Paulo Negreiros
Fábio Góis
Em meio ao, por vezes, desenfreado dia-a-dia do Congresso Nacional, com senadores, deputados, jornalistas, assessores, servidores e congêneres transitando com mil e uma incumbências, um cantinho escondido nas dependências do Senado se destaca. Ou melhor, não se destaca – a aura de despojo e familiaridade ali se concentra de forma que a discrição é grande virtude.
Lá, pode-se comer um bom misto quente, tomar um suco, sentar-se ao sofá para acompanhar a sessão do plenário pela TV, cortar o cabelo (ou fazer as unhas, escova ou pintura nas madeixas etc, no caso das damas). Ou ainda engraxar os sapatos puídos pelo corre-corre.Trata-se da já famosa Barbearia do Senado. Para muitos, o mais agradável e “terapêutico” (palavras de um jornalista) ambiente da Alta Casa. E, aqui, três personagens são emblemáticos dessa atmosfera simples e acolhedora: os engraxates Procide – veterano com 35 anos engraxataria –, Fábio (na foto, à esquerda) e Ismael (à direita).
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Para retratar um pouco esse ambiente peculiar, a reportagem do Congresso em Foco bateu um papo – regado a pão de queijo – com “os três mosqueteiros” da graxa. A despeito da dura rotina vivida por eles do lado de fora dos nobres limites do Senado, nada muito sério os abala.
“Não quero outro emprego”, diz Procide, usando um uniforme roto e azul-marinho, sujo de graxa, desconcertante contraste aos bem desenhados ternos e vistosos sapatos (muitos dos quais importados) de couro dos excelentíssimos senadores – que raramente dão as caras (ou os pés) por lá.
Um terço de século
O engraxate Procide Pereira de Vasconcelos, 45, acorda todos os dias às 4h. Morador de Monte Alto, município de Padre Bernardo (GO), percorre de ônibus 96Km até chegar ao Congresso, seu “teatro de operações” diárias, onde permanece até as 19h30. É um dos engraxates que batem ponto todos os dias em um dos locais mais agradáveis do Senado: uma lanchonete e uma barbearia com uma pequena engraxataria os separando. Lá, ganha honestamente a vida, e não faz pouco tempo, realizando a mesma atividade: já são quase 35 anos.
“Eu vim do Ceará quase que direto pra cá, em 1973. Eu vim muito novo com meu pai, tinha dez anos de idade. O primeiro trabalho que fiz aqui em Brasília foi o de engraxate, e continuo fazendo até hoje”, narra Procide, com uma humildade que se reflete até em sua idéia sobre a necessidade que um político tem de andar com o calçado brilhando. “Só mesmo conservar o sapato. A graxa sempre conserva o coro do sapato”, disse, sequer mencionando a elegância ou o bom aspecto que o brilho da graxa pode dar ao sapato.
Casado, pai de três rapazes – um de 24, outro de 23 e o caçula de 21, todos casados – e com sete netos, Procide conta como a engraxataria do Senado entrou em sua vida. “Entrei em 1973. Comecei direto aqui. Meu padrasto já trabalhava aqui, soube que tinha uma vaga e me trouxe pra cá, com dez anos.”
Graxa e flanela
Com a experiência amealhada em mais de três décadas de trabalho entre os parlamentares, o engraxate veterano diz que conheceu – e engraxou – várias gerações políticas. “Foram muitos: presidentes, primeiros-secretários, diretores e tudo o mais. Até já faleceram muitos deles, como Petrônio Portella [Arena-PI, ex-presidente do Senado]”, relembra, dizendo ter fotos em casa com alguns desses congressistas. E o segredo para uma boa engraxada? “Não tem. É graxa e flanela só. Não tem segredo.”
Com natural simplicidade, Procide diz que, nesses 35 anos de trabalho no Senado, “não mudou muita coisa”. “Já era até para eu ser funcionário hoje. Não fui por causa de mim mesmo. Meu irmão, por exemplo, entrou no meu lugar na engraxataria quando eu dei uma saidinha. Hoje ele é chefe de sala”, disse. “E eu estou aí, pelejando.”
Mesmo diante da baixa remuneração que recebe (“numa faixa de um salário e meio por mês”, diz ele, embora fontes ouvidas pela reportagem garantam que o valor é maior), Procide diz que não tem qualquer tipo de queixa em relação ao trabalho ou ao próprio ambiente. “De jeito nenhum. O Senado é muito bom, desde quando comecei até agora. É um excelente serviço”, resigna-se, dizendo que “jamais” sairia da engraxataria. “Mesmo se eu fosse me aposentar, eu continuaria aqui engraxando aqui. Ainda sou novo para isso.”
Apesar de dizer que não entende de política, Procide arrisca um palpite. “[Os políticos] precisam fazer mais um pouco pelo povo. Estão fazendo muito pouco pelo povo, olhar por nós. Principalmente para essas pessoas que andam por aí, dormindo na rodoviária, comendo lixo pela rua.”
Vote num, leve dois
O engraxate Fábio Oliveira da Silva, 28, mora em Santa Maria (DF) com pais e irmãos. Relutou em conceder a entrevista, mas deu boas risadas durante a conversa. Com ar desconfiado, estudou pausadamente cada declaração antes de proferi-la. Em seguida, revela-se, demonstrando desenvoltura e desinibição ao contar detalhes de sua trajetória.
