Pablo Bezerra Luciano e Rommel Macedo *
Para além dos debates eleitorais, a sessão legislativa de 2014 reserva grandes e elevadas reflexões em torno da estruturação das funções do Estado, haja vista que a Advocacia Pública busca alcançar sua autonomia pela via parlamentar, por meio da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 82/2007, de autoria do ex-deputado federal Flávio Dino, que se encontra em fase de apreciação na Comissão Especial presidida pelo deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ) e que tem como relator o deputado federal Lelo Coimbra (PMDB-ES).
Por ocasião de seu bem fundamentado parecer, Coimbra pontuou que “a missão da Advocacia Pública, para ser exercida na extensão e dimensão que lhe confere a Constituição, exige que a instituição da advocacia pública seja complementada com o atributo próprio às funções essenciais à Justiça e que ainda lhe falta: a necessária autonomia” (clique aqui para ler).
O deputado partiu da compreensão de que a Advocacia Pública, como espécie do gênero da advocacia, é “tão ou mais independente tecnicamente e inviolável quanto qualquer outra função essencial à Justiça”. No entanto, nos termos de seu parecer, tal função constitucional ainda carece de garantias para sua autonomia, razão pela qual votou favoravelmente à aprovação da PEC 82/2007.
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Para se fazer justiça com a história, é importante ressaltar que o voto do deputado Lelo Coimbra não seria possível se, há quase quatro décadas, Rafael Mayer não houvesse consagrado a autonomia da própria Ordem dos Advogados do Brasil. Com efeito, chamado a se pronunciar a respeito da higidez do Decreto 74.296/1974, baixado pelo então presidente Ernesto Geisel, que colocava a OAB sob a supervisão do Ministério do Trabalho, Mayer, no parecer L-069, de 9 de maio de 1975 (clique aqui para ler), desafiou as orientações já exaradas do anterior consultor-geral da República, Romeo de Almeida Ramos, do consultor jurídico do Ministério do Trabalho, Marcelo Pimentel, e de Alfredo Buzaid, então titular do Ministério da Justiça, para entender que o ato regulamentar teria violado o § 1o do art. 139 da Lei 4.215/1963 (Estatuto da OAB, hoje revogado). Esse dispositivo excetuava expressamente a Ordem das disposições legais referentes às autarquias ou entidades paraestatais.
Mayer, à luz do disposto no art. 2o, § 2o, da então “Lei de Introdução ao Código Civil”, considerou que o Decreto-lei 200/1967, por se tratar de norma geral, não teria revogado o disposto no § 1o do art. 139 da Lei 4.215/1963. Em dicção elegante, o consultor-geral da República concluiu que “é legalmente insubsistente o Decreto 74.296/74”, como quem exercita com naturalidade sua própria independência funcional.
E, aqui, a colocação de parênteses sobre o sistema de supervisão ministerial, propugnado pelo Decreto-lei 200/1967, é imprescindível. Referida norma, epigrafada de “Lei da Reforma Administrativa”, reconhece as autarquias como pessoas jurídicas integrantes da noção de administração indireta com gestão administrativa e financeira descentralizadas. Embora autônomas, dentro de suas respectivas esferas de competências, as autarquias, no sistema do Decreto-Lei 200/1967, estão submetidas à chamada supervisão ministerial, que se exerce com vistas à realização dos objetivos fixados nos respectivos atos de criação, em harmonia com a política e a programação do governo, a eficiência administrativa, assegurando-se a independência administrativa, operacional e financeira da entidade (art. 26).
Ainda assim, como se viu, o ministro Rafael Mayer, quando consultor-geral da República, órgão que à época integrava a própria Presidência da República (art. 32 do Decreto-lei 200/1967), homenageou a especialidade da Lei 4.215/1963, que excetuava a OAB do regime legal próprio das autarquias. Segundo esse jurista, é “irrecusável que o legislador, no arbítrio que lhe cabe em dispor normativamente, discricionariedade que só tem por linde a Constituição, poderia assim fazê-lo, instituindo um direito singular, atendendo a razões que houve por bem valorar”.
