Saverio Paolillo *
Estava na Europa durante os dias dos atentados em Paris e na Nigéria. Fui testemunha ocular da grande comoção provocada pela barbárie provocada pela intolerância e o fanatismo. A resposta da população foi imponente. Mas, além, do fator emotivo, os fatos merecem uma reflexão mais aprofundada que vai muito além do simples “Je suis Charlie” ou “Je ne suis pas Charlie”.
Em primeiro lugar, faço questão de questionar a suposta matriz religiosa dos atentados. A meu ver, blasfema quem usa o nome de Deus para justificar atos de terrorismo e para explicá-los. Mente deslavadamente quem mancha suas mãos de sangue e ousa justificar uma chacina para defender a honra de Deus, supostamente vilipendiada por uma charge.
É louco quem acredita num deus que ordene de se armar de kalashnikov para abrir fogo contra qualquer um ou, pior ainda, que peça de rechear crianças de explosivos para mandá-las pelos ares junto com inocentes frequentadores de igrejas e mercados como aconteceu na Nigéria.
Comete um ato sacrílego, muito pior daquele supostamente perpetrado pelos lápis dos jornalistas de Charlie Hebdo, quem se atreve a afirmar que por trás do terrorismo há o Islã. O Islã é uma religião de paz. Papa Francisco tem alertado sobre as “odiosas difusões” que identificam simplesmente o terrorismo com o Islã, já que, segundo ele, “o verdadeiro islã e uma adequada interpretação do Corão se opõem a toda violência”.
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Atrás dos terroristas não tem Deus e não tem religião. O deus invocado por eles enquanto matam ou se matam não existe, ou melhor, se, por ventura, existir, não é Deus, qualquer que seja o nome que lhe venha atribuído. Matar em nome de Deus é uma aberração. E se há alguém que manda matar não pode ser Deus.
O terrorismo não tem matiz religiosa, porque qualquer religião que se preze por esse nome, não pode se tornar mandante de atentados contra a vida e promotora de barbárie. A verdadeira religião é aquela que constrói pontes, facilita encontros no respeito das diferenças, promove a vida e contribui com a libertação integral do ser humano. Obcecar os fiéis, embuti-los de doutrinas que incentivam ao ódio e à violência, fazer recurso ao medo para mantê-los submissos, armá-los até os dentes e incentivá-los a matar e a se matarem em nome de deus não são atos religiosos, mas aberrações diabólicas.
O terrorismo “usa o nome de Deus em vão”. Serve-se de uma experiência de fé legítima e respeitável para levar para frente planos diabólicos. Explora a sensibilidade religiosa de pessoas simples, para inculcar o ódio. Sua arma preferida é semear terror nos “infiéis” e nos próprios “fiéis” se não cumprirem a risca as determinações de um deus bravo, carrancudo, cheio de melindres que, “ofendido pelos ultrajes sofridos”, conclama seus fiéis à vingança e à guerra.
Infelizmente, a instrumentalização de Deus e da Religião para fins bélicos não é uma exclusividade dos fanáticos islâmicos, mas é uma tentação que seduziu e continua aliciando os adeptos de todas as religiões. O fanatismo e a intolerância religiosa são uma ameaça muito mais presente daquilo que se pensa, inclusive no próprio Brasil. Ainda há muito que fazer para aprender a respeitar as diferentes manifestações culturais e religiosas e promover uma pacífica convivência. Esse, porém, é o único antídoto ao terrorismo enraizado no fanatismo religioso.
Os supostos “líderes religiosos” que arrolam jovens, os entulham de doutrinas, os armam até os dentes e os obcecam a tal ponto de torna-los capazes de realizar atos de absoluta folia, são fanáticos cujo principal objetivo é a construção de uma nação que usa uma caricatura do Islã para mandar e desmandar na base do terror.
