Saindo do Arena, depois de ver Beijo no Asfalto, ouço isso aqui de um casal de barbudinhos culturais:
– O beijo que a Globo varreu pra debaixo do tapete.
– É sim, Nelson é super contemporâneo.
Seria o almirante Nelson, aquele que deu uma coça em Napoleão no confronto de Toulon? Ou teria sido o major, marido de Jeanne? Ou Nelson Ned? Não, impossível. O cantor virou evangélico, mas não consta que tenha desfilado na última parada gay. Do Nelson Gonçalves eles não podiam estar falando… de que Nelson eles falavam?
Resolvi sair de perto antes que um dos barbudinhos culturais dissesse que Nelson Rodrigues escrevia para reprimir seu desejo homoafetivo, ou algo do tipo. Não faz muito tempo, Contardo Galligaris falou coisa parecida de Hemingway.
Pra começo de conversa, eu tenho que falar dos pezinhos da Gabi. Sim, da atriz Gabi Fontana que me convidou para assistir à montagem de Marco Antônio Braz. A nudez dos pés da Gabi justificam a ida ao teatro. Além disso, temos a parte de cima. Ela inteirinha e sua magreza espadaúda incluindo os ossos da omoplata, foram feitos à medida para o texto de Nelson Rodrigues: sua presença no palco é ambígua – falsa magra – e por isso mesmo acachapante, mas falar isso é lugar-comum.
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Todos os atores, um pouco menos o Renato Borghi, que eu achei completamente canastrão (e por isso mesmo perfeito para viver Aprígio), são convincentes e metem o terror na platéia. Tem um gordinho lá que deve ser o filho do Capeta com o Eurico Miranda. O nome dele é Elcio Nogueira, anotem. Também o ator Rodrigo Fregnan, que faz o delegado, é outro que sabe exagerar e guinchar na medida certa. Chega uma hora que ele vomita um gato asmático em cima da pobre Selminha (Gabi Fontana), de pezinhos nus e vestido florido, intimidada e devidamente estuprada por ele e pelo gordinho supracitado, que encarna brilhantemente o capeta na pele de um jornalista corrupto.
Nessa hora, na hora do estupro de Selminha, a rubrica de Nelson Rodrigues deveria apontar: cavalheiro de terno cinza tem ereção na platéia.
Eu fico aqui pensando: e se a Gabi/Selminha tivesse joanetes? Aí, não teria Nelson, nem almirante, nem dramaturgo pra segurar o rojão. O que mais me impressionou, além do fato de eu não ter adivinhado que o pai de Selminha, Aprígio, era o boiolão da tragédia (mérito do texto que indica e despista o tempo todo), enfim, o que mais me impressionou, foi o fato de que apenas uma sujeirinha diáfana cobria as solas dos pés da Gabi depois de quase duas horas de peça.
O resto é Nelson Rodrigues de A a Z. Vizinhas fofoqueiras, cunhadinhas sacanas, e um inocente para purgar os pecados do mundo, Arandir – marido de Selminha. O inocente que beijou o atropelado e que, por conta do turbilhão de maldades em que é envolvido, acaba apagado na trama, literalmente. E aqui cabe uma observação: no começo, avaliei que o ator Hudson Senna, o Arandir, era fraco, todavia, pensando no texto de Nelson Rodrigues, faz todo sentido o herói passar despercebido, praticamente anulado pela maldade que corrompe todos os outros personagens.
Nas peças de Nelson Rodrigues, o canastrão, bem como o ator que não é nenhuma brastemp, ambos têm lugar reservado na tribuna de honra.
Lavei a alma, e recomendo a ocupação do teatro Eugênio Kusnet pelo Círculo dos Canastrões e pela Cia. do Teatro Promíscuo & convidados. Ao longo dos meses de novembro, dezembro e janeiro, eles prometem, além das peças “Beijo no Asfalto”, “Os 7 gatinhos”, “Valsa n-6”, “17 x Nelson” e um especial “As noivas de Nelson”, debates, palestras e pezinhos nus, espero. O endereço é rua Teodoro Baima,94, centro de São Paulo.
O problema foi (e será) o casalzinho de barbudinhos culturais falando merda na saída. Disso ninguém está livre. Será que eles acreditam mesmo que Nelson Rodrigues é um autor que tem a preocupação de “conscientizar seu público em favor de alguma causa”?
A meu ver, acontece exatamente o contrário. Nelson Rodrigues pode ser exaltado por qualidades que eventualmente não possua – a incompreensão afinal faz parte do pacote – ou pode ser xingado de qualquer coisa. Tudo, menos dizer que o pai do Crioulo do Grapette era um autor engajado. Ao contrário do que os barbudinhos culturais acreditam ou querem acreditar, ele varre o mundo para debaixo do tapete, e esse é o segredo, não só de Beijo no Asfalto, mas de toda sua obra. Ou seja: Nelson Rodrigues usa a abjeção, o beijo gay necrófilo nesse caso, como um instrumento de trabalho: usa, abusa e manipula aliás, se diverte e tripudia, ele é o mestre do dedo apontado. Nelson Rodrigues levou o bullying dos anos 40 e 50 para o palco. Se refestelou com a intolerância da época em que viveu. Chafurdou na lama da hipocrisia, essa, afinal, era sua matéria-prima.
Nelson Rodrigues seria inócuo sem a sujeira debaixo do tapete, sem o bullying e a histeria acusatória. Ele é o rei da alcova. Não há denúncia, nem engajamento algum em Beijo no Asfalto, como os barbudinhos culturais e os oportunistas de plantão acreditam e querem nos fazer acreditar. Ele só é contemporâneo porque fala de um mundo que não existe mais. Associar O Beijo no asfalto à causa gay dos dias de hoje, ou é burrice ou é canalhice.
Sem o tal do “preconceito” – que na boca dos pirilampos culturais tem o efeito de uma piroca malévola, rotunda e engasgada – Nelson Rodrigues simplesmente jamais teria existido. Viva o preconceito! Viva Nelson Rodrigues!
PS: Dia 31, na próxima segunda-feira, lanço Charque na mercearia São Pedro, que fica na Vila Madalena, em São Paulo. A partir das 19 horas. Apareçam.
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