Imune à supervisão ministerial, nos termos do antigo Estatuto da Ordem e do Parecer L-069/1975, a advocacia foi incumbida, pela Constituição da República de 1988, de desempenhar função essencial à Justiça (art. 133). Constitucionalizou-se, com a nova Lei Maior, norma de teor semelhante àquela constante do art. 68 do antigo Estatuto da OAB, segundo a qual “no seu ministério privado o advogado presta serviço público, constituindo, com os juízes e membros do Ministério Público, elemento indispensável à administração da Justiça”.
Inovando substancialmente na repartição das funções do Estado, a Constituição da República de 1988, promulgada à época em que Mayer ocupava a presidência do Supremo Tribunal Federal, abandonou a fórmula clássica que inseria todo e qualquer órgão, entidade e função públicas nas estruturas organizativas dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Para além desses três poderes, há, no regime de 1988, outras instituições permanentes que exercem por força de mandamentos constitucionais funções sem as quais não há democracia nem exercício legítimo do poder estatal. O Ministério Público, a Advocacia Pública, a Defensoria Pública e a advocacia em geral, instituições permanentes de status constitucional, prestadoras de funções públicas, integrantes do rol das funções essenciais à justiça, não têm suas competências derivadas de quaisquer dos poderes, muito embora não rareiem discursos doutrinários no sentido de enquadrar essas instituições, por exemplo, no seio do Poder Executivo [1].
No desenho constitucional vigente, as funções essenciais à Justiça coordenam-se harmonicamente entre si e com os poderes clássicos, sem qualquer relação de proeminência, acessoriedade ou de subordinação. O deputado Lelo Coimbra acerta ao referir que as “são as funções essenciais à Justiça os ‘freios e contrapesos’ dos poderes clássicos, uma espécie de limite cujas atribuições não se reduzem a proibir ações irregulares, mas compreendem também, no caso da Advocacia Pública, o papel colaborador de orientar e ajustar previamente as políticas públicas ao que prescrevem as leis e a Constituição e à concretização dos valores e objetivos centrais do Estado brasileiro”.
Com efeito, a PEC 82/2007 visa conferir mais coerência e contornos institucionais mais definitivos à Advocacia Pública, não obstante um tratamento especialíssimo que já lhe foi conferido pela Constituição de 1988, destacando-a em boa monta da noção de órgão do Poder Executivo. Trata-se de completar o esboço institucional traçado em 1988, num sério trabalho de síntese da história da luta do Direito contra o arbítrio.
Diga-se, então, que não se pode pensar que a circunstância de o presidente da República nomear livremente o chefe da Advocacia-Geral da União dentre cidadãos maiores de 35 anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada (CRFB, arts. 84, XVI, e 131, § 1o), seria motivo suficiente para se colocar a instituição nas entranhas do Poder Executivo. Ora, ao mesmo presidente da República se reconhece a competência de nomear diversos magistrados, o procurador-geral da República, ministros do Tribunal de Contas da União (CRFB, arts. 84, XIV, XV e XVI), mas nem por isso razoavelmente colocam-se tais autoridades como órgãos do Executivo.
Ademais, há de se ter em mente que, na esfera federal, nos termos do art. 76 da Constituição da República, o Poder Executivo é exercido pelo presidente da República, auxiliado pelos ministros de Estado, e que se conferiu ao advogado-geral da União um tratamento substancialmente diverso daquele reservado aos ministros de Estado.
Nesse sentido, a Constituição de 1988 prevê a exoneração dos ministros de Estado por ato do presidente da República (art. 84, I), mas cala sobre a forma de destituição do advogado-geral da União (art. 84, XVI), a indicar que a lei pode dispor sobre o tema. E mais: por força do parágrafo único do art. 84 da Constituição, certas e determinadas competências que se reconhecem ao presidente da República podem ser delegadas, por ato deste, “aos ministros de Estado, ao procurador-geral da República ou ao advogado-geral da União”, a significar, pela menção dupla menção a “ministros de Estado” e “advogado-geral da União” que esses agentes públicos desempenham funções inconfundíveis.
