Ninguém é profeta em sua terra! Se essa máxima não existisse – desde que o camarada Cristo foi levado ao suplício e morto sob a ovação dos seus conterrâneos –, poder-se-ia afirmar que ela é capixaba. Nenhum estado da federação trata os seus talentosos filhos com a falta de indulgência do nosso, o escárnio do nosso e até mesmo o acinte do nosso. Em compensação, transformamos o que seria o local escolhido para celebrarmos a terceira pessoa da Santíssima Trindade no “Estado do Espírito de Porco”.
Embora há muito tenhamos desenvolvido essa capacidade fratricida, somos um povo fácil de enganar, trabalhador e quase angelical. Mas acreditamos que a mentira dita seguidas vezes se transforma em verdade absoluta. Muitos inquilinos do Palácio Anchieta sabem disso e deitam falação. Alguns governantes, mais espertos que outros, quando se ausentam do estado, armam sempre uma arapuca para os próprios aliados e os raros inimigos e voltam em concorrida coletiva. Muitas vezes, nem falam o que foram fazer no exterior. O que vale é a volta triunfal como “moralizador da coisa pública” e blá, blá, blá.
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Outros ainda ousam justificar o fato de, no Brasil do império, um “decreto do imperador” – desde aquela época já existia um imperador nos impondo suas vontades – ter determinado o falacioso isolamento de nossa civilização para proteger as riquezas das Minas Gerais. Por isso que nós, os capixabas, desmatamos e destruímos a natureza com impressionante voracidade. Queremos recuperar o tempo perdido. Só que ainda não nos livramos da figura temerosa e assustadora do “imperador”. Alguns, espertíssimos, sabem se apropriar dessa ameaça soberana e comandam, pelo temor, as gestões públicas e até mesmo as privadas.
Até os dias atuais, a falta de vontade política evidencia a degradação do nosso estado. No meio ambiente, por exemplo, os agentes poluentes invadem casas, apartamentos e pulmões, enquanto os governantes são cortejados pelas poluidoras. Dificilmente a população da Grande Vitória não será seriamente afetada por inúmeras doenças respiratórias. A quantidade de pó de minério que respiramos na bela capital capixaba e na histórica Vila Velha supera, em muito, a produzida pelo cartel de Medelin. E o pó daqui não é crime, ao contrário, é um ato legal e ainda financia a campanha da maioria dos políticos.
Os atentados ambientais ocorrem em decorrência da absoluta cumplicidade dos criminosos com os organismos que deveriam fiscalizar os ecossistemas. Enquanto isso, os inquilinos do Palácio Anchieta vão loteando o território espírito-santense com os poderosos grupos econômicos e seus projetos sem compromisso com a qualidade de vida. Os desmandos foram se acumulando a ponto de os eleitos, em maioria esmagadora, serem financiados pelas “transacionais”. Como um candidato que recebe dinheiro de criminosos ambientais vai se comportar quando do exercício do poder?
Desmatamos 90% da cobertura da exuberante mata atlântica em todo o estado e invadimos o Sul da Bahia com centenas de serrarias. Ali, executamos uma ação de terra arrasada. Do “picadão”, na divisa com o Espírito Santo, até Monte Pascoal, nas proximidades de Porto Seguro, em duas décadas, os capixabas, destruíram tudo pela frente. Depois, aos milhares – com caminhões, motosserras e instintos assassinos – foram para o Sul do Pará. Lá, já devastaram o município de Paragominas e, insatisfeitos, chegaram em Rondônia. A “capixaba” Ariquemes está pegando fogo.
Outro equívoco é a assustadora concentração econômica na Grande Vitória. Esse projeto insano de desenvolvimento, engendrado na Ufes por medíocres economistas, há muito é capitaneado pelos inquilinos do Palácio Anchieta, que preferem concentrar o feudo próximo aos olhos da Cidade Alta. E o interior do estado definha. A quebradeira é geral. Um exemplo é a criminosa transferência da sede administrativa da Petrobras de São Mateus para Vitória. A população da capital pagará – ou já está pagando – o preço do caos da estrangulação de suas ruas, da violência e do desconforto, além da inalação do pó de minério.
Recentemente, o governo do Espírito Santo iniciou a construção de uma penitenciária de segurança máxima em São Mateus. Com a incompetência da atual gestão pública na área da segurança, o superpresídio de 540 vagas deverá abrigar mais de 2 mil detentos. O pior ainda vai acontecer: O local escolhido, o Hortão Municipal, onde se produziam alimentos destinados às crianças das escolas públicas, foi desativado para a instalação da “magnífica obra”. Em tese, o governo do estado fez a seguinte troca com o povo de São Mateus: levou a sede da Petrobras e mandou uma penitenciária. De quebra, acabou com a produção de alimentos e socializou a fome. Para o futuro, o governo já garantiu milhares de vagas aos jovens delinqüentes que surgirão.
