Sylvio Costa
No último dia 10 de outubro, a palavra pizza era citada em nove entre cada dez comentários sobre política nacional. A sensação dominante era a de que o governo Lula, que tinha elegido duas semanas e meia antes Aldo Rebelo (PCdoB-SP) presidente da Câmara dos Deputados, havia superado o pior da crise. Em entrevista ao jornalista Edson Sardinha, publicada naquela data pelo Congresso em Foco, o jurista Miguel Reale Júnior avisou que não era bem assim.
À frente de uma ONG voltada para a promoção da ética na política, Reale Júnior acabara de se encontrar com parlamentares e técnicos da CPI dos Correios. E, na contramão dos humores então predominantes, anunciava que a comissão estava fazendo em silêncio um trabalho altamente promissor – a análise da vasta documentação em seu poder – e ele, a partir de novembro, começaria a trazer à tona grandes surpresas.
A previsão está se confirmando. Na quinta-feira, dia 3, o relator da CPI, deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), revelou um possível vínculo entre contratos federais e a operação ilegal de recursos feita pelo empresário Marcos Valério Fernandes de Souza. Amparada por provas materiais, a CPI concluiu que o Banco do Brasil, por meio da Visanet, permitiu o pagamento indevido de R$ 9,1 milhões à DNA, agência de publicidade de Valério.
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Daí a suspeita do relator de que o dinheiro desviado tenha sido uma das fontes dos recursos repassados a políticos por meio do chamado valerioduto. Valério, não custa lembrar, admite ter feito os repasses irregulares. Mas diz que usou para isso empréstimos bancários. As informações divulgadas por Serraglio reforçaram a suspeita da CPI de que os empréstimos foram de araque. Teriam sido providenciados como meio de ocultar a movimentação de dinheiro público.
Paralelamente, surgiam novas denúncias de impacto contra o governo Lula e integrantes do PT. Entre elas, a acusação, feita por dois ex-assessores do ministro da Fazenda Antonio Palocci (SP), de uso de recursos vindos de Cuba na campanha presidencial de 2002.
Os outros dois momentos da crise
Embora sistematizar a análise de fatos ainda em andamento seja algo sempre temerário, é possível distinguir três momentos na atual crise política. O primeiro, detonado em maio pela revista Veja com o flagrante de corrupção nos Correios, trouxe a público as práticas usadas no poder pelo PTB do ex-deputado Roberto Jefferson (RJ).
No segundo momento, a partir de junho, o escândalo sai dos limites do PTB e atinge o governo Lula e partidos da base governista: Jefferson denuncia o pagamento de mensalão a deputados e fornece detalhes sobre a usina de irregularidades montada pelo PT. O publicitário Duda Mendonça eleva a crise ao ponto máximo de tensão ao confessar que seu trabalho na campanha de Lula e em outras campanhas petistas foi pago de modo irregular, inclusive mediante transferência de recursos no exterior.
Nessa fase, aparecem outros fatos relevantes, como a descoberta de que a empresa Gamecorp, que tem entre seus sócios um dos filhos de Lula, recebeu R$ 5 milhões da Telemar, a título de antecipação para desenvolvimento de jogos para celular. Dezenas de autoridades federais são afastadas. Três deputados envolvidos com o mensalão (veja quais) renunciam. Outros 13 respondem a processos de cassação (leia os nomes).
Mas as investigações em andamento no Congresso começaram a cair em descrédito. Seja pelo despreparo demonstrado por vários parlamentares, durante depoimentos prestados às CPIs dos Correios, do Mensalão e dos Bingos, em sessões públicas que algumas vezes se revelaram tão inúteis quanto circenses. Seja porque não apareciam provas sobre a origem dos recursos irregulares. Seja porque o governo deixou de ser o alvo exclusivo das acusações.