Fosse, por força da Lei Maior, o advogado-geral da União um “ministro de Estado”, o constituinte não teria optado por submeter o chefe da AGU ao julgamento pelo Senado Federal de eventuais crimes de responsabilidade, quaisquer que sejam esses, ladeando-o no inciso II do art. 52, com os ministros do Supremo Tribunal Federal, membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, e o procurador-geral da República, enquanto que, no inciso I do mesmo artigo, dispôs que o Senado processará e julgar os ministros de Estado nos crimes de responsabilidade, desde que conexos com os de mesma natureza cometidos pelo presidente e vice-presidente da República.
Não se pode perder de vista ainda que compete à lei, de iniciativa do presidente da República, a criação e a extinção de ministérios e órgãos da administração pública (CRFB, arts. 61, II, “e”, e 88), e que a Advocacia-Geral da União não é um mero órgão administrativo, mas uma instituição permanente, de extração constitucional, que não pode ser, por óbvio, extinta por lei. A AGU, exatamente porque não se trata de um órgão de governo, ao contrário dos ministérios, existirá independentemente do grupo político que transitoriamente venha a ocupar a chefia do Poder Executivo.
De mais a mais, a colocação de qualquer das funções essenciais à Justiça nas estruturas do Poder Executivo, isto é, como um órgão auxiliar de seu chefe, seja o presidente da República, seja o governador de Estado, seja o prefeito municipal, esvai completamente a noção constitucional de essencialidade. Afinal, o que é auxiliar, acessório, expletivo, superabundante não pode ser, logicamente, essencial.
Nessa onda de incompreensões supremas, muito bem superadas pelo voto do deputado Lelo Coimbra na PEC 82/2007, destaca-se também uma certa linha doutrinária que coloca a advocacia, o Ministério Público, e a Defensoria Pública como funções instrumentais ao Poder Judiciário. Consignam que, em razão da imparcialidade dos juízes e da vedação de exercício de ofício da jurisdição, faz-se necessário profissionais, versados nas letras jurídicas, que seriam pontes entre as insatisfações dos indivíduos e da sociedade e o juiz [2]. Conquanto seja a parcialidade dos advogados condição necessária para a imparcialidade dos juízes, é descabido supor algum protagonismo no processo judiciário (Calamandrei). Afinal, se é certo que nos processos judiciais não há advogados sem juízes, não há juízes sem advogados. A relação que existe entre esses profissionais é de implicação e de bipolaridade.
Tudo está então a revelar que nem as funções essenciais à Justiça são braços do Poder Executivo nem são atividades meramente instrumentais ao exercício da jurisdição. Portanto, merece aprovação o parecer lavrado por Coimbra na apreciação da referida proposta, num voto que tem tudo para se tornar um grande marco para a Advocacia Pública, assim como o Parecer L-069/1975 se tornou para a advocacia em geral.
[1] Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, por exemplo, entendem que “não resta dúvida de que a Advocacia Pública integra o Poder Executivo, a quem deve prestar consultoria e assessoramento jurídico” (v. Curso de Direito Constitucional, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 998).
[2] José Afonso da Silva, por exemplo, coloca como justificativa da existência das funções essenciais à Justiça a necessidade de o Judiciário atuar mediante alguma provocação. As funções essenciais à Justiça reduzem-se, no dizer do mestre, a “propulsoras da atividade jurisdicional” (v. Curso de Direito Constitucional Positivo, 24ª ed. São Paulo, Malheiros: 2005, p. 594).
* Pablo Bezerra Luciano preside a Associação Nacional dos Procuradores do Banco Central do Brasil (APBC). Rommel Macedo, mestre em Direito e Políticas Públicas, é presidente da Associação Nacional dos Advogados da União (Anauni).
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