João era um servidor muito dedicado ao trabalho. Acordava todos os dias bem cedo e pegava dois ônibus para chegar ao posto de saúde. Nunca se envolveu em nenhum ato de corrupção. João gostava de futebol e sempre saía para assistir aos jogos com amigos de profissão. Pedro, colega de trabalho, era uma presença garantida. Se falavam constantemente por Wathsapp e outras redes sociais, além de ligações telefônicas sobre as querelas futebolísticas. João não sabia, mas Pedro estava sendo investigado por fazer parte de um grupo que desviava remédios da unidade de saúde.
Interceptações telefônicas serviram para João também ser identificado pelas autoridades e surgiram dúvidas acerca da participação dele na organização criminosa. João não foi chamado para esclarecer nada à autoridade policial. Não recebeu qualquer intimação. A polícia fez o pedido de condução coercitiva e o magistrado deferiu.
No dia seguinte, enquanto se preparava para ir ao trabalho, João acordou com o carro da polícia em sua porta. Ficou tão nervoso que tentou não ir. Gritava pedindo para não passar por aquela vergonha. Foi algemado e colocado dentro da viatura. Todos na rua assistiram a sua “prisão”. Na delegacia ficou claro que João não tinha participado de nada, mas a vida de João nunca mais será a mesma. A operação policial tinha nome bonito e pomposo. Agora esse nome também faz parte da vida de João, aquele que foi preso naquela Operação… você ficou sabendo?
Leia também
A história fictícia contada acima está presente diariamente nas operações policiais midiáticas. Se não se tratar de investigação com forte exploração de imagens, dessas que aparecem na TV, o risco de uma condução coercitiva acontecer diminui bastante.
A condução coercitiva serve mais ao show do que à apuração dos fatos. Em boa parte das oportunidades de uso forçado do interrogatório, o que se nota é uma espécie de vaidade institucional destinada a difundir sensação de que o trabalho investigativo está sendo feito. Mesmo que isso seja realizado com o sacrifício da dignidade humana.
<< Gilmar proíbe condução coercitiva de investigados no último dia do Judiciário em 2017
Demorou, a condução coercitiva foi responsável por diversas manobras de conteúdo político ao longo dos últimos anos, mas a decisão monocrática do Supremo Tribunal Federal, que deferiu medida liminar para vedar a condução coercitiva de investigados para interrogatório, acertou constitucionalmente.
O pronunciamento do ministro-relator deve servir para a reflexão sobre os limites da utilização judicial desse instrumento, já que – de forma bem direta – o fundamento legal das conduções coercitivas, presente no artigo 260 do Código Processo Penal, só permite a sua utilização “se o acusado não atender à intimação para o interrogatório”.
A partir de uma Ação Constitucional denominada ADPF – Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental -, ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil, e outra proposta pelo Partido dos Trabalhadores, a decisão monocrática do STF reconheceu que a condução coercitiva para interrogatório de acusado pela prática de crimes ofende o direito à liberdade de locomoção e o princípio de presunção de inocência.
Isso se justifica, além de outros argumentos, pelo simples fato de que o cidadão conduzido coercitivamente poderá ficar em silêncio (art. 5º, LXIII, da CF e art. 6º, V, e art. 186 do CPP). Alguém que pode se recusar a cumprir com a finalidade da condução, não pode ser obrigado a passar por tal constrangimento. É uma punição pela utilização de direito.
Um dos fundamentos mais interessantes usados pela decisão do STF é reconhecer que o direito à não incriminação é uma garantia fundamental, sendo, portanto, a condução coercitiva sem intimação anterior, uma medida inconstitucional.
A condução coercitiva contra o investigado como medida cautelar autônoma no curso da investigação policial não possui base legal. Até porque o interrogatório é meio de defesa, uma vez que o acusado poderá, repita-se, se manter em silêncio e não terá qualquer consequência negativa por utilização desse direito. Interrogatório é o momento para o acusado expor aquilo que tiver interesse.
Embora a decisão judicial monocrática não tenha aceitado todos os argumentos da OAB e do PT, importante compreender que o combate aos crimes não pode imprimir lesão aos direitos fundamentais de não se autoincriminar, do juiz imparcial, do sistema processual penal acusatório, do devido processo legal, da paridade de armas, da ampla defesa e do contraditório.
Se na ação penal, a ausência do réu não importará paralisação de seu julgamento (art. 367 do CPP), a investigação inquisitorial deve seguir o mesmo caminho. As autoridades policiais e o MP devem investigar usando todas as ferramentas disponíveis para a elucidação dos fatos e, dentro dos rigorosos requisitos dispostos na lei, as prisões provisórias já representam forte gravame quando utilizadas com a devida seriedade. Na frágil fundamentação de uma prisão temporária ou preventiva um mal ainda maior é causado.
Exemplos de ferramentas disponíveis à investigação policial não faltam. A Lei 12.850/2012 traz uma série de técnicas destinadas à elucidação dos crimes, a exemplo da colaboração premiada, da captação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou dos acústicos, da ação controlada, do acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais, do afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, da infiltração, por policiais, em atividade de investigação e cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação.
A liberdade é o fundamento da democracia e não pode ser afastada sem critérios rígidos. A fuga dos ritos formais de investigação não apenas coloca sob risco a validade da investigação, mas também pode trazer prejuízos irreparáveis à imagem das pessoas. A condução coercitiva de alguém que não será denunciado é pena aplicada imediatamente e sem o direito à ampla defesa e ao contraditório. As consequências sociais originadas a partir do fato de ser levado coercitivamente à polícia são extremamente graves, ainda que aplaudidas pela população.
O processo penal não pode ser visto com a simplicidade de um desaguar de pulsões emocionais e vaidades de autoridades carentes de aplausos nas redes sociais. Os instrumentos são direcionados ao trato com vidas humanas, que precisam de respeito. Uma única injustiça cometida ao ser humano será suficiente para colocar o instituto sob suspeita. Sem prévia intimação, condução coercitiva é aberração investigativa. Afastamento provisório e limitado ao direito de ir e vir, que merece sim a ponderação do Supremo Tribunal Federal.
Do mesmo autor:
<< Santander, caso Lüth e Jesus Cristo: a arte de atacar democraticamente
Deixe um comentário