Ao institucionalizar os conflitos, a democracia é o único regime no qual estes se tornam tangíveis e podem ser trabalhados coletivamente, de forma a construir sínteses entre as diferentes propostas.
Por isso mesmo, o regime democrático é o único que permite a vivência da natureza humana em sua totalidade, com a expressão de suas idiossincrasias e divergências de opinião. É exatamente essa dimensão da democracia que encontra-se ameaçada hoje no Brasil, pela emergência de um projeto de poder que pressupõe o rompimento da laicidade do Estado e que está calcado numa agenda racista, homofóbica e machista. Esta é uma visão de mundo que pretende estabelecer uma hierarquia entre os seres humanos: pessoas que tem o direito de viver sua afetividade e sua sexualidade, e outras não. Pessoas que podem expressar sua religiosidade, e pessoas que não podem fazê-lo.
Dentro dessa conjuntura, é inadmissível que o governador do Distrito Federal, curvando-se a esse projeto de poder, tenha retirado depois de doze horas um decreto que foi esperado durante doze anos pela comunidade LGBT do Distrito Federal. Não foram doze dias nem doze meses, foram mais de doze anos! Doze anos aguardando a regulamentação da Lei 2.615/2000, conhecida como Lei Maninha, para que finalmente pudéssemos dizer, orgulhosos, que é contra a lei expulsar casais homossexuais de bares e restaurantes ou recusar um quarto de hotel a alguém por conta da orientação sexual.
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Tenho certeza de que o governador Agnelo Queiroz não é, pessoalmente, homofóbico. Mas cedeu a pressões de setores conservadores. Cedeu a esse projeto de poder fascista, que põe em risco não só a comunidade LGBT, mas o conjunto da sociedade, porque tende a negar todas as singularidades, a calar toda a divergência de opinião. E cedeu apesar dos grandes esforços dos setores progressistas que integram hoje a estrutura do Governo do Distrito Federal.
Piores ainda foram as declarações emitidas por Agnelo logo após a revogação do decreto. Como se sabe, ele afirmou que a lei “continha excessos”. Ora, não cabe a ele, como chefe do Poder Executivo, julgar se a lei possui ou não excessos. Se a lei tiver de ser modificada, isso é prerrogativa do Poder Legislativo local. Se tiver de ser considerada inconstitucional ou com vícios formais, cabe ao Poder Judiciário decidi-lo. Agnelo não é Luís XIV para dizer “O Estado sou eu, a Lei sou eu”. A Lei 2.615 estabelece claramente a obrigação do executivo de regulamentá-la. Não cabe a ele dizer se a lei tem excessos ou não. Cabe ao governador cumprir a lei.
Esse projeto de poder do qual falávamos acima, e ao qual o governador cedeu nesse episódio, põe em risco o próprio Estado Democrático de Direito, pelo qual tanto se lutou e tanto se sofreu neste país. Dias atrás reuni-me com o Ministério Público para pedir que ele intervisse na questão, cobrando do governador a regulamentação da Lei. Quero colocar-me à disposição, não só da comunidade LGBT, mas da cidadania do Distrito Federal, na luta pela regulamentação da Lei 2.615 e pelo direito a divergência e a singularidade, na luta contra essas sementes de fascismo que começam a espalhar-se pela nossa sociedade.
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