavam no começo do governo e hoje se incorporam como urubus”, disse a senadora em entrevista exclusiva ao Congresso em Foco. Na avaliação dela, o governo de coalizão vai aprofundar o modelo neoliberal no segundo mandato de Lula.
Prestes a retornar a Maceió, onde lecionará Epidemiologia para duas turmas na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), a partir de fevereiro, Heloísa Helena pretende conciliar as atividades acadêmicas com a militância partidária. Uma mudança que não lhe deixará nenhuma tristeza, garante a professora universitária e enfermeira.
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Mas não será fácil. Afinal, ninguém viveu tão intensamente os últimos oito anos, no Senado, quanto ela. Há algumas razões para se fazer essa afirmação sem medo de errar. De 1998 pra cá, Heloísa Helena Lima de Moraes Carvalho deixou o semi-anonimato na Assembléia Legislativa de Alagoas para se tornar uma das figuras mais conhecidas da política nacional.
Líder da bancada petista por dois anos, durante o segundo governo Fernando Henrique Cardoso, consolidou-se como uma das principais vozes da oposição ao governo Lula, antes mesmo de ser expulsa do PT, no final de 2003, ao votar contra a reforma da Previdência. No ano passado, Heloísa conquistou a terceira colocação na disputa à Presidência da República ao receber 6.575.393 (6,85%) de votos pelo novato Psol, partido que ajudou a fundar em 2004 e preside desde então.
Ao longo do mandato, tornou-se conhecida por atacar a “orgia do capital financeiro", os "delinqüentes de luxo", as "gangues partidárias" e a "patifaria política" e por bater de frente com alguns dos principais caciques do Senado, entre eles, o veterano Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA).
Orquídea selvagem
Nesse período, a senadora lançou moda – introduziu a camiseta branca e o jeans desbotado no guarda-roupa de um Senado conservador –, fez da tribuna palco de lágrimas e artilharia, e até virou nome de flor. Cattleya senadora Heloisa Helena é o nome científico de uma orquídea branca registrada por um orquidófilo paulista na Inglaterra.
Espinhosa com os adversários políticos, delicada no trato pessoal, a senadora já chegou a confidenciar que gostaria de renascer como flor, se possível, tamanha a sua identificação com as plantas. Não por acaso, as flores se tornaram presente-obrigatório a cada homenagem recebida pela senadora. E muitas delas estão lá, dividindo espaço com as imagens de São Francisco de Assis, que também povoam o gabinete do qual ela se despedirá em 31 de janeiro.
“Agora a gente vai trabalhar a construção do Psol, que não se considera o santuário dos ungidos, dos deuses da ética ou da revolução socialista. O Psol nasceu por uma circunstância histórica, não é proprietário das bandeiras históricas da classe trabalhadora, dos socialistas, mas é uma ferramenta de luta e continuará honrando a memória de muitos militantes socialistas”, diz a senadora, em mais uma de suas críticas ao PT.
Entre o passado e o futuro
Do Senado, ela vem se despedindo aos poucos. Desde o início da campanha eleitoral, no ano passado, trocou o apartamento funcional por um “quarto-e-sala”, que divide com o filho de 18 anos.
Em meados de dezembro, fez um discurso emocionado, com direito a apartes de tucanos que outrora combatia em nome do PT, como os senadores Arthur Virgílio (AM) e Tasso Jereissati (CE), seus colegas de oposição durante o governo Lula. A partir do próximo dia 1º , sua vaga será ocupada pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello (PRTB-AL), velho alvo de sua artilharia. “Sabe que nunca vi Collor pessoalmente?”, surpreende-se.
As cicatrizes deixadas pela expulsão do PT ainda não cicatrizaram. “Nos quatro primeiros anos [no governo FHC], fazíamos uma oposição intolerante, truculenta, contra aqueles que identificávamos como adversários ideológicos”, diz ela. “E, de repente, quando você vê os seus antigos companheiros se transformarem em traidores da classe e defenderem as mesmas bandeiras que nós condenávamos com intolerância e truculência quando apresentadas pelo governo Fernando Henrique, há um misto de tristeza”, completa.
Em dezembro, Heloísa Helena ganhou o Prêmio Congresso em Foco, por ter sido escolhida pelos leitores deste site como a melhor senadora da atual legislatura, obtendo a quinta colocação no geral. Foi ao receber a placa alusiva à premiação que ela falou, em seu gabinete, ao Congresso em Foco. Veja a entrevista.
Congresso em Foco – Que balanço a senhora faz desta legislatura que chega ao fim?
Heloísa Helena – Primeiro, eu quero agradecer ao site e aos jornalistas que participaram da indicação e a todos os internautas que, generosamente, com tanta delicadeza, me deram possibilidade de que eu recebesse o Prêmio Congresso em Foco. Eu acho que todos os gestos de delicadeza e generosidade política são sempre muito preciosos como instrumentos para que a gente continue lutando para ajudar este Brasil maravilhoso a ser uma pátria soberana, ética, igualitária, fraterna e espero eu que, um dia, uma pátria socialista. Mas oito anos de mandato realmente é muito tempo. Já tive a oportunidade de dizer no pronunciamento que fiz na tribuna do Senado uma avaliação muito detalhada do meu mandato como senadora.
