I. Introdução
Nos últimos dias, um assunto, e o debate decorrente, “incendiou” o país. Trata-se da tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 3/2022. A proposição foi aprovada na Câmara dos Deputados e chegou ao Senado Federal para apreciação e deliberação.
Na ementa da proposta consta o seguinte enunciado: “Revoga o inciso VII do caput do art. 20 da Constituição Federal e o § 3º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; e dá outras providências”.
II. Propaganda
Inúmeras vozes se levantaram em um movimento contra a “privatização das praias”, que seria o resultado ou consequência da aprovação da aludida PEC n. 3/2022.
O relator da proposição na Câmara Alta do Parlamento brasileiro, o Senador Flávio Bolsonaro, afirmou categoricamente que a mencionada PEC não privatiza as praias.
Uma polêmica troca de farpas nas redes sociais entre o jogador de futebol Neymar Júnior e a atriz Luana Piovani aumentou a temperatura do já quente debate em torno do assunto (fonte: uol.com.br). Monica Gugliano avalia que o “Barraco entre Luana Piovani e Neymar deve enterrar a PEC das Praias, que tramitava nas sombras” (fonte: estadao.com.br).
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III. Método
O primeiro cuidado com o trato desse assunto, a rigor de qualquer assunto, é compreender do que se trata a partir da análise do conteúdo pertinente.
Infelizmente, uma grande quantidade de pessoas, talvez a maioria, forma opinião a partir de quem defende ou ataca a proposição, sem considerar o real conteúdo. Algo assim: a) não li e não gostei porque fulano é contra ou b) não li e gostei porque beltrano é a favor.
A tal polarização em curso, que contrapõe duas tristes vertentes políticas (o bolsonarismo e o petismo), fornece um combustível da pior qualidade para um debate público consistente acerca desse e qualquer outro assunto.
Além de analisar o conteúdo de uma proposta, contando com seus conhecimentos sobre o assunto e um bom esforço de pesquisa, é importante identificar abordagens favoráveis e críticas baseadas em argumentos sobre a questão. Ataques pessoais, afirmações preconceituosas e formulações genéricas não são bons ingredientes para uma avaliação adequada em relação a qualquer tema.
IV. Mérito
O texto da PEC n. 3/2022 não menciona diretamente as praias. A proposição que chegou ao Senado Federal não contém nenhuma menção à palavra “praia” (no singular ou no plural). A proposta trata de uma profunda mudança no regramento jurídico dos terrenos e acrescidos de marinha.
O fato de não tratar diretamente das praias não significa que não as afete, mas impõe um cuidado redobrado de análise para se chegar a uma conclusão minimamente segura acerca dos efeitos sobre esses importantíssimos espaços públicos.
As praias fluviais e marítimas são definidas como bens da União no art. 20 da Constituição. “Entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subsequente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema” (art. 10, parágrafo terceiro, da Lei n. 7.661, de 1988).
A lei referida estabelece que “as praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica” (art. 10, caput).
Como reforço da condição de bens de uso comum do povo, a Lei n. 7.661/1988 proíbe a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso às praias (art. 10, parágrafo segundo).
Não parece que ninguém conteste a enorme importância social das praias como espaços democráticos de lazer. Toda e qualquer pessoa pode ir à praia. Não é preciso pagar rigorosamente nada para desfrutar da brisa, da areia e da água do mar.
Inúmeros estudos especializados demonstram a relevância ambiental das praias. Os aspectos destacados envolvem: a) a proteção da linha costeira contra a erosão; b) são habitats para inúmeras espécies de plantas e animais; c) funcionam como filtros para a água do mar e d) desempenham um papel importante no ciclo de nutrientes.
Os terrenos e os acrescidos de marinha também figuram como bens da União, nos termos do art. 20 da Constituição. “São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831: a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés; b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés” (art. 2o do Decreto-Lei n. 9.760, de 5 de setembro de 1946). “São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha” (art. 3o do Decreto-Lei n. 9.760, de 5 de setembro de 1946).
Os terrenos e acrescidos de marinha estão localizados depois das praias quando se observa a partir do mar em direção ao interior. As praias, portanto, estão situadas entre o mar e os terrenos e acrescidos de marinha. É inegável que a administração dos terrenos de marinha está diretamente relacionada à proteção e uso sustentável das praias. Ademais, para chegar fisicamente às praias, em praticamente todos os casos, é preciso passar pelos terrenos e acrescidos de marinha.
