Camilla Shinoda
De um lado, entidades de defesa do consumidor; do outro, representantes do comércio e do sistema financeiro. No meio, uma proposta com objetivos sedutores: reduzir os juros e aumentar a concorrência entre os bancos. Como alvo da discórdia, dois projetos de lei que criam o chamado cadastro positivo, banco de dados com o nome dos consumidores que fazem os seus pagamentos em dia.
A novidade se contrapõe aos cadastros negativos existentes, como o Serasa e o Sistema de Proteção ao Crédito (SPC), nos quais as entidades que prestam serviços de proteção ao crédito listam os clientes que não pagaram pontualmente suas dívidas.
O cadastro positivo já é adotado em vários países, como os Estados Unidos, o México, a África do Sul e boa parte da Europa. De acordo com os defensores da proposta, a grande mudança trazida pelo cadastro nesses países foi a ampliação da concessão de créditos e a redução dos juros.
Com as informações de que determinado cidadão cumpre seus pagamentos na data, as empresas poderiam oferecer juros diferenciados, mais baixos que o normal. “Assim o bom pagador não paga juros pelo mau pagador”, afirma Marcel Domingos Solimeo, economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo (ACSP).
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Apesar desse aparente benefício, o cadastro positivo tem enfrentado resistência nas audiências públicas realizadas na Câmara. A obrigatoriedade da inclusão do nome do consumidor na lista, bem como a sua notificação, a eventual invasão de privacidade e a real eficácia desse instrumento na redução dos juros são os principais pontos de questionamento levantados até agora.
Cadastro facultativo
A obrigatoriedade de participar do cadastro positivo é uma polêmica que já foi aparentemente resolvida pelo relator do PL 405/07 na Comissão de Defesa do Consumidor, Walter Ihoshi (DEM-SP).
O argumento do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça, que tem participado das discussões, de que o consumidor deve ter a liberdade de escolher se quer ou não participar do cadastro positivo convenceu Ihoshi. “Irei fazer esse aperfeiçoamento do projeto, permitindo que o consumidor faça a opção de entrar no cadastro”, adianta o relator.
A medida, segundo ele, também resolveria a questão da privacidade dos dados, já que cada pessoa terá o direito de escolher se quer ou não fornecer seu histórico para o cadastro.
Benefício em xeque
Para a coordenadora institucional da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Pro Teste), Maria Inês Dolci, o cadastro positivo não trará grandes benefícios. “Esse PL (405/07) só vai oficializar uma prática que já existe”, declara.
Segundo Maria Inês, as empresas já possuem esse tipo de informação sobre os consumidores. E o que é pior: não cumprem as regras do Código de Defesa do Consumidor (CDC) de avisar quando uma pessoa é inserida no banco de dados, seja o negativo, seja o positivo. “O cadastro não pode fugir dessas obrigações que já existem no CDC”, critica.
Marcos Diegues, vice-presidente e gerente jurídico do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), concorda com a coordenadora do Pro Teste. “Segundo o CDC, a inserção de um nome em qualquer banco de dados tem que ser avisada, mas isso não acontece. Prova disso é que vivemos recebendo correspondências de empresas com as quais nunca tivemos contato”, exemplifica.
O relator admite que a polêmica, nesse caso, ainda não está resolvida. O projeto original e o primeiro parecer de Ihoshi dispensavam a necessidade de notificação do consumidor. Isso, no entanto, vai de encontro ao parágrafo 2 do artigo 43 do Código de Defesa do Consumidor, que diz que a abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.
A outra proposta que trata do assunto em tramitação na Câmara, o PL 836/03 – já aprovado pelo Senado – também torna obrigatória a notificação.
Notificação
Em ambos os casos, a discussão recai sobre de que forma o consumidor deve ser avisado sobre a entrada de seu nome no cadastro positivo: se pela correspondência simples ou se pelo aviso de recebimento, modalidade que exige a assinatura do notificado.
O relator do projeto defende o uso da correspondência simples, cujo custo é inferior ao do aviso. “Os Correios são um sistema seguro e funcionam bem. Segundo pesquisas, ele é o órgão público mais confiado pelos brasileiros”, argumenta Ihoshi. “Além disso, o aviso de recebimento iria onerar em oito vezes o custo do envio. E quem deve pagar por isso é o consumidor”, prevê.
As entidades de defesa do consumidor, no entanto, não abrem mão do aviso de recebimento. “Dispensar a comprovação do recebimento do consumidor é um absurdo”, reclama Marcos Diegues, do Idec.