Como a senhora sintetizaria sua atuação nesse período?
Isso é algo que eu não tenho dúvida: todos os meus erros ou acertos, tudo o que eu acho que fiz de certo ou errado, cem por cento do meu mandato foram movidos por valores nobres. No que eu errei e no que acertei. Nada houve de pusilanimidade, de interesses escusos, por dinheiro, vaidade, cargos, prestígio, poder. Nada de vigarice política, de omissão, de cumplicidade. Eu acho que isso nos deixa com a consciência tranqüila. Combati o bom combate, não perdi a fé, continuo trilhando os caminhos mesmos difíceis pelo meu Brasil. Aprendi muito no Congresso Nacional, aprendi com pessoas éticas, honradas, independentemente das convicções ideológicas e da filiação partidária. Aprendi muito com aqueles que eu classifico como os pusilânimes do mundo da política porque, cada vez que eu os vejo, sei que não sou igual a eles e que jamais serei. Essa gentalha é capaz de comercializar valores morais, estruturas partidárias, sentimentos nobres, amizades, qualquer coisa para se lambuzar no banquete do poder. É um aprendizado.
E como a senhora se vê sem mandato, a partir de fevereiro?
Agora eu volto para a universidade, continuo na presidência do Psol, embora pudesse me sentir honrada em estar como militante, que é o que sou. Qualquer quadro partidário, parlamentar ou não, teria todas as possibilidades de conduzir a presidência do partido. Vou ficar por 20 horas na Universidade Federal de Alagoas, onde sou professora. Continuarei trabalhando de forma disciplinada, rigorosa, como sempre fiz, na condição de servidora pública, de agente pública ou de militante da esquerda socialista. E agora a gente vai trabalhar a construção do Psol, que não se considera o santuário dos ungidos, dos deuses da ética ou da revolução socialista. O Psol nasceu por uma circunstância histórica, não é proprietário das bandeiras históricas da classe trabalhadora, dos socialistas, mas é uma ferramenta de luta e continuará honrando a memória de muitos militantes socialistas que desbravaram caminhos para que nós estivéssemos aqui e ajudando muito a construir um país melhor e a unidade da esquerda socialista pelo mundo.
E quais são os próximos desafios do Psol?
São muitas tarefas que estão por vir. Do ponto de vista eleitoral, não estamos pensando nisso agora. Estamos estruturando a organização partidária para continuar atuando nos movimentos sociais, disputar a institucionalidade através de um processo eleitoral que já se avizinha, as eleições municipais. Mas, no meu caso, não existe nada definido ainda.
A senhora planeja se candidatar a um novo cargo?
Não está definido. É muito cedo. Cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Agora é hora de promover a organização da estrutura partidária, com os cursos de formação, com a nossa participação nos movimentos sociais, e analisar direitinho onde estaremos disputando a institucionalidade formal, as instâncias de decisão política no processo eleitoral.
Do que a senhora sentirá mais falta aqui no Senado?
Apropriando-me das palavras de Fernando Pessoa, tudo vale a pena quando a alma não é pusilânime. A gente vai continuar lutando, claro que em um espaço com menos visibilidade pública, mas faz parte. Quando resolvi assumir essa tarefa, todos nós já imaginávamos. Claro que tem pessoas com as quais eu convivi durante oito anos que são muito especiais para mim como mãe e como mulher. Não quero citar nomes, mas existem pessoas que foram muito presentes na minha vida nesses oito anos. Na minha vida como mãe, quando meu filho foi atropelado. Aos pusilânimes, que agem com a meticulosidade dos ratos, o meu desprezo. Mas estarei sempre me lembrando deles porque eles significam aquilo que eu jamais serei. Eu até brincava aqui que é quase um destino, para mim, ser oposição, do mesmo jeito que tem gente no mundo da política que entra pra qualquer governo que passe pela frente.
A senhora fez oposição pelo PT ao governo FHC e ao PT no governo Lula. Que diferenças a senhora sentiu? Foi mais difícil fazer oposição ao governo Lula?
São circunstâncias muito diversas. Eu fui líder do PT no Senado, líder da oposição ao governo Fernando Henrique durante quatro anos e depois vivenciar essa experiência… Nos quatro primeiros anos, fazíamos uma oposição intolerante, truculenta, contra aqueles que identificávamos como adversários ideológicos. E, de repente, quando você vê os seus antigos companheiros se transformarem em traidores da classe e defenderem as mesmas bandeiras que nós condenávamos com intolerância e truculência quando apresentadas pelo governo Fernando Henrique, há um misto de tristeza. É diferente.
A senhora acha que há alguma possibilidade de o governo Lula mudar?