Quando a PEC n. 3/2022 transfere a propriedade plena de terrenos e acrescidos de marinha para pessoas físicas e jurídicas efetivamente coloca em risco, para um número incalculável de casos, o acesso às praias. Esse é o texto normativo pertinente da PEC: “As áreas definidas como terrenos de marinha e seus acrescidos passam a ter sua propriedade assim estabelecida: (…) III – passam ao domínio pleno dos foreiros e dos ocupantes regularmente inscritos no órgão de gestão do patrimônio da União até a data de publicação desta Emenda Constitucional”.
Portanto, a titularidade de terrenos e acrescidos de marinha para pessoas físicas e jurídicas pode concretamente criar embaraços significativos para o acesso às praias, notadamente quando esses terrenos venham a ser utilizados para implementação de grandes empreendimentos imobiliários.
Não se perca de vista que, para um imenso número de casos, o acesso às praias, direito constitucional e legal de qualquer pessoa, pode ser irremediavelmente comprometido em função da forma de utilização física dos atuais terrenos e acrescidos de marinha. Imagine, nas condições atuais de funcionamento da sociedade brasileira, como seria o acesso às praias passando por um suntuoso empreendimento imobiliário (condomínio ou hotel de luxo).
Obviamente, não cabe aqui, e em assuntos congêneres, nenhum tipo de ingenuidade. Esse tipo de proposta legislativa está fortemente escorada em poderosos interesses econômicos voltados para obtenção do máximo de lucros e vantagens na exploração de empreendimentos imobiliários de vulto, em detrimento do interesse coletivo e da preservação do meio ambiente. Não é segredo para ninguém os malefícios promovidos pela especulação imobiliária, que “esquece” a legislação ambiental e realiza uma ocupação territorial marcada pelo elitismo mais escancarado.
Este registro jornalístico sintetiza a preocupação de inúmeros especialistas: “O texto não trata de praias, que são bens públicos de uso comum do povo, com acesso livre ao mar garantido. Isso não mudaria na lei. No entanto, ambientalistas argumentam que, sem a proteção da legislação federal uniforme para todo o país, pode haver o risco de grandes empreendimentos que ocupem áreas inteiras frente a trechos de praia, conseguirem autorizações municipais para fechamento de acessos a praias ou de supressão de vegetação de restinga com maior facilidade. As leis urbanísticas não seriam alteradas, mas construtoras e redes hoteleiras passariam a ser as únicas proprietárias de terrenos nesse espaço, o que poderia no futuro garantir maiores permissões de intervenções” (fonte: oglobo.globo.com).
V. Conclusões
Se você não deseja ser mais uma “Maria (que) vai com as outras”, no tratamento de qualquer assunto socialmente relevante, precisará gastar tempo e neurônios na formação de opiniões e convicções.
A PEC n. 3/2022 não trata expressamente das praias, mas tem inegável e importante impacto sobre elas. Ao estabelecer nova disciplina sobre os terrenos e acrescidos de marinha, insubstituíveis caminhos para as praias em um número incalculável de situações, pode efetivamente comprometer o acesso a essas últimas por qualquer pessoa, que possui o direito constitucional e legal de chegar até elas e ao mar. Ademais, os riscos para o meio ambiente, considerando os possíveis empreendimentos imobiliários a serem construídos, são claramente plausíveis.
Assim, é possível afirmar que: a) a PEC n. 3/2022 não privatiza (diretamente) as praias e b) a PEC n. 3/2022 cria a condições jurídicas para que o acesso às praias e ao mar seja profundamente dificultado, ou até mesmo inviabilizado, dependendo dos futuros proprietários dos terrenos e acrescidos de marinha e dos empreendimentos imobiliários construídos.
A única força que pode se contrapor aos poderosos interesses socioeconômicos voltados de fazer lucro e acumulação financeira a qualquer custo é a cidadania ativa. Só a conscientização (ou educação política), a mobilização (dentro e fora das redes sociais) e a organização (em entidades da sociedade civil, partidos políticos e candidaturas consequentes) dos segmentos sociais defensores dos interesses democráticos e populares podem eliminam os espaços por onde prospera o que existe de mais mesquinho e atrasado no convívio civilizado. Decididamente, o avanço social não se faz a partir da ação de heróis, salvadores da Pátria, mitos, vestais ou indivíduos escolhidos pelos deuses.
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