Diego Moraes
A acirrada disputa pela Presidência da República dá o tom da corrida eleitoral, mas o tema mais polêmico das eleições de outubro tem outro nome: cláusula de barreira. A restrição, que promete ceifar as prerrogativas políticas de pelo menos 14 partidos que elegeram deputados federais para a próxima legislatura, conquistou a antipatia de congressistas e, agora, começa a ser vista como inconstitucional.
Um dos defensores dessa tese é o especialista em direito eleitoral Everson Tobaruela, presidente da Comissão de Direito Político e Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo. Segundo ele, a norma fere o artigo 17 da Constituição Federal, que assegura aos partidos políticos "autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento" e "direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão".
"Não tenho dúvida nenhuma de que essa regra é inconstitucional", argumenta Tobaruela. Segundo ele, o dispositivo é característica de países autoritários. "Isso é típico de uma ditadura civil. Querer diminuir o número de partidos é algo que só acontece em países com legislação autoritária", disparou.
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Embora não faltem argumentos a Tobaruela, os especialistas estão longe de chegarem a um consenso nessa matéria. O advogado Dinailton Oliveira, presidente da OAB da Bahia e também especializado em direito eleitoral, discorda frontalmente do colega.
Ele sustenta que a regra tem o efeito colateral de dificultar a vida de partidos ideológicos (como o PPS, o PCdoB, o PV e o Psol), mas é fundamental para garantir o fim das legendas de aluguel. "A democracia só se fixa com partidos fortes. Infelizmente, os partidos ideológicos não conseguiram superar, mas essa foi a vontade do povo", argumenta.
O que é
A cláusula de barreira estabelece que as legendas com menos de 5% dos votos válidos registrados em todo o território nacional, nas eleições para a Câmara dos Deputados, e 2% em pelo menos nove estados, devem deixar de ter funcionamento parlamentar. Apenas sete partidos conseguiram atender à exigência: PT, PMDB, PSDB, PFL, PP, PSB e PDT.
Faltaram votos para outras 22 siglas que, na prática, terão de dividir 1% do fundo partidário – principal fonte de recursos das estruturas partidárias – e contentar-se com somente dois minutos por semestre no rádio e na televisão.
A medida atinge legendas com bancadas razoáveis no Congresso, como o PTB e o PL, que atualmente recebem todo mês entre R$ 700 mil e R$ 1 milhão, cada um, da cota partidária. Nas casas legislativas, o prejuízo promete ser maior. Os partidos barrados nas eleições deste ano não terão direito a cargos de liderança no Congresso, nas assembléias estaduais e câmaras municipais. Perdem também espaço nas comissões parlamentares.
Pelo menos essa era a interpretação que se dava à legislação em vigor até recentemente. Durante a campanha para os cargos legislativos, o PV chegou a apelar à população para que o salvasse de "sua própria extinção".
Apurados os votos, verificou-se que os partidos que não passaram pela peneira da cláusula de barreira elegeram quase 120 deputados federais. Isso representa mais de um quinto da Câmara. Uma "bancada" maior que a de qualquer grande partido, individualmente, ou mesmo de frentes multipartidárias poderosas, como a dos ruralistas.
O crescimento do poder de fogo dos pequenos partidos é uma das razões para a confiança que muitos integrantes dessas agremiações agora ostentam em relação às possibilidades de derrubar na Justiça a cláusula de barreira.
A porta da esperança
A porta da esperança iluminou-se aos olhos dos integrantes dessas legendas quando o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Marco Aurélio de Mello, disse aos jornalistas que o tribunal não tem posição firmada sobre o assunto. Por se tratar de matéria constitucional, é possível que caiba ao Supremo Tribunal Federal (STF) definir a questão.
Enquanto isso, os partidos menores colecionam argumentos contra a cláusula de barreira. Para começar, eles alegam que, prevalecendo a aplicação da regra, mais de uma centena de deputados se transformariam em parlamentares "zumbis". Não poderiam participar de comissões permanentes e de várias outras instâncias ou atividades do Congresso. O primeiro questionamento aí é como negar a um deputado eleito atribuições que a população lhe confiou.
Invoca-se ainda a heterogeneidade do país. A ela, não faria bem dificultar a expressão organizada de visões políticas e segmentos sociais que, mesmo sendo minoritários, refletiriam aspirações e interesses da sociedade real, que deu a esse conjunto de agremiações 23% dos seus votos válidos.
Ao argumento de que as facilidades para manutenção de partidos pequenos contribuiriam para a criação de legendas de aluguel, os inimigos da cláusula de barreira respondem que os mais estrepitosos escândalos dos últimos tempos atingiram, sobretudo, os grandes partidos.