Mas nem tudo está perdido. Conseguimos que alguns abnegados capixabas reprimissem inúmeros atos lesivos e denunciassem muitos criminosos. Justiça seja feita a alguns destemidos servidores públicos que aplicam a lei. A maioria dos políticos age em defesa das poluidoras, é para isso que elas financiam as campanhas. Conseguimos, ainda, preservar vários santuários ecológicos, à base da luta abnegada de muitos. O sangue de Paulo César Vinhas ajuda a formar uma consciência em defesa do meio ambiente e da vida. Felizmente, geramos bons cidadãos com inúmeras cruzadas heróicas contra os carrascos da natureza.
Para isso acontecer, bastou a luta de um homem. Ele foi o mais extraordinário dos capixabas, o mais solidário dos brasileiros e o mais destemido dos oriundis. Feito de um caldeamento de valentia de maracajá, aymoré e guarani, viveu em defesa das nossas exuberantes matas. O surgimento de Augusto Ruschi – guerreiro das montanhas de Santa Teresa – fez o Brasil despertar contra a incúria dos homens maus e a cumplicidade dos governantes falaciosos. O genial cientista dos beija-flores foi perseguido, ameaçado e quase precisou cometer um ato de primitivas intenções.
Nós, os capixabas, temos o inusitado prazer em execrar os conterrâneos que se notabilizam nas diversas áreas do conhecimento, dentro e além das fronteiras do estado. Fazer sucesso aqui é um pecado. Ser um ecologista, então, nem se fala. E Augusto Ruschi enfrentou a ira das “transacionais”, o servilismo da “imprensa amiga”, o dinheiro que subvenciona as campanhas eleitorais e o rancor dos carimbadores de licença ambiental. Alertou contra a instalação das poluidoras na Grande Vitória, que continuam despejando toneladas de agentes tóxicos em nossos pulmões. Foi um profeta da qualidade de vida.
E escolheu justamente a bucólica paisagem de sua terra para assentar vivência, se opor ao establisment e perpetuar a morada. Até os dias de hoje ter o mínimo de compromisso com o meio ambiente em nosso estado é um ato de resistência. Resistência ao sistema concentrador de desenvolvimento na Grande Vitória. Resistência ao acinte, ao engodo, à mentira e à dissimulação com que muitos governantes agem. Alguns não suportam a menor contestação de seus métodos autoritários e os que discordam são execrados, levados ao paredão pela polícia política do estado e “fuzilados” em plena democracia.
Para tal, transformaram parte do necessário e imprescindível Ministério Público Estadual numa espécie de Doi-Codi moral. Por tudo isso, viver no Espírito Santo e não temer o “decreto do imperador” continua sendo um ato de coragem. Mas alguém precisa se rebelar. A lição de dignidade deixada por um defensor da vida não teria sentido se, em nossa contemporaneidade, seu exemplo não tivesse ressonância. Muitos dos que enfrentaram a ditadura militar – escrevendo poemas panfletários e tendo a morte lambendo os calcanhares –, por certo, não se furtarão a isso.
O cientista Augusto Ruschi resolveu fincar no solo capixaba sua consciência para salvar o que restou de nossos afluentes, lagoas, florestas, vales, rios, charcos e animais. Mas foi preciso ameaçar invadir o Palácio Anchieta com uma arma: “Vou matar o governador!”. Como um naturalista reconhecido mundialmente, chegaria às vias de fato com um ato tão primitivo? Ruschi achava que: “Tinha que dar uma de louco, para ser respeitado”. Valeu a ameaça! A sanha do governador em transformar a reserva de Santa Lúcia numa plantação de palmitos não foi efetivada.
Se sua relação com os governantes era péssima, imagine com os conterrâneos? Vivendo numa pequena cidade e lutando pela preservação da natureza, arranjou muitos desafetos. A convivência com alguns nativos foi, digamos, “de amor e ódio”. Muitos queriam que ele fosse um pacato e obediente cidadão. Que cumprimentasse a todos pelas ruas, acenasse com salamaleques e, sobretudo, não incomodasse o poder político local ou estadual. Ruschi fez o contrário. Foi um rebelde da causa do meio ambiente. Tinha fiéis amigos. Um dele, o jornalista Rogério Medeiros, no Jornal do Brasil, proporcionava voz ao profeta das matas.
Certa feita, após a realização de um Globo Repórter, em que presenciamos o seu histórico confronto com Reinor Greco, fui visitá-lo em Santa Teresa. Ele vivia rodeado de orquídeas, bromélias e beija-flores. Era quase um monge. Falava com os bichos e se oferecia para protegê-los. Ouvia o canto dos pássaros e os imitava como uma maviosa canção da vida – gorjeios e súplicas. Quando o vi falando com os animais, fiquei emocionado. Confesso que chorei. Ele pedia para ser sepultado naquela floresta. Seu corpo e sua alma estão lá, próximos a uma cachoeira, ouvindo o som da corredeira das águas e o farfalhar da floresta.
