Celso Lungaretti *
O que tornou imperativo o impeachment de Dilma Rousseff foi haver conduzido o país a uma terrível recessão econômica e estar, quando do seu afastamento, há 16 meses sem conseguir governar. Ou seja, como sua permanência no poder faria apenas agravar uma situação já insustentável, ou ela caía ou cairia o Brasil (no caos e, possivelmente, numa nova ditadura). Simples assim.
Como nossa imperfeita Constituição não contém dispositivo para o descarte de um(a) presidente incompetente ao extremo, mesmo quando sua extrema incompetência está detonando a economia e esfarelando a nação, o processo de impeachment teve de se restringir formalmente a motivos até irrisórios no quadro geral da devastação, se não causada, certamente maximizada pela gestão destrambelhada de Dilma Rousseff.
Por exemplo, as manobras contábeis ilícitas não foram casos isolados, mas parte do pior estelionato eleitoral cometido no Brasil em todos os tempos. Ocorre que, espantosamente, estelionato eleitoral não está entre as justificativas legais para o impedimento presidencial.
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Alguém pode, como Dilma em sua campanha para a reeleição, impingir ao eleitorado as piores mentiras e até satanizar os adversários atribuindo-lhes intenções sinistras das quais só escaparia elegendo-o (a) para, em seguida, fazer exatamente aquilo que dissera que os malvados fariam? Tudo bem, pois a Constituição não proíbe que vigaristas políticos tratem os eleitores do país inteiro como otários. Goebbels adoraria o Brasil.
Quanto às manobras contábeis em questão, foram também parte do estelionato: a maquiagem ilícita serviu para ocultar do eleitorado o profundo descontrole das contas públicas, que certamente serviria de combustível para uma crise econômica que já provocava muita inquietação. Será que uma vitória por margem tão exígua teria sobrevivido à revelação dos maus feitos administrativos da gerentona e das consequências que deles decorreriam para os brasileiros?
Dilma, no melodrama que encenou para os senadores, o mesmo que martela incessantemente há meses para a opinião pública sem convencer quase ninguém, fugiu desses questionamentos mais gerais (e importantes), reduzindo tudo a uma discussão técnica sobre haver ou não cometido crime de responsabilidade – embora nem assim saísse totalmente bem na foto, pois os entendidos garantem que o cometeu (só que de um tipo usualmente não punido em nosso país, o da violação de regras orçamentárias).
A vitimização de Dilma se sustenta nas imperfeições constitucionais. Se estivesse sendo impichada pelas razões corretas e completas, nossa paciência não enfrentaria a dura prova de aguentar tal lengalenga durante meses a fio…
Quanto à tantas vezes alegada honestidade pessoal, na verdade se restringe apenas a não haver embolsado grana proveniente de maracutaias. Mas, Deus e o mundo sabem que o preço de o beijo do Lula a haver transformado de rã em princesa foi olhar para o outro lado enquanto tais maracutaias grassavam soltas (começando pela inacreditável aquisição da usina de Pasadena por um valor superestimadíssimo). Já fazia vistas grossas quando chefiava a Casa Civil e o Conselho Administrativo da Petrobras; continuou fazendo como presidente.
Agora, a Operação Lava Jato revela que a grana das maracutaias irrigou suas campanhas eleitorais. Quem acreditar que ela ignorava isto também compra até terreno na Lua.
Por que me dou ao trabalho de desconstruir o jus sperniandi da Dilma, quando a confirmação do impeachment é uma certeza e até mesmo os senadores direitistas parecem cumprir seu papel com certo enfado?
Porque à direita basta mandar Dilma para casa; e isto já está assegurado.
Já para a esquerda reconstruir-se após a praga de gafanhotos que a assolou, é preciso ficar bem claro que o período de hegemonia petista não terminou por causa de conspirações mirabolantes, mas sim pelo esgotamento da opção reformista, que substituiu a luta de classes pela conciliação de classes e se limitou a apenas garantir para os explorados algumas migalhas a mais do banquete dos exploradores.
Pior: gerenciar o capitalismo para os capitalistas foi catastrófico para a moral da esquerda, que teve muitos expoentes se beneficiando das boquinhas e se envolvendo em roubalheiras, o que foi explorado ad nauseam pela imprensa burguesa; e provocou incoerências altamente desmoralizantes, como a de Dilma, em desespero de causa, ter tentado utilizar um economista neoliberal como boia, na contramão de todas as críticas que a esquerda fazia ao neoliberalismo desde a década de 1960.
A fábula do golpe não evitou o impeachment, mas poderá evitar que os erros cometidos nos últimos 13 anos sejam questionados pela esquerda com a contundência que se impõe, tamanho foi o descrédito que acarretaram para nossos ideais.
O PCB era a força hegemônica da esquerda até a rendição sem luta de 1964; o processo de crítica e autocrítica subsequente reduziu em muito sua influência e importância.
É o que precisa ocorrer agora com o PT, caso contrário a derrota sofrida, além de acachapante, terá sido inútil.
Ou a esquerda desperta de sua hibernação reformista e volta aos trilhos revolucionários, ou marchará para a irrelevância.
* Celso Lungaretti é jornalista, escritor e ex-preso político. Edita o blogue Náufrago da Utopia.
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