Por incrível que possa aparecer, o primeiro alvo dos fanáticos islâmicos são os próprios muçulmanos que vivem no exterior. É quanto afirma Pe. Paolo FarInelli, biblista e escritor italiano, sempre atento aos problemas de atualidade.
Segundo Pe. Farinelli, os atos de terrorismo visam assustar os próprios migrantes de religião islâmica expostos à contaminação do Ocidente e fomentar o ódio dos ocidentais contra os muçulmanos. O que os fanáticos islâmicos querem mesmo é que o Ocidente expulse todos os muçulmanos e que estes sejam obrigados a voltarem para o Oriente. O Estado Islâmico, Al Qaeda e Boko Haram sabem que o contato com os infiéis, através, dos movimentos migratórios, está provocando a contaminação dos “princípios tradicionais”.
A liberdade, a democracia e a cidadania são valores inaceitáveis para os fundamentalistas, pois comprometem a submissão servil do povo ao poder da casta sacerdotal que abusa da religião para manter seus seguidores numa condição de servil submissão. Os muçulmanos que chegam ao Ocidente e experimentam certas conquistas não querem voltar mais a suas terras de origem.
Quem desembarca no Ocidente, ao entrar em contato com o novo estilo de vida, está disposto a colocar em cheque tudo, até suas crenças religiosas, para não abrir mão da liberdade conquistada. Tudo isso é inaceitável para os integralistas islâmicos. Os atentados, portanto, servem, em primeiro lugar, para fomentar o ódio do Ocidente contra os muçulmanos. Os integralistas islâmicos querem fazer de tudo para que os países ocidentais se revoltem contra os muçulmanos e os expulsem, obrigando-os a voltarem para o Oriente, isto é, ao integralismo.
Um dos alvos preferidos é a imprensa que teria a culpa de facilitar o processo de corrupção das consciências. A imprensa é culpada porque provoca o debate, coloca em discussão, deixa espaço ao confronto, chega até a dessacralizar aquilo que é intocável. Isso é impensável para os fanáticos, pois o deus que eles dizem de cultuar que não tem nada de Deus, não ri, é carrancudo, bota o terror, não tolera transgressões, mas exige a submissão e o obséquio cego. Para eles a religião não pode promover a libertação, mas deve sustentar a submissão cega.
Arrolar “soldados” para semear o terror não é empresa difícil. Os fanáticos “pescam” seguidores entre as fileiras de muçulmanos que, por sua vez, trazem em seu corpo e em sua alma as consequências do terrorismo ocidental. O Ocidente, de fato, não tem ficado para trás quanto a terrorismo. Por interesses econômicos, sobretudo para garantir o controle de matérias primas, como o petróleo, tem promovido guerras camufladas de “missões de paz”, “guerras preventivas” ou até de “ações humanitárias” que tem espalhado sofrimento e morte.
Operações desastradas têm atingido alvos civis, provocando o massacre de crianças e mulheres, sem contar as torturas e as brutalidades contra seguidores do Islã por parte de soldados das tropas ocidentais, como as restrições às liberdades, as violações aos direitos humanos e as prisões arbitrárias justificadas como medidas necessárias para combater o terrorismo.
Tudo isso tem gerado aquele ódio que agora constitui o terreno fértil para gerar candidatos ao terrorismo contra alvos ocidentais. Como diz o ditado popular, “quem semeia vento recolhe tempestade”. Reverter esse quadro não é fácil. Não basta uma resposta emotiva ou um posicionamento superficial. A gravidade da situação exige o compromisso de todos em defesa da convivência pacífica. Não temos outra saída: o isolamento dos terroristas e o fracasso de seus propósitos só podem ser alcançados somente com políticas de integração, com o respeito das diferenças, a tolerância religiosa e a implantação da cultura de paz.
* Saverio Paolillo, mais conhecido como Padre Xavier, é missionário comboniano, integrante da Pastoral do Menor e Carcerária e do Centro de Direitos Humanos Dom Oscar Romero (CEDHOR), da Paraíba.
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