Dia desses, contemplando algumas filas, fiquei a pensar no quão são maravilhosas! Vejo nelas o retrato supremo da igualdade e do respeito ao próximo: cada um esperando, pacientemente, a sua vez.
Lá estão, em um mesmo e democrático espaço, ricos e pobres, fracos e poderosos – todos ordeiramente alinhados. Até no trânsito a majestade das filas se faz presente. Contemple, com o espírito um pouco mais aguçado, a beleza implícita de uma longa fila de carros, alcançando o efeito único de igualar o mais dispendioso e potente modelo esportivo a alguma sucata ambulante – todos ali, enfileirados, aguardando a vez de prosseguir.
Filas podem ter até um efeito estético ruim – mas quem haverá de questionar sua aura de igualdade e de espiritualidade? Talvez por conta disso a raça
humana é especialmente cuidadosa ao tratar do respeito às filas. É verdade: você já viu alguém, de uma celebridade a um miserável, declarar publicamente que não respeita filas?
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E lá estava, na Itália, uma impaciente autoridade a contemplar um engarrafamento e consultar o relógio. Eis que a dita cuja, atrasada para uma entrevista, teve a ideia de convocar os bons préstimos de uma ambulância! E lá foi ela, atropelando a bela espiritualidade de uma fila!
Inspirada neste exemplo, uma empresa russa teve a curiosa iniciativa de oferecer aos ricos lá de Moscou ambulâncias de aluguel. Por fora os veículos até enganam bem, com sirene, pintura e adesivos característicos. O diferencial está na parte de dentro, contemplada com amplos assentos revestidos de couro e o conforto de uma luxuosa limusine. E lá se vão pelas avenidas afora todos aqueles respeitáveis senhores abrindo passagem e transformando os cidadãos comuns em gente de segunda classe. Segundo li, alugar uma dessas ambulâncias custa em torno de R$ 400 por hora – eis aí o preço da dignidade humana.
Mas talvez o exemplo mais chocante venha lá dos Estados Unidos. Transcrevo, a seguir, trechos de uma reportagem do sério jornal britânico “The Times”: “O segredo veio a público através de uma conversa entre duas mães em Manhattan, que iriam passar férias em parques temáticos na Florida (EUA). “Você irá desejar um daqueles guias portadores de necessidades especiais do mercado negro”. Contratando um deles, famílias distintas estariam habilitadas a percorrer todas as atrações dos parques sem a inconveniência de uma fila”.
A reportagem esclarece que o parque “permite a visitantes em cadeiras de rodas o acesso às suas atrações através de uma “entrada mais conveniente”, juntamente com mais seis convidados”. Assim, “como os magos de Harry Potter que desaparecem através de um muro … as crianças [ricas] podem evitar duas horas de fila acompanhando seus guias paraplégicos por uma entrada lateral”.
Em Londres, o parque Alton Towers decidiu ser mais transparente: basta pagar uns R$ 320 e passar na frente dos mortais – simples assim. Este caso não é isolado: o ingresso para a torre panorâmica daquela cidade custa uns R$ 70 – ou R$ 100 para evitar as longas filas formadas pela patuleia.
Ainda nos EUA, recentemente anunciou-se uma peça de teatro estrelada por Al Pacino. As filas, evidentemente, eram imensas e para todos. Aliás, para quase todos – quem tivesse R$ 250 disponíveis ficava isento.
Diante destes exemplos, oriundos das mais ricas e civilizadas sociedades deste planeta, fico a pensar na deliciosa exclamação de Machado de Assis: “a exceção só é odiosa para os outros”.
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