Paulo Kramer * |
Os países andinos (Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela) e o Brasil têm uma história tão longa de desconhecimento mútuo que ficamos até espantados ao descobrir semelhanças entre alguns dos nossos mais graves problemas políticos. Foi essa a sensação que trouxe de Quito, Equador, onde participei, no último dia 4, do seminário "O Desafio dos Partidos Políticos", promovido pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), e o projeto Ágora Democrática – Programa de Formación y Diálogos Políticos, do International IDEA (Institute for Democracy and Electoral Assistance, iniciativa intergovernamental bancada principalmente pelos países escandinavos e o Canadá), com apoio da Embaixada do Brasil. Leia também Tanto lá, como cá, o tema da reforma político-partidária e eleitoral chegou ao topo da agenda pública, em razão de disfunções que desmoralizam a prática da democracia e tornam cada vez mais árduo o exercício da governabilidade. Numa definição clássica, partidos políticos em democracias avançadas são organizações voluntárias que competem pelo voto popular para conquistar o poder, agregando as preferências de amplos setores sociais, processando suas reivindicações e afunilando esse largo espectro de interesses na forma de políticas governamentais. Atuam, destarte, como fiadores de consensos indispensáveis à “governação” da sociedade. Os diagnósticos apresentados, no evento de Quito, pelos professores Simón Pachano, coordenador do Programa de Ciência Política da Flacso-Equador, e Juan Rial, veterano consultor uruguaio especializado em sistemas partidários latino-americanos, convergem em um quadro muito diverso do modelo acima e caracterizado por uma série de distorções: crescente aversão popular aos partidos e suas lideranças; despolitização do discurso eleitoral, submetido à estratégia, à linguagem e aos truques do marketing; divórcio entre partidos vinculados ao tradicional gradiente esquerda/direita e movimentos sociais emergentes, o que, nos Andes, deu margem à proliferação de agremiações indígenas, como o equatoriano Pachakutik; invasão da arena pública por outsiders manipuladores do endêmico sentimento antipolítico e também por lobbies corporativistas que agem como grupos de veto, bloqueando a possibilidade de se negociar uma pauta mínima de interesses gerais. Em toda a região, a fragmentação do voto – fator de inviabilização dos partidos como agregadores de interesses – é levada ao absurdo por confusas modalidades do sistema de representação proporcional, a exemplo do modelo plurinominal vigente, mais uma vez, no Equador. A província de Pichincha, onde está a capital do país, envia 14 deputados ao parlamento unicameral com 100 membros. Pois bem, um hipotético eleitor de Quito pode escolher até 14 candidatos de diferentes legendas – da extrema esquerda à extrema direita –, ao mesmo tempo, num voto que é verdadeiro convite à pulverização do legislativo. Aliás, não é à toa que o número médio de partidos por país andino corresponde a 45! Legislações infelizes Nos anos 90, esse panorama se tornou ainda mais grave com o advento de reformas constitucionais que admitiram figuras como as organizações políticas não-partidárias e os candidatos independentes (mais conhecidos na terminologia brasileira como avulsos), completamente desvinculados dos partidos, que, assim, perderam o monopólio da representação política, agravando dramaticamente as velhas patologias do personalismo, do clientelismo e do populismo. Na Colômbia, onde essa modificação foi introduzida pioneiramente (1991), o atual presidente, Álvaro Uribe, somente chegou ao poder depois de desfiliar-se do Partido Liberal, no qual militara a vida toda. No Peru, em seguida ao autogolpe fujimorista de 1993, uma Constituinte talhada para fortalecer o Executivo e enfraquecer o parlamento deu aos cidadãos a opção de poderem exercer seus direitos políticos individualmente ou por meio de organizações políticas como partidos, movimentos ou alianças. O caráter meramente nominal e instrumentalista das legendas de que se serviu Alberto Fujimori para ganhar três mandatos presidenciais reflete-se nos seus próprios títulos, com prazo de validade limitado: Cambio 90, Cambio 95, El Futuro se Cumple… Ele e seu sucessor, Alejandro Toledo, tiveram suas candidaturas oficialmente patrocinadas por partidos, mas são, na realidade, caudilhos apartidários. A Constituição Bolivariana de 1999, na Venezuela de Hugo Chávez, consolidou a anti-política do carisma autoritário, nascida dos escombros do antigo duopólio de poder entre o Copei, do ex-presidente democrata-cristão Rafael Caldera, e a AD, de sua contrapartida social-democrata, Carlos Andrés Pérez. A renúncia do presidente da Bolívia Gonzalo Sánchez de Lozada, na esteira das agitações de outubro de 2003, abriu caminho à reforma constitucional de fevereiro do ano seguinte, a qual aceitou, como forma alternativa de representação, os "agrupamentos de cidadãos", aglutinadores das comunidades indígenas. Se, de uma parte, essas mudanças precipitaram o desgaste da dimensão representativa dos partidos, de outra, a perda da sua dimensão governativa