Sob as fortes e insípidas luzes da sala de cirurgia, Womb, barriga aberta mas consciente, ouve o debate entre os cirurgiões sobre o melhor procedimento a ser feito na sequência. Vivissecção em primeira pessoa nunca é uma experiência agradável. Ainda que racionalmente reconheça que a troca de expertise pode trazer um melhor resultado, Womb, angustiado, decreta: resolvam logo isso e fechem minha barriga!.
O processo de decisão política, em um sistema democrático, é intrinsecamente lento. Qualquer reflexão séria sobre o assunto envolve a busca de um equilíbrio ótimo entre informação insuficiente e informação excessiva. No caso de nosso amigo do primeiro parágrafo, informação insuficiente pode fazer com que se opere o órgão errado. Informação excessiva pode gerar aquela cirurgia que é um grande sucesso apesar da morte do paciente. A priori, não há solução ótima para um problema dessa natureza.
A democracia liberal assume como pressuposto que existe um mercado de ideias, que deve ser o mais livre possível. A concorrência entre as ideias se encarregaria de fazer a seleção entre as melhores e as piores. Em um mundo paradigmático, o princípio pode valer, mas, no mundo real, a concorrência entre ideias pode ser muito ruim para quem está assistindo. Particularmente se você estiver assistindo com a sua barriga aberta.
Leia também
Ao que parece, no Brasil aqueles com a barriga aberta são muitos. Afinal, barrigas abertas, em uma democracia, são o saneamento básico, a saúde, a educação, os programas de auxílio aos mais carentes. Questões urgentes que requerem soluções imediatas.
Dados do último Latinobarômetro (2020) indicam que 39,7% dos brasileiros escolhem a opção “democracia é preferível a qualquer outro tipo de governo”. Mas 36% optam por “para pessoas como eu, não faz diferença se temos um regime democrático ou não-democrático” e 11,4% que “em algumas circunstâncias, um regime autoritário pode ser preferível a um democrático”. Somadas as duas últimas, o resultado é a pancada de 47,4% de brasileiras e brasileiros que assumem, em algum nível, um viés não-democrático. Um dado que pode contribuir para explicar a permanência de governos com vieses antidemocráticos no País.
Que esse viés tenha algo a ver com o próprio modo de ser da democracia fica claro logo em outra questão, específica sobre o ponto: 2,7% afirmam estar muito satisfeitos e 18,6% satisfeitos com o funcionamento da democracia; diante de 47,9% que afirmam não estarem muito satisfeitos e 27,5% nada satisfeitos. Somados os campos, os satisfeitos, em algum grau são 21,3% enquanto os insatisfeitos são 75,4%. Apesar da força do número, esse não deveria causar surpresa: não é só o Womb que não gosta de ficar com a barriga aberta.
Brincadeiras à parte, a associação entre angústia e reivindicação de um líder redentor é tão antiga quanto a humanidade e esteve na origem da figura do ditador, em Roma: justamente aquela pessoa capaz de solucionar a crise, dispondo, para tanto, de poderes extraordinários. Certamente, um ditador decidiria em poucos segundo o destino de Womb. Talvez escolhendo um dos médicos e deixando que esse agisse como achasse conveniente. Pode até ser que Womb se dê bem. Mas não há garantia nenhuma disso no processo.
O processo democrático, entrementes, tampouco assegura o melhor resultado. Porém, a menos que seja apresentado um processo alternativo que tenha mais probabilidade de produzir um resultado melhor, não há fundamento para se abrir mão da via democrática apenas por conta de seu ritmo. O processo democrático em si não é apenas um ‘processo’, mas também uma importante forma de colocar todas as reivindicações em pé de igualdade e buscar uma forma justa de decidir entre as alternativas. Isso é muito enriquecedor, particularmente quando não se considera a existência de bases morais exógenas ao próprio processo (como se um dos médicos se dissesse guiado por Deus, por exemplo). Ao contrário do Oráculo, a solução democrática seria testada, minimamente, pelo critério da maioria.
O fato, contudo, é que a insatisfação é grande. A jornalista Anne Applebaum registrou, em livro sobre o fenômeno, que o novo autoritarismo não apareceu como um místico fantasma do passado, mas sim como o resultado de ações específicas de pessoas que não gostavam das democracias em que viviam. Aqueles 75,4% de insatisfeitos propiciam um oceano vasto para a pesca predatória de manipuladores, demagogos e populistas. Esses contam, ainda, com o princípio de que “a má moeda expulsa a boa moeda”. As fake news expulsam as breaknews. E assim se instaura o Ministério da Verdade e a democracia aristocrática que faz nobres o governante e seus familiares.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
Deixe um comentário