O contrato social respira, mas está ferido de morte. Parte cada vez maior das nossas cidades está fora dos domínios do Estado. A democracia, já tão pouco representativa neste canto do mundo, não esperava se ver retratada pelo cadáver que temos em nossas mãos. Um cadáver negro, de mulher jovem, bissexual e favelada.
Há mais. Alguns já apontam para o risco de “mexicanização” da nossa economia em razão do fortalecimento dos mercados das drogas ilícitas e do aumento da insegurança. Poderes paralelos se fortalecem pelo financiamento crescente e afrontam as instituições pela via da força. Matam agentes do Estado – policiais, quase sempre –, e, agora, inauguram o assassinato de parlamentares. Governos reagem e aportam recursos cada vez mais raros no combate ao varejo do tráfico. As milícias e a cúpula do crime organizado – que coordena a migração para outros crimes no Rio de janeiro, como o roubo de cargas, – pouco figuram no planejamento da intervenção federal.
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Segundo estudo recente, das 50 cidades mais violentas do mundo, 17 ficam no Brasil. O indicador não fala sobre discussão entre vizinhos. Trata-se de assassinatos. Mesmo com a tragédia humana da morte violenta de mais de 60 mil brasileiros por ano, em quase todas as metrópoles brasileiras boa parte dos recursos destinados à solução do problema se perde pela incapacidade de articulação dos órgãos de segurança pública.
Há ainda mais. Se falta o uso integrado de sistemas de inteligência, já existem diversas experiências que demonstram a ineficiência de soluções imediatistas, espetaculosas, não baseadas em evidências empíricas, supostamente exigidas pelo clamor popular. O problema central não é a incapacidade técnica ou a inaptidão para formular políticas por parte dos operadores da segurança pública. Também não é a escassez de orçamentos. Muito do que paralisa a implementação das medidas realmente necessárias e que causam impacto vem da mistificação ou de políticas demagógicas, fisiológicas e populistas que se servem fartamente do medo.
O sentimento avassalador de insegurança coloca a sociedade à mercê da falta de escrúpulos desses senhores da guerra, vingadores de plantão. Sentindo-se absolutamente desprotegida, a população se deixa levar por um espírito de vingança, realçado pelo sentimento de impunidade geral. Vítimas reais e potenciais encontram algum conforto no discurso de ódio desses políticos, especialmente se a punição prometida parecer justa e socializar culpas.
No entanto, a violência nunca será institucionalizada como “mediadora” da própria violência, mesmo quando admitida culturalmente. Ela um dia se voltará contra todos e nos encontrará sem garantias reais, como atesta qualquer experiência totalitária de esquerda ou de direita. As pessoas precisam ser alertadas de que não haverá paz social pela matança, de pessoas ou ideias. Espera-se que as eleições de 2018 fortaleçam a humanização da nossa sociedade, não a barbárie.
Há muito mais, porém. A mulher que pensaram exterminar simboliza o Brasil que todos lutamos para construir: menos desigual, mais livre, mais próspero. Sua breve vida esteve a serviço de se ver muitas vezes reproduzida no meio inóspito de onde brotou, de virar do avesso as vidas de tantas outras Marielles, condenadas pelas estatísticas. A vereadora poderia ser os seus mais de 46 mil votos. Seu legado, contudo, é esse ícone de libertação e coragem, de uma luta diária diante do improvável. Ela nos brindou, aqui e agora, com o futuro idealizado, com a esperança de que é possível.
A cidadã brasileira tombou. Se não levou pesadas balas de chumbo em nosso lugar, teve a coragem de enfrentar aqueles que quiseram calar a sua voz, a nossa voz, de todos nós, não importando os valores ou a ideologia. Em nossa jornada civilizatória, é essa a carga que nos cabe: defender o estado de direito, denunciar essa tendência embrutecedora e apontar rumos que nos mantenham no caminho democrático.
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