Jean Gaspar *
Rever a sua história, analisá-la para entender o passado do nosso Brasil, é também trilhar o caminho do ensino da verdade, da ética e, sobretudo da preservação da vida para as futuras gerações. Muita gente, como eu, vivenciou a ditadura vivida por nosso país. Não cabe aqui ressaltar as diferentes lutas pela conquista da liberdade e pela construção da democracia.
Assim como no Brasil, existem no mundo todo organizações nacionais chamadas de comissões da verdade que buscam apurar com mais eficácia e estabelecer a verdade sobre crimes e fatos não esclarecidos num certo momento da vida de um povo, de uma nação.
A título de exemplo, cito o caso do Canadá, onde há uma comissão da verdade que visa a apurar e sensibilizar a população sobre sevícias sofridas durante anos por ex-alunos indígenas em colégios e pensionatos e suas consequências devastadoras para suas comunidades. Temos a comissão da verdade no Ruanda que apurou o genocídio ocorrido em 1994, com quase um milhão de mortes; e na da África do Sul, sobre o apartheid. Essas comissões atuaram como tribunais civis que serviram para descobrir a verdade e os motivos pelos acontecimentos graves. Outros países próximos, como Argentina, Bolívia, Chile e Paraguai, também têm as suas comissões da verdade.
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No caso do nosso país, caminhos sinuosos e tortos marcaram a sua trajetória, com violências, torturas, execuções extrajudiciárias e desaparecimentos forçados. Saber o que aconteceu de fato, trazer para as vítimas um semblante de paz por descobrir a verdade, é uma forma de chegar ao perdão. Apesar da anistia geral, a verdade é essencial, pois ajudará as vítimas diretas a entender os crimes que as atingiram, facilitará o reconhecimento público dos seus sofrimentos. Para as famílias das vítimas, esclarecimentos sobre a forma como ocorreram os crimes, os desaparecimentos servirão para curar as feridas. Para a sociedade, detalhes sobre os acontecimentos e em que condições se produziram as violações permitirão que tais fatos permaneçam na memória e não aconteçam mais.
Apesar da anistia geral, a verdade é essencial, pois ajudará as vítimas diretas a entender os crimes que as atingiram, facilitará o reconhecimento público dos seus sofrimentos.
É nesse âmbito que foi criada pelo Executivo, a Comissão Nacional da Verdade, através da Lei 12.528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. Essa comissão tem por finalidade apurar as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Para isso, diversos grupos de trabalhos vão pesquisando fatos como o golpe de 1964 e os crimes dele decorrentes, as doutrinas e ideologias que serviram de base para repressão, a própria estrutura da repressão, as violações de direitos humanos ocorridos, como é o caso da morte do jornalista Vladimir Herzog ou do desaparecimento do deputado Rubens Paiva, as violações contra os índios na luta pela terra, a guerrilha do Araguaia, as violências sexuais contra mulheres, suas consequências e impacto, sobretudo para aqueles que participaram de forma ativa em movimentos de resistência. São todos esses fatos da nossa história que serão apurados e esclarecidos pela Comissão Nacional da Verdade.
É importante conhecer a verdade e por isso deve-se apoiar essa comissão para que leve adiante um projeto tão valioso para o cidadão brasileiro, para nossa história. Não há dúvidas sobre a obviedade do perdão, por isso existe a anistia. Porém, é imprescindível que atores vivos desse passado sombrio do nosso país e o Estado, após apuração dos fatos, reconheçam os seus crimes e que o Brasil caminhe na conscientização da consolidação da democracia e das liberdades.
Uma participação efetiva do povo brasileiro na busca pela verdade poderá trazer relatórios mais contundentes sobre o nosso passado, visto que essa comissão só terá dois anos para trazer suas conclusões, lembrando que há mais de uma que ela foi instalada. O prazo é muito pouco para apurar décadas de violações de direitos humanos, e haja vista a falta de conhecimento da população e a pouca divulgação a esse respeito, há certa preocupação sobre o verdadeiro impacto da atuação da comissão e dos seus relatórios.
Vale acompanhar o trabalho dessa comissão, e torcer para que os relatórios que vão sendo publicados à medida que são concluídos, sejam difundidos, incorporados em materiais didáticos, livros, bibliotecas para a posteridade etc. Estaremos divulgando a nossa história e preparando as futuras gerações sobre a importância de salvaguardar a democracia, as liberdades individuais e coletivas e valorizar a vida.
* Jean Gaspar, mestre em Filosofia pela PUC/SP, é apresentador do programa Filosofia no Cotidiano (TV Cantareira) e presidente da Liga do Desporto, entidade que promove atividades físicas e desportivas como instrumento de educação e formação da cidadania.
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