Em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou um “ladrão de galinha”. Agora vai se deparar com um pé descalço cujo sonho era se transformar em um “pé de chinelo” (HC 123.108). A frase de um camponês de El Salvador, referida por José Jesus de La Torre Rangel (e aqui difundida por Lenio Streck) é paradigmática: “la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos“. Isso vale, em grande medida, no Brasil, para a lei penal (em regra, só pica os descalços).
O Judiciário brasileiro (tanto nesse caso do par de chinelos como em outros, exemplificativamente o da subtração de duas galinhas de São João de Nepomuceno-MG, onde ficou vencido o ministro Marco Aurélio que não concedia o HC para o “ladrão de galinha”), depois de dezenas de anos em contato e experiência com a degeneração moral da sociedade e das instituições, degradação essa promovida pela prazerosa vulgaridade do homo democraticus (Tocqueville e Gomá Lanzón), nos seus surtos de desconexão absoluta da realidade, vez por outra, delibera se desligar do mundo dos humanos. Transforma-se, nesses momentos, num avatar.
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Como já não tem contato com os humanos (os terráqueos), concede-se licença para se afastar do mundo tangível e de se expressar numa linguagem metafísica, absolutamente inacessível à quase absoluta totalidade dos habitantes do planeta azul. Não faz isso por se julgar superior aos mortais, certamente, sim, por se entender diferente (outro mundo, outro planeta, outra lógica, outra civilização).
O habeas corpus do “pé descalço” foi denegado pelo STJ (sexta turma) com base nos seguintes argumentos (prestem atenção na linguagem): “É condição sine qua non ao conhecimento do especial que tenham sido ventilados, no contexto do acórdão objurgado, os dispositivos legais indicados como malferidos na formulação recursal. Inteligência dos enunciados 211⁄ STJ, 282 e 356⁄ STF.”
Tudo isso é fruto de uma inteligência das súmulas 211, 282 e 356 do STF. Que pena que essa inteligência dos avatares não tem nada a ver com o ideal terráqueo da Justiça ao alcance de todos (na forma e na substância).
A ementa do julgado (sexta turma) prossegue: “Possuindo o dispositivo de lei indicado como violado comando legal dissociado das razões recursais a ele relacionadas (sic), resta impossibilitada a compreensão da controvérsia arguida nos autos, ante a deficiência na fundamentação recursal. Incidência do enunciado 284 da súmula do Supremo Tribunal Federal.”
Claro que, aqui na Terra, para “compreender a controvérsia” e determinar o arquivamento imediato dos autos relacionados à subtração de um par de chinelos (devolvido, diga-se de passagem) só dependemos de uma caneta e de uma cabeça terráquea, dotada de humanidade e sensibilidade. Nada mais que isso.
Para a aplicação ou não do principio da insignificância (continua a ementa), “devem ser analisadas as circunstâncias específicas do caso concreto, o que esbarra na vedação do enunciado 7 da súmula desta Corte”.
Quais circunstâncias específicas mais são necessárias além do fato de se tratar de um par de chinelos de R$ 16 (devolvidos) subtraído por um “pé descalço”, que foi condenado a um ano de prisão em regime semiaberto?
Para a sexta turma, o arquivamento desse caso é muito relevante por possuir caráter constitucional. E a “a análise de matéria constitucional não é de competência desta Corte, mas sim do Supremo Tribunal Federal, por expressa determinação da Constituição Federal”.
Seja de que natureza for, aqui na Terra, manda a sensibilidade humana que a subtração de um par de chinelos de R$ 16 deve ser arquivada prontamente, por meio de um habeas corpus de ofício. A matéria constitucional aqui existente é a dignidade humana, a liberdade, o Estado de direito, a proporcionalidade, a razoabilidade etc. Em síntese, tudo que os avatares desconhecem.
Há momentos que dá vontade de copiar, aqui no Brasil, aquela criança que, no Uruguai, no tempo da ditadura (criticada por Eduardo Galeano), pediu a sua mãe que a levasse de volta para o hospital porque ela queria “desnascer”!
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