Tantos partidos assim dificultam a governabilidade? Em nada, respondem eles. Com ou sem cláusula de barreira, os partidos sempre atuaram, atuam e continuarão a atuar por meio de blocos partidários, em geral separados por uma divisão básica: os que são contra e a favor do governo.
Levando ao extremo o raciocínio, chegam a falar até que tal será a distinção entre o trabalho de um "zumbi" e o de um deputado no pleno usufruto de suas prerrogativas que o primeiro, forçosamente, trabalhará muito menos, privado que será do trabalho em comissões. Nessa hipótese, não seria impossível colocar na mesa uma questão aparentemente esdrúxula que por essa ótica passaria a ter todo o sentido: estaria aberto o caminho para discutir uma remuneração para quem trabalhará menos – os "zumbis".
Futuro incerto
Com exceção do PTB, que anunciou a fusão com o Partido dos Aposentados da Nação (PAN), que lhe garante a superação da cláusula de barreira, os reféns do famigerado dispositivo legal discutiram (e continuam a discutir) muitas alternativas, mas tomaram poucas decisões.
O PCdoB, que andou conversando muito com o PSB, chegou à conclusão de que é melhor ficar na dele. Com ou sem cláusula de barreira, o partido não cogita de fusão com outra legenda. O PV, que em outros tempos parecia caminhar para se unir ao PPS, dá hoje mais ênfase a criação de uma federação de partidos, exclusivamente para atuação legislativa, caso a cláusula de barreira fique de pé. Nesse cenário, cada organização partidária mantém intacta sua identidade.
Migrações de parlamentares das legendas menores para os grandes partidos, sobretudo o PMDB (que elegeu a maior bancada da Câmara, 89 deputados), também estão no roteiro que se pode esperar. É provável, ainda, que o novo Congresso discuta mudanças no instituto da cláusula de barreira.
No rol de legendas menores prejudicadas pela cláusula de barreira, algumas deixam de lado a possibilidade de fusão com outros partidos e tentam descobrir brechas jurídicas para derrubar a restrição. A última tentativa foi do secretário nacional do PSL, Ronaldo Medeiros, que também considerou a cláusula inconstitucional. Segundo ele, a medida fere o artigo 16 da Constituição, que proíbe mudanças na regra eleitoral a menos de um ano do pleito.
Medeiros pondera que a Resolução 22.161, editada pela corte este ano para manter a verticalização, teve efeito substitutivo em relação à Resolução 21.002, de 2002, que estabeleceu as regras para as alianças nacionais. Naquele ano, a corte determinou a não aplicação da cláusula de barreira com base no princípio da anualidade. Segundo o dirigente do PSL, a mesma lógica valeria para este ano, já que o tribunal alterou as regras eleitorais. "Se teve efeito substitutivo, deve ser observado o artigo 16", destacou.
O dirigente argumenta ainda que a verticalização, norma que obriga os partidos a repetirem nos estados as alianças nacionais, dificultou a captação de votos pelas legendas menores. "A norma impediu as coligações regionais, o que complicou as alianças com os grandes partidos para atrair votos nessas eleições", explica.
Especialistas, porém, sustentam que o argumento não tem respaldo jurídico para suspender a medida. "Acho que não procede. Prefiro deixar a palavra final para o TSE, mas não vejo ligação [da verticalização com a cláusula de barreira]", analisou o advogado eleitoral e ex-ministro do tribunal Fernando Neves. "É um absurdo essa colocação. A legislação da cláusula não é de agora", enfatizou Tobaruela, que acredita na inconstitucionalidade do dispositivo por outras razões, já citadas.
De fato, a cláusula de barreira foi criada há mais de 11 anos, pela Lei dos Partidos Políticos (9.096/95). No artigo 13, a lei estabelece que "tem direito a funcionamento parlamentar, em todas as casas legislativas para as quais tenha elegido representante, o partido que, em cada eleição para a Câmara dos Deputados obtenha o apoio de, no mínimo, cinco por cento dos votos apurados (…), distribuídos em, pelo menos, um terço dos estados, com um mínimo de dois por cento do total de cada um deles".
A mesma lei, no artigo 57, diz que a regra passará a valer após as eleições de 2006. "O legislador, com sabedoria, previu um prazo para que os partidos se estruturassem antes de a norma começar a vigorar. A resolução editada este ano pelo TSE apenas regulamentou a lei de 1995", explicou Dnailton Oliveira.
Pode ser, mas o fato é que esse entendimento já não é encarado pelos políticos – que costumam ter boas antenas para essas coisas – e por vários profissionais do direito como tão consolidado assim. Até um punhado de dias atrás, soaria extravagante a idéia de uma revisão substantiva da cláusula de barreira. Agora, pode-se dizer com certeza: venha ou não a se confirmar no futuro, esse risco hoje já existe.
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