Engrossou o tom nas denúncias contra a oposição, aproveitando-se sobretudo das evidências que ligam o nascedouro do valerioduto ao PSDB. O saldo dessa ofensiva foi um certo esfriamento da crise, além do afastamento do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) – que recebeu dinheiro de caixa dois de Valério para campanha a governador, em 1998 – da presidência nacional do seu partido.
O que há de novo
O que há de novo, agora, é que as investigações entraram em uma fase mais técnica. Antes, as denúncias eram alimentadas pelo testemunho de pessoas como Jefferson e Duda. Mesmo oferecendo relatos ricos em detalhes e a credibilidade de quem desfrutou da intimidade com o poder, tais depoimentos sempre deram margem a desmentidos que somente a análise cuidadosa de extratos bancários, notas fiscais e outros documentos poderia desmontar.
Essa análise começa a dar frutos. Os R$ 9,1 milhões desviados seriam apenas a ponta do iceberg. Somente em recursos antecipados à DNA, o Banco do Brasil teria pago mais de R$ 70 milhões. A nova linha de investigação pode trazer dois desdobramentos desastrosos para o governo e o PT: a confirmação de que as irregularidades vão bem além do financiamento de campanhas políticas com caixa dois, como ambos sustentam, apoiados por Valério; e a comprovação de uso ilegal de dinheiro público.
Antes, a lista de beneficiários entregue pelo próprio Marcos Valério era a principal fonte de informações sobre o valerioduto. Agora, os técnicos da CPI dos Correios e parlamentares como Serraglio e o deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR) procuram basear suas conclusões no exame da documentação remetida por empresas e instituições financeiras.
A firme reação de Serraglio à entrevista dada sábado por Lula foi mais um sinal de que a CPI está ancorando suas conclusões em dados mais confiáveis. Na cidade argentina de Mar del Plata, onde participou da 4ª Cúpula das Américas, o presidente disse aos jornalistas que considerava "absurda” a conexão feita pelo relator entre a movimentação dos recursos do BB/Visanet e o valerioduto. “O que nós precisamos no Brasil é parar com o denuncismo e com insinuações que são desmentidas no dia seguinte", emendou Lula.
"Não é denuncismo vazio. Tudo está documentado", rebateu Osmar Serraglio no mesmo dia. Ele enfatizou que estão provados: o desvio de recursos em favor da DNA; a transferência de valor bastante próximo ao BMG; e a contratação, pouco depois, de empréstimo de igual montante entre o BMG e a Rogério Lanza Tolentino & Associados Ltda., empresa que tinha Valério entre os seus sócios. “Não houve qualquer ilação do relator. A DNA recebeu do BB, transferiu para o BMG, que emprestou à Rogério Tolentino e, desta, o dinheiro foi para o PT", afirmou Serraglio.
O relator checou a divulgar nota na qual lembrou que o Banco do Brasil reconheceu que a DNA recebeu da Visanet R$ 9,1 milhões, em 1º de junho de 2004, por serviços não prestados. E aproveitou para desqualificar a defesa esboçada pelo governo e por Valério. Alegando que os recursos foram apenas antecipados, Valério prometeu entregar nesta terça-feira as provas de prestação dos serviços. "Vai ser o Marcos Valério, agora, depois de uma CPI e de uma auditoria interna do Banco do Brasil, que comprovará os serviços? Basta dizer que a CPI tem duas versões da contabilidade da Valério. Ainda assim, com várias inconsistências e períodos não registrados. Aliás, ele estava incinerando notas fiscais", metralhou.
Novos elementos
Elementos mais convincentes de prova também estão vindo de outras frentes de investigação. O Ministério Público Estadual (MPE) de São Paulo colhe indícios cada vez mais fortes de que a Prefeitura de Ribeirão Preto (SP), na gestão de Palocci, cobrava propinas da empresa de coleta de lixo Leão & Leão. Segundo o MPE, a empresa recebia por serviços superfaturados ou não prestados, comprava notas fiscais frias para simular pagamentos a fornecedores e devolvia, por caixa dois, o dinheiro à prefeitura. O destino final seria o PT. O esquema foi denunciado, na CPI dos Bingos, por Rogério Buratti. Mas somente agora estão surgindo as provas documentais.
