Helena Theodoro
Iyá Marli Azevedo, responsável pelo Centro Cultural Rouxinol, em Guapimirim, no Rio de Janeiro, defendeu sua tese de Mestrado em Filosofia no dia 22 de março de 2022, sendo a primeira defesa presencial do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), e a abertura da universidade para os saberes dispersos na sociedade brasileira, que são preservados com muito carinho e sabedoria pela população preta. Esta data inaugurou uma nova era na UFRJ graças aos esforços de uma mãe de santo de candomblé nagô, que traz sua história e seu trabalho em seu Ilê, situando o candomblé como uma filosofia de vida, como uma forma muito peculiar de ver e pensar o mundo.
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Emocionante a apresentação de suas reflexões, tendo como assistente sua mãe de 97 anos e oferecendo como referência primeira sua avó, que faleceu aos 105 anos, quando Marli tinha apenas 15 anos, mas que lhe deixou um conhecimento profundo sobre ervas e sobre a importância da oralidade, caracterizada como a transmissora de conhecimentos e elemento primordial para o desenvolvimento da escrita.
Iyá Marli nos trouxe toda a sua maneira muito peculiar de lidar com o mundo, afirmando que quando começou a aprender as cantigas em iorubá se preocupou em estudar a língua e a pensar como os africanos. Entendeu porque em sua família as crianças ganhavam nomes de pássaros e ao transferir seu terreiro para Guapimirim, num lugar onde 92% da população é evangélica, deu o nome de Rouxinol ao seu espaço, pensando em como através da oralidade transmitimos nossos valores. Nosso axé se transmite pela fala. A palavra tem um imenso valor. Dizemos que nossa voz somos nós do lado de fora. Pensando na Lei 10.639/2003 sobre a obrigatoriedade de ensino de cultura negra nas escolas, ela fez de seu Centro Cultural Rouxinol um ponto de reorientação do pensamento, levando a população local a repensar a problemática do racismo através do uso da afrocentricidade e abriu as portas para que sua atuação junto à comunidade de Guapimirim possibilitasse o entendimento da comunidade preta como sujeitos que atuam de acordo com os interesses humanos do lugar em que vivem. Usando recursos psicológicos e culturais Iyá Marli buscou estimular a liberdade de ser de cada um. Usando poemas, provérbios, charadas e narrativas conseguiu conquistar a comunidade e seus companheiros do Departamento de Filosofia do IFCS/UFRJ que culminou com a criação do Núcleo de Filosofias Ancestrais, abrindo o espaço nesta universidade para o reconhecimento dos saberes de outras tradições que não as provenientes da Europa.
Iyá Marli inaugura uma fase de desenvolvimento e crescimento do pensamento brasileiro, tão arraigado às ideias do século XIX e profundamente desligado dos diversos saberes que compõem o povo brasileiro. Pouco conhecemos dos pensadores africanos e nosso país continua rejeitando os pensadores negros e indígenas que temos. Ao defender minha tese de doutorado em Filosofia na Universidade Gama Filho (UGF), em 1985, sobre o Ideal de Pessoa num terreiro nagô e na Escola idealista alemã de Max Schiller, não imaginei que só se retomaria o estudo filosófico dos pensamentos, cânticos e itans dos terreiros no século XXI.
Muito são nossos companheiros de caminhada nesta preservação de valores ancestrais: Juana Elbein dos Santos, com o seu “Os Nagô e a Morte”, abriu caminhos em 1977; Muniz Sodré, com suas inúmeras publicações culminou com o “Pensar Nagô”, em 2017, além do “Agadá” de Marco Aurélio Luz, em 1995. Participar da banca desta incrível mãe de santo, que demonstra sua sagacidade e competência num momento tão difícil que vivemos em nosso país e no mundo, nos dá a certeza da importância do pensamento de Orumilá, orixá que situa o modo de vida orientada pelo autoconhecimento; além de nos dar a consciência de EXÚ, da transformação do mundo, da capacidade dos humanos de usar sua força vital para ir adiante, apesar de todos os obstáculos. Orumilá, senhor da sabedoria, do conhecimento mais profundo, extenso e permanente no mundo nos mostra a riqueza dos diferentes modos de vida, expandindo a noção de humanidade a todos os elementos da natureza e aos nossos ancestrais.
Que possamos sempre ouvir o canto dos pássaros, embelezando o mundo e alegrando nossas vidas. Muito grata Iyá Marli Ogum Mejire de Azevedo.
*Helena Theodoro é Bacharel em Direito e pedagoga, mestre em Educação, doutora em Filosofia e pós-doutora em História Comparada. Pesquisadora da história e da cultura afro-brasileira e professora da UFRJ. É uma das escritoras da coluna “Olhares Negros”.
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