Bajonas T. de Brito Junior*
E-mail ao presidente Lula
“Meu Caro Lula,
Quarta-feira (27) cheguei em casa exausto e tentei ouvir um pouco de música. Mas não deu. Uma foto na página do UOL me deixou de tal maneira estarrecido que não pude mais ouvir música. Depois, vi o vídeo em que o grupo de desesperados que está nessa foto é confrontado pela polícia de forma canibal. E fiquei pensando, meu caro presidente, em você, nos seus aliados e no seu governo. Até nos seus ministros eu pensei. E pensei também na bandeira do PT. E, para aproveitar o trocadilho, pensei nas bandeiras erguidas pelo PT.
O PMDB de Garotinho foi derrotado pelo PMDB do filho do Sérgio Cabral. O governador se chama Sérgio Cabral Filho. Filho de quem? Do respeitado jornalista do extinto O Pasquim, Sérgio Cabral, o pai. Há uma aliança política entre o PT e o PMDB. Cabral Filho é o xodó de Lula, uma grande amizade os une. E aos amigos tudo. Temos que dar munição aos amigos. Vivemos agora a chegada do Pasquim ao poder. É a apoteose da democracia, palavra que freqüentava incessantemente as suas páginas. Páginas que, curiosamente, muitas vezes estampavam a figura da repressão, os milicos, em estereótipos de negros. Assim eram pintados os “gorilas da ditadura”.
Muito bem. O Pasquim chegou ao poder, e o PT se aliou a Sérgio Cabral, o filho. O Filho substituiu o Garotinho. Este, em seu governo, implantou no estado do Rio de Janeiro uma política genocida sobre as favelas. As milícias prosperaram, os brucutus floresceram, o caveirão se tornou um ser vivo, uma espécie de predador blindado entre as vielas de toda a pobreza.
Veja, Lula, seu primeiro ministro da Justiça foi ao socorro de Garotinho, quando ele precisou de ajuda. Isso foi logo depois que começou o seu primeiro mandato presidencial. A segurança estava em perigo. E do que ele precisava? Não se sabe ao certo, mas lembro que seu então ministro, Márcio Thomaz Bastos, sempre repetia o mesmo bordão: “Não se resolve essa situação com um tiro só”. Pois bem. De lá para cá já foram muitos tiros. Muitíssimos.
São talvez os fogos do Pasquim comemorando sua chegada ao poder. E mostrando sua face democrática. Fogo sobre a população indefesa das favelas. As crianças, os idosos, as meninas, os jovens desempregados, os estudantes… Quantos mortos e feridos até agora na Vila Cruzeiro? Parece que não vai faltar bala para ninguém. Uma política feita não na ponta de baionetas, mas na ponta de balas de fuzil. Pergunto-me até quando devemos todos permanecer assistindo às cenas de violação diária de todo e qualquer ambiente humano.
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Como é possível ver feridos aguardando serem liberados, após a consulta de documentos e testemunhos, sangrando ali, antes de rumarem a um hospital? Como é possível ver um grupo de pobres e negros desesperados com um ferido à beira da morte, enrolado num lençol tingido de sangue, ladeados de mulheres, crianças, uma grávida e um bebê, sendo barbarizados pela polícia? E isso no exato momento do maior desespero, enquanto tentam salvar uma vida?
Eles não podem seguir. Eles não podem correr para um hospital, eles não podem salvar uma vida – que talvez seja a de um irmão, um vizinho, um filho, um sobrinho. E por que não podem? Porque, meu caro Lula, supõe-se que eles estão carregando um bandido. Ou seja: que eles são bandidos dando cobertura a bandidos. É verdade. Um dia se diz que a população do Complexo do Alemão, em sua maioria, é pacífica e ordeira. No outro, que ela dá proteção aos traficantes.
Em nome da governabilidade, de tranqüilidade na Câmara e do mar de brigadeiro no Senado, ou, em última instância, em nome do grande projeto político do PT para o Brasil, vimos sua aliança com os tipos mais asquerosos da velha oligarquia brasileira. Está aí hoje mais que nunca nos jornais.