Também começa a ganhar novos contornos uma história que os governistas rechaçaram a princípio como fantasia: a acusação, feita por Veja, de que a campanha do presidente Lula, em 2002, recebeu contribuição financeira do governo de Fidel Castro. Veiculada por uma publicação conhecida por suas posições conservadoras e destilando carga ideológica que faz lembrar um velho mito anticomunista (o “ouro de Cuba”), a denúncia não foi levada a sério por muitos. Mas é consistente com dados que vão se acumulando .
Na terça-feira (8), Gustavo Fruet, que é o sub-relator de movimentação financeira da CPI, receberá os relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU) relatório sobre irregularidades nos contratos firmados pelos Correios com a SMP&B e outras agências. Na quinta, vai detalhar outras fontes dos recursos ilegais movimentados por Valério e pelo ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares. As informações vão constar do segundo relatório parcial divulgado pela subcomissão que ele coordena.
A CPI vai chamar para depor o ex-presidente do Banco do Brasil Cássio Casseb. Henrique Pizzolato, ex-diretor de marketing do BB e beneficiário de R$ 327 mil originários do valerioduto, vai depor novamente. A comissão também discute a conveniência de reconvocação de Luiz Gushiken, ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação, à qual cabia disciplinar o uso das verbas federais em publicidade. E intensifica as investigações dos demais contratos mantidos entre as agências de Valério e o governo federal. Nesse caso, as prioridades são a Eletronorte e os ministérios do Trabalho e do Esporte.
Ao mesmo tempo, a apuração em andamento em órgãos como a Polícia Federal (PF), a Controladoria Geral da União (CGU) e o Ministério Público Federal (MPF) deixam o governo e o PT mais embaraçados. Nesta semana, a PF e o MPF finalmente recebem oito caixas de documentos com as informações resultantes da quebra do sigilo das contas bancárias da Dusseldorf, firma aberta nos EUA por Duda Mendonça, e de outras 17 empresas que a abasteciam. A PF chegou a produzir relatório interno, no qual acusou o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) de dificultar a obtenção desses documentos.
Já a CGU concluiu, em relatório de auditoria divulgado sexta-feira, que a Secom, quando chefiada por Secom, interferiu indevidamente na licitação dos Correios para fazer uma mudança no edital que terminou por beneficiar uma das agências de Marcos Valério (leia mais linkar para matéria que deve consolidar aquilo que publicamos ontem, incluindo a nota da Secom, que se encontra neste arquivo).
Nesse clima, alguns voltaram a falar no impeachment de Lula. Para o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), há elementos mais fortes para justificar o impedimento do presidente do que aqueles usados em 1992 contra Fernando Collor. “Todo cenário é possível, inclusive o remédio amargo do impeachment”, declarou sexta-feira o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato. O presidente nacional do PPS, deputado Roberto Freire (PE), foi mais claro: “Chegou o momento de as pessoas sérias e responsáveis começarem a discutir o afastamento de Lula. Ficou comprovado agora o uso abusivo de algo que é um símbolo do país, o Banco do Brasil”.
Apesar dessas declarações, o clima ainda não é para dar início ao processo de impeachment. A oposição se contém, menos por causa da falta de evidências incriminadoras do que pelo temor de enfrentar de peito aberto um presidente que, debaixo de um festival de escândalos, mantém sua popularidade bastante alta.
Mas uma coisa já está certa. A CPI dos Correios, que encerraria os trabalhos em dezembro, vai ter seu prazo de funcionamento prorrogado até abril. Como é essa a CPI que realmente conta – a do Mensalão é dominada por governistas que pouco querem apurar ou por oposicionistas pouco qualificados para fazê-lo, e a dos Bingos serve mais como caixa de ressonância para denúncias contra o governo –, o pesadelo do governo e do PT está longe de terminar.
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