Sylvio Costa e Andrea Vianna
Um dia depois de ter considerado rompido o acordo com os governadores para a votação do orçamento federal de 2006, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse ontem que o governo honrará, sim, o compromisso de aumentar os recursos destinados aos estados. A mudança de posição foi determinada pelo presidente Lula para evitar que os já incontáveis problemas enfrentados pelo governo na arena política fossem agravados por uma espécie de levante dos governadores.
A interferência de Lula acalmou o governador mineiro Aécio Neves (PSDB), que articulava com chefes do Executivo de outros estados uma nota pública conjunta contra Mantega. Em entrevista coletiva que deu ontem (quinta, 13), o ministro da Fazenda disse ter recebido do próprio Aécio a informação de que os governadores estão unidos no esforço para influenciar suas bancadas no sentido de facilitar a aprovação do orçamento federal na próxima terça-feira.
Mas, conseguirá o governo aprovar na terça uma proposta orçamentária que já deveria ter sido votada no ano passado? É o maior atraso ocorrido na votação do orçamento federal desde 1994. Por que a discussão do assunto está dando tanta confusão? Entenda o impasse e seus possíveis desdobramentos.
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A questão com os governadores
Como o Congresso em Foco informou em primeira mão, a pressão dos governadores é, sem dúvida, o maior obstáculo à votação do orçamento. Eles convenceram a oposição a impedir a aprovação da peça orçamentária enquanto o governo não concordasse em manter no mesmo valor do ano passado, R$ 5,2 bilhões, o montante de recursos destinados ao ressarcimento das perdas sofridas pelos governos estaduais com a isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre as exportações. Para compensar a isenção, determinada pela Lei Kandir, a proposta de orçamento em tramitação no Congresso prevê a liberação de R$ 3,4 bilhões.
Na terça-feira, o ministro da Fazenda imaginou ter superado o impasse. Garantiu o aumento imediato dos recursos em R$ 500 milhões e prometeu a liberação futura de mais R$ 1,3 bilhão, condicionada ao excesso de arrecadação dos tributos federais, isto é, à superação das previsões oficiais de arrecadação tributária. O acordo tinha como pressuposto, no entanto, a aprovação do projeto de lei orçamentária naquele mesmo dia.
Isso não ocorreu, e, no dia seguinte, Guido Mantega declarou que o governo também se considerava desobrigado de cumprir sua parte no acordo. Ao mesmo tempo, anunciou que o Executivo baixaria medidas provisórias para abrir créditos orçamentários com objetivo de evitar prejuízos ao funcionamento da administração federal. Foi uma demonstração de que Mantega, um técnico reconhecido por sua seriedade e preparo, está longe de compreender como funciona o relacionamento com o Congresso, sobretudo numa atmosfera de profunda crise política.
Suas declarações tiveram péssima repercussão, não apenas entre os líderes oposicionistas como, sobretudo, entre os governadores. Mantega foi obrigado a voltar atrás. "Se houver um esforço dos governadores para que a gente possa aprovar na terça-feira (18) o orçamento, a gente pode recolocar os R$ 500 milhões. O entendimento está aberto, estamos querendo atender uma parte das reivindicações, desde que não se coloquem novas questões para serem equacionadas", declarou ontem.
Os outros problemas
Aí é que está. Há, claro, outras "questões para serem equacionadas". A primeira delas é o péssimo ambiente político no Congresso. Mergulhado em escândalos e sem lideranças com desenvoltura e credibilidade para negociar entendimentos com a oposição, o governo é alvo, ainda por cima, de crescente agressividade por parte dos adversários. O clima, afinal, é de pré-campanha eleitoral.
Além disso, o Palácio do Planalto suspeita que os oposicionistas estejam criando dificuldades propositalmente para impedir que o governo faça investimentos no último ano de mandato de Lula. O relator da proposta orçamentária de 2006, deputado Carlito Merss (PT-SC), lembra que, mesmo que o orçamento seja aprovado na próxima semana, o governo terá apenas maio e junho para realizar novos empenhos previstos para este ano. Também terá só dois meses para fazer convênios com estados e prefeituras para a execução de obras. O prazo é imposto pela lei eleitoral.
"O governo teria praticamente dois meses para administrar o orçamento", destaca Merss. "O que está em jogo é um embate contra o governo. Acredito que a vontade do PFL e do PSDB é não votar e passar para a população que o governo é que não quer votar o orçamento. Ou a gente faz um embate duro chamando a base governista para votar ou não se vota o orçamento", diz o relator.
Não faltam, contudo, bons argumentos do outro lado. O líder da minoria na Câmara, José Carlos Aleluia (PFL-BA), rebate: "O governo não teve vontade política de aprovar o orçamento. Acho que está na hora de votar. Se o governo tivesse trabalhado com afinco, como fez na última semana, já teria aprovado".
Há, ainda, problemas específicos. Alguns governadores temem que a vinculação do repasse adicional de R$ 1,3 bilhão ao excesso de arrecadação seja um truque da Fazenda para descumprir o acordo. Nesse caso, eles invocam dois fatos significativos. O primeiro foi o próprio recuo ensaiado por Mantega. O segundo é que, em 2005, o excesso de arrecadação só garantiu R$ 900 milhões aos estados.