limitou-os a meras máquinas eleitorais, alheias ao cumprimento das promessas palanqueiras de desenvolvimento econômico e eqüidade social, pior ainda, incapazes de influir proativamente nas decisões da administração pública, agora esfera exclusiva de tecnocratas sem partido. Essa alienação, não raro, assume a forma de oposição movida pelas bancadas situacionistas à política dos governos que elas deveriam sustentar (E eu que achava que a hostilidade da base parlamentar do governo Lula à diretriz econômica ortodoxa do eixo Palocci/Meirelles constituísse uma esquisitice petista…). Raciocinando por contraste, Rial e Pachano formulam a hipótese fecunda de que a aceitação e o sucesso das políticas econômicas dos governos do Chile, da Costa Rica e, em grau bem mais modesto, do Brasil são uma função de sistemas partidários mais institucionalizados. Reformas, sim, mas com cuidado No Equador, o descompasso entre instituições políticas e realidade social acarretou uma instabilidade crônica: nos últimos nove anos, sucederam-se nove presidentes. Penúltimo dessa vertiginosa série, o coronel Lucio Gutiérrez encarnou projeto que amalgamava nepotismo, autoritarismo, cooptação de parcelas marginalizadas – tais como indígenas evangélicos – e a nossa tão conhecida compra de legendas e apoios parlamentares, numa aposta no descrédito das agremiações tradicionais, especialmente o Partido Social-Cristão (PSC) do ex-presidente León Febres Cordero. Em fins de 2004, a decisão de Gutiérrez de substituir, por nomes de sua confiança, os 31 ministros, vitalícios, da Corte Superior de Justiça, sólido bastião do PSC, encontrou a resistência não apenas dos desmoralizados políticos profissionais, mas, sobretudo, de um movimento em grande medida espontâneo de classes médias e jovens urbanos ("los forajidos") que, com epicentro em Quito, acabou por derrubar o governo em abril deste ano. Em manifestações que assumiram a feição irreverente de um carnaval cívico, a palavra de ordem inicial, "Fuera Lucio!", logo se generalizaria em um retumbante "Fuera todos!" Empossado na presidência, o vice de Gutiérrez, Alfredo Palacio, não tem partido, num sintoma eloqüente das imensas dificuldades e contradições que o novo governo passaria a enfrentar para honrar seu intento declarado de reforma política. E reforma política, com ênfase em experiências comparadas de legislação eleitoral, foi o tema da palestra do jurista e ex-chefe da Oficina Nacional de Procesos Electorales do Peru, Fernando Tuesta. Ecoando advertência que já havia sido feita, de passagem, pelo professor Rial, Tuesta recomendou cautela àqueles reformadores de nuestra América, inclusive brasileiros, que preconizam mudanças profundas, completas, totais como alternativa milagrosa à presente crise de representação política. É claro que vale a pena lutar por medidas que democratizem a vida interna dos partidos, como eleições primárias, a fim de neutralizar o controle oligárquico dos velhos caciques. É óbvio que cláusulas de barreira, ou de desempenho, devem ser impostas de modo a reduzir a permissividade do sistema ao oportunismo fisiológico das legendas de aluguel, ou partidos-táxi (Peru), ou ainda partidos-garagem (Colômbia). É evidente que o emprego criterioso de mecanismos de democracia direta, como o “ recall” – punição para representantes desonestos e incompetentes com perda de mandato, determinada por maioria do eleitorado –, o plebiscito e o referendo, pode suplementar dinamicamente o funcionamento da democracia representativa. Igualmente indiscutível é a urgência de se adotarem dispositivos rigorosamente transparentes na fiscalização e na limitação do financiamento de campanhas eleitorais. Tão necessário quanto tudo isso, porém, é compreender que normalmente o sistema eleitoral condiciona o formato e o tamanho do sistema partidário. Mais: que toda escolha no âmbito da engenharia política envolve, ao mesmo tempo, perdas e ganhos, as alternativas oscilando entre dois grandes pólos. De um lado, os sistemas majoritários (voto distrital anglo-americano, onde o vencedor leva todos os votos), facilitadores da governabilidade, graças à produção de maiorias claras, à custa das minorias, que, por mais significativas em certos distritos, quase sempre ficam fora do parlamento. De outro lado, os sistemas proporcionais, cujas variantes são quase tão numerosas quanto os países que as adotam pelo mundo afora, embora mostrem-se unânimes na sua preocupação fundamental a de garantir que as eleições espelhem da maneira mais fiel possível a diversidade de opiniões e interesses presentes na sociedade. Aqui, o desafio maior consiste em construir maiorias viáveis. Por último, mas não em último, cumpre ter sempre em mente que a racionalidade estratégica dos atores políticos e suas organizações partidárias, porventura grandes beneficiários das distorções legais em vigor, irá estimulá-los a aplicar sua criatividade transgressora ao desvirtuamento das novas normas, baixadas com a melhor das intenções. Afinal, obra humana, nenhum sistema é perfeito.
(*) Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e analista da Kramer & Ornelas – Consultoria. |
Deixe um comentário