Para manter o PMDB e dar munição aos amigos, vemos a chuva de balas cair todo dia sobre a cidade. Assim se lubrifica o bloco no poder. Pergunto-me se essa lubrificação com sangue seria a mais coerente com as bandeiras do PT. Ou seria apenas coerente com a bandeira do PT?
É isso que vemos na foto, caro presidente — um grupo desesperado carregando um fardo branco com o vermelho vivo característico do PT. O vermelho vivo que, provavelmente, sorveu sua tinta de um corpo que poderia ser salvo, não fosse a conivência política, que substituiu o Garoto pelo Filho.
Agora parece que a bandeira do PT vai ter que ser lida de outro modo. O vermelho, não significa mais a luta, e sim o sangue da população periférica do Rio de Janeiro.
É o sangue que aciona e impulsiona a ciranda sanguinária do estado.
Mas, meu caro, quem sou eu para fazer reparos às suas políticas? A sua popularidade refuta, em princípio, qualquer crítica, e qualquer crítica, em princípio, se vê esmagada por sua votação. Ou não? Tudo está tranqüilo, não é? Está tudo certo. Mas, lembre-se, as tempestades geralmente sobrevém em dias de calmaria. Cuidado. Canudos não começou muito diferente de uma ação de vingança do estado. E terminou exatamente com muitos milhares de mortos. O que era Canudos perto do Complexo do Alemão? Ou o que era Canudos perto das centenas de Alemães no Rio de Janeiro? Cuidado.
Creio que seu atual ministro da Justiça, o sorridente e simpático Tarso Genro, sempre com o semblante maroto de quem vai contar uma piada engraçada, deveria contar vidas e não votos quando olha a segurança no Rio de Janeiro. Deveria contar as dores, o desespero, o medo e o terror com que milhares de habitantes do Rio de Janeiro se deparam hoje no dia-a-dia. Se eu que estou aqui, a centenas de quilômetros, sinto pânico e desespero ao ver as fotos e vídeos, o que eles não sentirão?
Imagine que fosse a sua família. Por que não? Um imigrante nordestino que se tornou torneiro mecânico poderia ser vítima do desemprego e migrar para o Rio de Janeiro. Poderia ele, com toda a sua família, alugar uma casa em algum bairro do Complexo do Alemão. Poderia ter um filho jovem, conhecido como Lulinha, que, como milhares de outros jovens, não encontram empregos e perambulam por aquelas vielas.
Pois bem. Imagine que ele — o Lulinha possível (não o Lulinha real) – fosse alvejado em uma quarta-feira, digamos, 27 de junho, de 2007 por uma “bala perdida”, dessas usadas por militares em combate. Digamos que, além de vastas porções de carne, ele tivesse tendões e ossos explodidos, que o sangue jorrasse em profusão. Enquanto o Lulinha (o Filho) começa a perder os sentidos em convulsão, Lula (o pai) tenta desesperadamente descer a favela para chegar a um hospital. Mas ele não pode passar pelo bloqueio. Primeiro, ele tem que provar que o filho não é bandido. E o filho está à beira da morte; o pai à beira da estrada, o pronto-socorro não muito longe, mas eles não podem passar.
Pois é meu, caro presidente. Isso não é um pesadelo macabro. São fatos macabros que ocorrem todo dia naquela cidade.
Meu caro Lula, depois do que vi, do que tenho visto, e do que sei que verei, quero dizer que minha indignação com sua política de segurança é muito grande. Muito maior do que eu posso expressar em palavras. Seu ministro da Justiça é moderninho. Ele não se incomoda de a filha ter um posicionamento político adverso ao dele. Ele é democrático. Ela também. E igualmente moderna. Seu pensamento é avançado e de esquerda. Quanto às filhas e filhos da população periférica do Rio de Janeiro, ele (o pai) se permite ser um pouquinho bárbaro e truculento. Mas isso são as contingências da política. Deve haver até uma boa piada a ser contada sobre isso.
Explosão social? Que nada! Não importa. A Força Nacional estará lá. Estão lá para proteger a população dos tiros dos traficantes.
(Obs: Agora só falta exportar o sucesso da política de segurança pública do Rio de Janeiro para o resto do país)
Passar bem, meu caro presidente.
Até,
Bajonas T. de Brito Junior”
*Bajonas Teixeira de Brito Júnior é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
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