O governo está sendo pressionado também, principalmente pelo PFL, a fazer novas concessões, em favor da Bahia e de Sergipe, estados administrados pelo partido. Uma das reivindicações é que sejam liberados recursos para a construção de um ponte em Sergipe. Os pefelistas consideram os dois estados prejudicados na distribuição de recursos do orçamento federal.
Para piorar as coisas, ficaram indignados com o recuo do ministro da Fazenda e a decisão de editar medidas provisórias (MPs) para liberar verbas orçamentárias (em um valor total próximo de R$ 26 bilhões).
Ontem, o líder do PFL na Câmara, deputado Rodrigo Maia (RJ), disse que se depender de sua vontade, o partido contestará na Justiça a edição dessas MPs. "Essa decisão do governo é claramente inconstitucional e demonstra um abuso de poder. Não podemos concordar com isso", argumenta, ponderando que a definição de recorrer judicialmente terá de passar pela bancada do partido.
"Numa democracia, qualquer governo que não tenha maioria, negocia dentro do Congresso para conseguir aprovar os projetos de seu interesse", disse. "Somente um governo como o do presidente Lula apela para recursos diferentes quando não consegue maioria", queixa-se Maia.
"O governo está no limite"
A área econômica anunciou nesta semana duas MPs liberando recursos do orçamento. Uma delas, publicada na edição de ontem do Diário Oficial, abre créditos no valor total de R$ 1,775 bilhão para dez ministérios: Ciência e Tecnologia, Fazenda, Justiça, Previdência, Trabalho, Transportes, Planejamento, Defesa, Integração Nacional e Cidades. A outra, que o presidente Lula assinaria ontem mesmo e deve ser publicada segunda-feira, autorizando a utilização de mais R$ 24,4 bilhões, dos quais R$ 20,5 bilhões destinados a investimentos das empresas estatais.
De acordo com o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, Lula decidiu liberar a maior parcela dos investimentos das estatais porque essas empresas estão paradas à espera da aprovação do orçamento federal de 2006. "As estatais não podem ser paralisadas por causa de querelas menores", afirmou, em referência às ações da oposição para atrasar a votação do orçamento. "Impedir que as estatais façam seus investimentos é um crime contra o país. Se elas não realizarem os investimentos previstos para este ano, a economia vai ser freada".
Atualmente, segundo o ministro, as estatais estão impedidas de fazer licitação para comprar um computador ou reformar suas instalações porque não têm autorização orçamentária. "Essa situação é absurda, pois essas empresas são sociedades anônimas, possuem acionistas e têm ações nas bolsas do Brasil e do exterior", disse. "Somente a Petrobras programou investimentos de mais de R$ 32 bilhões para este ano", completou.
"Essa paralisia dos investimentos significa danos sérios para a economia, pois obras indispensáveis para a infra-estrutura do país não estão sendo realizadas e os empregos não estão sendo criados", afirmou. Os investimentos totais programados pelas estatais para este ano são de R$ 41,69 bilhões.
Guido Mantega investe na mesma linha, usando palavras mais fortes: "O governo já está asfixiado por falta de orçamento. O governo está no limite. Estamos em abril sem orçamento. É muito difícil governar".
A pressão contra as MPs
Para os líderes da oposição, no entanto, editar as MPs equivaleu a chamar para briga. E agora eles prometem guerra. O líder do PSDB na Câmara, deputado Juthay Magalhães (BA), já informou que o seu partido vai trabalhar para derrubar a medida provisória que libera recursos para as estatais.
"O governo demonstra que não quer acordo para aprovar o orçamento e vai ter que arcar com as conseqüências. Nós vamos criar um ambiente de beligerância absoluta no Congresso", disse Magalhães. "Se depender de minha posição na bancada, a MP não será aprovada", complementou.
O líder do PFL no Senado, José Agripino Maia (RN), também criticou a edição de mais uma MP para liberar dinheiro do orçamento. A MP das estatais é a décima à qual o governo recorre para garantir recursos. "Isso demonstra a incapacidade do governo de negociar", declarou.
Segundo o líder pefelista, o governo não tem interesse em aprovar o orçamento porque está sem recursos para cumprir promessas como o reajuste do salário mínimo, a correção da tabela do Imposto de Renda e o aumento do Bolsa Família. "O governo criou essas despesas, não tem fonte para arcar com elas e agora joga a culpa na oposição".
A oposição tem razão ao mirar sua pontaria na inabilidade do governo para negociar. Mas revela incoerência nas críticas à edição de MPs para manter em funcionamento a máquina federal. A prática é, de fato, condenada por juristas, que a consideram autoritária e tecnicamente inadequada. Mas governos anteriores também recorreram ao instrumento da medida provisória para tratar de matérias orçamentárias, muitas vezes com o apoio de parlamentares que hoje estão na oposição.
É aí que se volta ao problema do ambiente político, marcado pela extrema radicalização dos conflitos entre oposicionistas e governistas. Enquanto eles se digladiam, quem perde é o país, que continua sem orçamento.
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