A gente sempre torce para que tudo seja melhor. O quanto pior melhor não os atinge pessoalmente nem do ponto de vista partidário. Só atinge a população brasileira e, especialmente, os mais pobres, que precisam e têm como única referência o aparelho de Estado em todas as áreas – da dinamização da economia local com a geração de empregos até a segurança pública, a saúde, a educação. Então a gente sempre torce para que dê certo, independentemente de que seja nos governos passados ou no atual governo. Eu sempre dizia isso, mesmo no governo Fernando Henrique, quando eles diziam que a gente apostava no quanto pior melhor. Eles vão continuar com as suas fortunas pessoais, com o seu cinismo, sua vigarice, sua dissimulação. O povo brasileiro é que sofre com tudo. A gente sempre espera que as pessoas aprendam, que as lições da vida as ensinem. Mas o conglomerado de forças políticas que se associam no segundo mandato consegue ser pior do que no primeiro. Objetivamente é. Basta ver as personalidades que não estavam no começo do governo e hoje se incorporam como urubus.
A senhora se refere ao PMDB, por exemplo?
Também. Não dá para citar nomes porque são muitos, mas as forças políticas que se articulam para o novo governo conseguem ser piores do que os primeiros dois anos de mandato. Porque também foi só no início. Depois eles pularam tudo para dentro da coisa. Mas a gente sempre espera que seja melhor e, claro, que o povo brasileiro seja capaz de promover os mecanismos de controle social, de organização política, seja na associação de moradores, seja no partido ou no sindicato, para fazer a legítima pressão que é necessária. Porque a vitória desses senhores que promovem crimes contra a administração pública, tráfico de influência, intermediação de interesse privado, exploração de prestígio, que ganham eleições às custas do abuso do poder econômico, da roubalheira política, é de responsabilidade de parte importante da população. Por isso, é bom que a gente esteja sempre se articulando com as forças vivas da sociedade para promover o acompanhamento, o controle social, o monitoramento da ação de seus eleitos, sejam eles para o Legislativo ou para o Executivo.
Alguns movimentos sociais tinham certa tolerância com Lula no primeiro governo, mas agora começam a cobrar mudanças no segundo governo. Como a senhora acha que será isso?
Eu sempre defendi que os movimentos sociais tivessem autonomia das estruturas partidárias e dos governos. Os movimentos sociais não podem ser correias de transmissão de estruturas partidárias e de conveniências governamentais. Ninguém pode servir a dois senhores ao mesmo tempo. É impossível. Só as conveniências burocráticas, financeiras ou outras coisas mais graves seriam capazes de justificar. Eu sempre defendi que os movimentos sociais não funcionem como correia de transmissão dos interesses partidários ou das estruturas governamentais.
Qual seria o principal ponto para o governo consertar o rumo no segundo mandato?
Eu tenho o maior carinho e respeito por muitos militantes do PT que classifico como honestos e socialistas, mas o governo Lula não é um governo de esquerda. Não tem mais a história do passado. Já foi a principal referência da esquerda socialista, mas não é mais. Então não tem que ter saudosismo do passado. A razão de existir da nossa candidatura e do Psol era justamente não aceitar que a esquerda socialista e democrática fosse liquidada por uma experiência de poder. O governo Lula e a cúpula palaciana do PT são neoliberais. É um governo neoliberal. Pode até promover determinadas ações, mas já é um governo neoliberal. Privatizou o aparelho de Estado e setores estratégicos. Foi para o segundo turno com quem não tinha autoridade para fazer debate na sociedade, mas não foi com a gente. Qualquer pessoa honesta intelectualmente sabe que não é mais um partido de esquerda e nem é mais um governo de esquerda. É claro que algumas pessoas, do mesmo jeito que faziam no governo Fernando Henrique, disputam determinadas ações concretas, ágeis e eficazes, do aparelho de Estado, das políticas públicas, das políticas sociais, para minimizar a angústia, a dor e o sofrimento da maioria da população. Agora, no segundo governo, a conformação é mais ainda chamada de “coalizão neoliberal”.
A que a senhora atribui essa avaliação favorável a Lula nas pesquisas? Ele se descolou de vez do PT?
Qualquer pessoa de bom senso sabia que seria impossível acontecer alguma coisa no PT sem a coordenação do presidente. Não adianta querer responsabilizar uma ou outra personalidade política do partido, fazendo de conta que o presidente não sabia. Até porque dizer que não sabia seria uma atitude preconceituosa contra o presidente, porque seria classificá-lo de burrinho, porque não teve formação universitária. Não tem nada a ver. Ele é uma figura muito inteligente, espertíssima e, exatamente por isso, era impossível ter acontecido qualquer coisa no governo do PT sem a coordenação e o comando do presidente. Só não vê isso quem tem dele uma visão elitista e preconceituosa para achar que ele é um pau-mandado. Quem foi militante sabe que é impossível. Mas a luta continua.
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