“No livro do Gênesis, os primeiros grandes patriarcas hebreus (Abraão, Isaac, Jacó) têm muitas mulheres, como cabe a um próspero sheik do deserto. Como distinguir o esplendor do reino de Salomão, sem lembrar das setecentas mulheres do seu harém, entre as quais brilhava, inclusive, uma filha do faraó do Egito?”
“Nesse universo patriarcal, falocrático, poligâmico, a mulher só pode ter uma existência, uma condição ontológica rarefeita, essencialmente subalterna, secundária, menor, algo entre os camelos e rebanhos e os humanos plenos, que são os machos.”
Retiro estas frases do livro “Vida”, escrito por Paulo Leminski. “Vida” (Editora Sulina, 1998) traz a publicação de quatro “biografias”: Cruz e Souza, Bashô, Jesus e Trótski. As frases estão presentes na “biografia” de Jesus.
Ao lê-las, lembrei-me de que todas as viajantes, por turismo, do Ocidente, que vão ao Marrocos ou regiões próximas, voltam dizendo que um homem ofereceu um determinado número de camelos por ela. É uma piada com fundo de verdade, como geralmente são as piadas.
Quanto valia uma mulher na época em que viveu Jesus? O que tinha mais valor, uma mulher ou um camelo? A pergunta pode ser feita também para o longo período da história antes do nascimento de Jesus, em que se trata no Gênesis.
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O livro do Gênesis coloca a mulher e seus direitos sempre subordinados ao homem. Leminski também chama a atenção para a descrição de como Javé Deus criou a primeira mulher: a partir da costela de um homem, quando todos os homens nascem de mulheres.
PublicidadeCito Leminski por estar lendo o livro no momento das declarações das candidatas a miss no Peru, e pelos inúmeros casos de violência contra a mulher no Brasil.
Não sei como é hoje, mas anos atrás me chamava a atenção que a maioria das candidatas a miss, no Brasil, quando perguntadas o que tinha lido, não sei por quais razões, respondiam: “O Pequeno Príncipe”. Era uma resposta confortável, até por que nenhum ‘jornalista’ seguia a entrevista perguntando o que significou para ela a leitura do livro.
Este é só um registro.
Vou para o Peru, onde as candidatas a miss, que ao microfone, ao invés de declarar as suas medidas físicas, decidiram denunciar a violência contra a mulher. Poucos exemplos: “Meu nome é Camila Canicoba e represento o departamento de Lima. Minhas medidas são: 2.202 casos de feminicídios registrados nos últimos nove anos no meu país”; “Sou Diana Rengivo, de Ucayali, e mais de 300 mulheres em meu departamento são agredidas física e psicologicamente”; e “Minhas medidas são: 81% dos agressores das meninas menores de 5 anos são próximos da família”, afirmou Melody Calderón, representante de La Libertad.No Brasil, dados do DataSUS mostram que, no período 2005 a 2015, portanto em 10 anos, mais de 47 mil mulheres foram assassinadas, todas vítimas de agressões: sufocamento, armas de fogo, objetos cortantes e agressões sexuais.
Conta simples: são 4.700 mulheres assassinadas ao ano; 391,66 por mês; 13,05 por dia. Ou seja, na média, mais que uma mulher a cada duas horas. E são assassinadas pelo simples fato de serem mulheres.
De onde vem tudo isso: vem de uma cultura machista e patriarcal, construída ao longo da civilização. E isto está demonstrado não só no comentário de Leminski, mas nos livros de história e na própria Bíblia, que não deixa de ser um livro de história.
Cultura difícil de ser combatida, tanto que basta acompanhar o dia a dia da construção de ódio contra as mulheres, principalmente se negras.
Mais um registro, este do descaso do poder público em relação ao combate da violência contra a mulher. Semana passada, uma mulher, vítima de violência, foi até a Delegacia da Mulher em Curitiba para registrar um Boletim de Ocorrência.
O policial que a atendeu estava usando uma camiseta estampada com o nome de um candidato a presidente (me nego a escrever o seu nome), ex-militar, que tem um comportamento machista e violento contra as mulheres.
Para muitos homens, até hoje, como este candidato, a mulher só tem a função de ser camelo: é para trabalhar e ser montada.
<< Do mesmo autor: Dilacerada – a professora vítima dos novos tempos de opressão