“Minha mãe trabalhava na liderança do PDT, onde funcionavam os serviços gerais, como segurança, faxina etc. Ela me trazia quase todos os dias, e eu ficava ajudando o pessoal, trabalhando informalmente”, disse o engraxate, explicando como entrou para o time dos “três mosqueteiros”. “Na época, tinha um engraxate trabalhando aqui, e surgiu uma vaga. Foi quando minha mãe pediu para o Alexandre Costa [ex-senador do PFL do Maranhão], que falou com o chefe da barbearia. Eu aprendi aqui a engraxar, e já estou há 16 anos fazendo isso.”
Fábio diz que os ganhos com o lustrar dos sapatos variam. “O que a gente consegue ganhar aqui depende da época. Geralmente, consigo chegar a um salário mínimo mensal”, garante, acrescentando que é preciso completar o orçamento caseiro com outra atividade. “Além de engraxate, eu sou vigilante noturno aqui no Senado, e fico na gráfica. Lá eu já trabalho há quatro anos”, disse Fábio, que entra às 19h e saí às 7h do dia seguinte, com uma folga a cada dia trabalhado.
Mesmo trabalhando no centro do poder do país, e cercado de acontecimentos que definem os rumos da nação, Fábio diz não estar apto a tecer comentários alongados. Mas surpreendeu ao criticar um ponto de nosso sistema político, especificamente a questão do coeficiente eleitoral em eleições proporcionais (cálculo que determina quantos votos um partido necessita para eleger um vereador ou deputado).
“Em relação à política, eu discordo de uma coisa: o negócio da legenda. Eu votei num político e aí um outro que não tem nada a ver é eleito! Eu não votei nele, eu votei no outro”, reclamou Fábio, citando o caso do ex-deputado Enéas (eleito pelo extinto Prona de SP), que, por ter recebido mais de 1,5 milhão de votos nas eleições de 2002, levou consigo mais quatro companheiros de partido para a Câmara.
Graças ao pastor
Mais “popular” entre os três engraxates “das celebridades”, Ismael da Silva, 30, faz pose para dar entrevista. Com um dos punhos cerrado e meticulosamente acomodado na cintura, com a providencial coluna ereta a demonstrar seriedade, Ismael – que, inclusive, “articulou” as entrevista com os outros dois colegas de flanela e graxa – conta como a religião, de certa forma, o levou à engraxataria do Senado.
“Eu já era engraxate na rua antes de vir para cá, lá no Jardim Ingá (Luziânia-GO), onde moro atualmente. Como eu era evangélico, conheci o pastor da igreja, que era barbeiro aqui – e inclusive é finado, já faleceu. Um engraxate saiu daqui e foi para o quartel, e sobrou uma vaga aqui. Ele [o pastor] me viu na rua engraxando, com a caixinha nas costas, e falou que tinha uma vaga no Senado”, narra Ismael, contando que o teste de aptidão foi improvisado.
“Fiz um teste lá mesmo no sapato dele. Ele disse que eu trabalhava bem e me trouxe pra cá em 1992, e estou aqui até hoje. Isso tem 16 anos, fez agora em abril”, relata Ismael, que vive do dinheiro que consegue como engraxate. Ele conta que trabalhava meio expediente na própria lanchonete do Senado, depois de passar toda a manhã engraxando. “Como houve licitação e o ex-dono [da lanchonete] perdeu, eu consegui ficar aqui o dia todo, até às 19h.”
Ismael diz considerar “glamouroso” o trabalho que faz nos pés dos nobres políticos que por lá passam. “Acho importante, interessante. Igual o pessoal que vem entrevistar a gente aqui e diz que nós somos os engraxates dos famosos, porque aqui vem senador, deputado, ex-presidentes, jornalistas, muita gente famosa. Somos as celebridades aqui da engraxataria do Senado”, diverte-se.
Mas, em meio a tanto entusiasmo e simpatia, nem sempre o cliente retribui à altura. “A maioria nem conversa conosco. É mais um jornalzinho, uma revista que a gente dá para eles lerem. Eles ficam lendo e só. Não entramos muito no espaço deles, mas é aberto – se for pra conversar com a gente também é normal, não tem segredo”, declara Ismael, sem o menor sinal de rancor ou mesmo interesse em novas amizades.
Filosofia de vida
Para finalizar, diz o que representa para sua vida a atual atividade. “Através disso aqui a gente pensa em fazer uma faculdade, estudar. Daqui que surgem as coisas. A fonte de renda que a gente tem é isso aqui, não tem outra. A gente vai batalhar aqui para conseguir as coisas do outro lado”, revela, dando lição de vida em seguida. “A maioria das pessoas não gosta do que faz. Eu gosto do serviço que eu faço, que é engraxar sapato. Tudo o que consegui foi através disso aqui, então eu gosto do emprego que tenho.”
Ao final da entrevista, os três filosofam. Lembram que, como têm de começar “de baixo” a tortuosa trajetória da vida, nada mais adequado que esse início se dê “pelos pés”. “E pés de gente importante”, ressalta Ismael. Contudo, uma questão ficou no ar. Durante a conversa, alguns visitantes da Barbearia ouviam a tudo com atenção. Foi quando surgiu o seguinte comentário: “Os sapatos dos políticos a graxa pode limpar, mas a consciência…”. Ah, a voz do povo…
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