“Assim caímos na lógica do ‘eu mandei, se ele não recebeu é problema dele’”. Para Diegues, o aviso de recebimento é uma importante ferramenta de defesa para o consumidor. “O consumidor precisa confirmar se recebeu notificação”, declara.
Diante dos apelos das entidades, Walter Ihoshi diz que vai pedir uma nova audiência pública para rediscutir o assunto.
Queda nos juros
O debate sobre a real possibilidade de queda dos juros também tem dominado as discussões. Para o gerente jurídico do Idec, essa eventual redução é bem questionável. “Olhamos isso com muito ceticismo. Muitas outras políticas que possuíam esse mesmo objetivo, como a Lei de Falências, não cumpriram essa promessa”, argumenta Diegues.
O vice-presidente da Associação Nacional de Executivos de Finanças (Anefac), Miguel de Oliveira, defende a criação do cadastro positivo e destaca que as taxas de juros são baseadas no mau consumidor.
“Crédito sempre foi dado sobre o cadastro negativo”, declara. “O cadastro positivo é uma boa ferramenta de gestão de crédito, pois é possível conferir a regularidade e a pontualidade do consumidor com seus pagamentos”, completa.
Apesar disso, Miguel admite que o efeito da proposta na redução dos juros pode ficar aquém das expectativas. “Os juros, tecnicamente, deveriam cair. Lá fora isso funciona assim, mas não é possível prever como o mercado vai reagir aqui. Muitas outras políticas do governo que pretendiam essa queda de juros falharam”, declara.
Outro entusiasta do cadastro positivo, o economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo (ACSP) acredita que o consumidor sentirá no bolso a redução das taxas de juros graças à criação do banco de dados.
“Com a melhoria na informação, as empresas poderão oferecer juros diferenciados para os melhores clientes”, afirma Marcel Solimeo. “O cadastro positivo é uma evolução essencial que amplia o crédito e baixa as taxas de juros. Ele já funciona em vários países em desenvolvimento”, defende.
Para o vice-presidente do Idec, além de não reduzir a taxa de juros, o cadastro poderá criar “categorias” de consumidores. “Como as empresas vão avaliar quem nunca comprou a crédito anteriormente e não tem um cadastro? Não sabemos se quem estiver fora do cadastro vai ser tratado de forma positiva ou negativa”, avalia Marcos Diegues.
“A pessoa que está com o nome sujo não tem direito a crédito, mas aquela que tem o nome no cadastro positivo também não terá crédito garantido”, admite Miguel Oliveira, da Anefac.
Consumidor imaturo
Outro ponto visto com preocupação pelas entidades de defesa do consumidor diz respeito a uma suposta imaturidade do consumidor em lidar com crédito. Na avaliação dessas entidades, a eventual elevação da oferta com a criação do cadastro pode levar um número maior de brasileiros ao endividamento.
Miguel Oliveira admite que esse risco existe. “A estabilidade econômica do nosso país é muito recente. Isso facilita uma indução do consumidor ao erro. Ele é imaturo sim.”
O economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo pensa diferente. “Não podemos subestimar a capacidade do consumidor brasileiro. Se na África do Sul, no México, nos Estados Unidos, os consumidores alcançaram essa maturidade, o brasileiro também vai conseguir”, defende Solimeo. “O consumidor brasileiro é muito inteligente e aprende rápido”, completa.
Tramitação
O Projeto de Lei 405/07, relatado por Walter Ihoshi, está na Comissão de Defesa do Consumidor. Se aprovado, irá para a Comissão de Constituição e Justiça, onde será analisado em caráter conclusivo, ou seja, sem a necessidade de passar pelo Plenário. A proposta já foi aprovada no Senado, onde foi apresentada pelo ex-senador Rodolpho Tourinho (DEM-BA).
Já o PL 836/03, que disciplina tanto o cadastro positivo quanto o negativo, aguarda posição da Mesa Diretora sobre recurso apresentado pelo deputado Sílvio Costa (PMN-PE) contra o caráter conclusivo da proposta do deputado Bernardo Ariston (PSB-RJ). Sílvio quer que também o Plenário examine o projeto, já aprovado pelas comissões permanentes da Casa.
O texto traz regulamentações para banco de dados e serviços de proteção ao crédito, sejam eles “negativos” ou “positivos”. Ele dispõe sobre a notificação de abertura de cadastro; regula a responsabilidade das empresas que emitem informações sobre a situação financeira de clientes, incluindo nisso a correção de erros nos dados; e veda o fornecimento de informações que possam atrapalhar novo acesso do cidadão ao crédito.
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