Então, cheguei a Santa Teresa na hora do almoço. Indicaram-me o restaurante Gasparini, no centro da cidade. Solicitei em alto e bom tom: “Quero um prato à moda Augusto Ruschi”. A intenção era homenagear o grande cientista. Celebrá-lo em sua terra natal. Reverenciá-lo como um belo brasileiro, um homem bom. Puro engano. Havia feito uma ofensa a quase todos naquele recinto. Tinha cometido um pecado estadual: valorizar um notável capixaba em vida. Disseram-me, em tom quase ameaçador: “Vai ter indigestão”. Além de outras sandices. Ali, comecei a entender melhor o estado do Espírito Santo.
A comida, servida por Dona Olinda Sancio Gasparini, estava saborosa – não tive indigestão nenhuma. Observei que um jovem, ao canto do balcão, me olhava com ar de satisfação. Notei que ninguém lhe dirigia a palavra, e parecia isolado. Algo me dizia que era o único a concordar comigo. Enquanto mastigava, pensava o que dizer ao cientista sobre o episódio. Resolvi que não ia contar o ocorrido. Ao levantar-me, o jovem se aproximou e me deixou ainda mais intrigado: “Liga não, moço! Aqui, todo mundo tem inveja do doutor Guti”.
No posto de gasolina, perguntei quem ele era: “Aquele? É Sérgio Gasparini, filho da dona do restaurante. É doido do juízo!”. Pensei em desistir da visita, mas a imagem gigantesca de Augusto Ruschi insistia para que continuasse. Era uma aura de coragem e destemor, alguém que havia enfrentado muitas vicissitudes. Um capixaba que não tinha fugido da luta, nem se curvado ao “decreto do imperador”. Ele me recebeu com cordialidade. Falou de muitos sonhos, anseios e esperança, num futuro de paz e harmonia. Não lhe falei da ameaça de indigestão e das sandices. Tive a impressão que sabia do que havia ocorrido.
Assim, fui compreendendo melhor a nós, os capixabas. Aos nossos governantes, as gentes simples e os intelectuais. Cheguei a uma conclusão: somos um povo que se deixa iludir, vota nos agentes políticos financiados pelas poluidoras e cheira pó de minério com a naturalidade de quem respira o ar das montanhas. Pensei em ir viver bem longe. Menos ao Sul do Pará. Mas aquele profeta da natureza – que pregava num estado devastado e continuava acreditando na vida e nos homens – me fez continuar resistindo. Nunca mais temi os atos insanos de nenhum imperador e muito menos de reles aprendiz de tirano.
Voltei às barrancas do Cricaré. Sabia que não seria fácil sobreviver escrevendo as histórias dos quilombolas “esquecidos” pela historiografia oficial. As palavras de Ruschi fortaleciam-me: “Ser capixaba é um ato de resistência”. Continuarei um botocudo, procurando defender o legado de muitas gerações, a fustigar a sanha dos governantes, o descalabro das transacionais e a nefasta ação das poluidoras. Acabei descobrindo que Ruschi era um deles – a nos fazer compreender melhor – e havia sido tão necessário às nossas consciências, desejos e utopias.
Poderíamos afirmar que somos um povo capaz de resistir a todos os desatinos e defender a vida, a natureza, a racionalidade, a democracia, a decência e a liberdade com incontido entusiasmo. É certo que destruímos as matas com impressionante voracidade, respiramos pó de minério e votamos nos candidatos financiados pelas poluidoras, mas geramos o mais extraordinário defensor da natureza e um dos pioneiros das lutas em defesa do meio ambiente no Brasil e no mundo. Augusto Ruschi será lembrado daqui a mil anos como o cientista que enfrentou um governador para defender um santuário ecológico. E até pensou em matá-lo.
O estado do Espírito Santo, ao contrário, será sempre lembrado por incentivar a devastação da exuberante mata atlântica, apadrinhar os projetos sem o menor compromisso com o meio ambiente, fomentar a implantação das poluidoras na Grande Vitória e tentar nos fazer acreditar que um “imperador de araque” vai nos salvar da degradação moral e das vicissitudes da política. E que o chamemos mesmo de “Estado do Espírito de Porco”, sem demérito algum. Pode não ser uma agradável definição, mas continuar chamando-o pelo nome da terceira pessoa da Santíssima Trindade, convenhamos, é um sacrilégio.
* Escritor e jornalista, com várias obras publicadas, foi secretário da Cultura do Espírito Santo e é um dos principais defensores do meio ambiente na região do vale do Cricaré, no município de São Mateus (ES), onde vive.
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