Braulio Dias*
Declarações e atos recentes do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugerem que este governo está prestes a destruir a capacidade institucional da União para a proteção da biodiversidade brasileira, em especial do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) – veja a bem fundamentada Carta Aberta da Associação Nacional de Servidores da Carreira de Meio Ambiente (ASCEMA Nacional) à Sociedade: A Destruição da Gestão Ambiental Federal e os Ataques aos Servidores, disponível na internet.
Com que propósito, pergunto? Em benefício de quem? Quem conhece minimamente o tema sabe que o Brasil é o detentor do maior patrimônio de biodiversidade no mundo. Sabe que a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos associados sustentam mais da metade do PIB nacional nos setores da agricultura, floresta, pesca e aquicultura, saúde, oferta de água e ar puro, fertilidade dos solos, segurança alimentar, capacidade de mitigar e adaptar-se às mudanças climáticas, desenvolvimento de novas vacinas e remédios e o grande potencial de desenvolvimento da biotecnologia.
Não faz sentido, portanto, destruir nossa capacidade institucional de cuidar da biodiversidade, desenvolvida com tanto custo ao longo dos últimos 50 anos! Os motivos parecem ser de caráter ideológico, no qual prevalece uma visão distorcida de que a agenda de conservação da biodiversidade estaria nas mãos de ambientalistas radicais e incompetentes – se assim fosse, todos os significativos avanços alcançados pelo ICMBio descritos na Carta Aberta da ASCEMA não teriam acontecido – e que prejudicaria os interesses econômicos nacionais (o que não é verdade) ao criar obstáculos ao pleno exercício do direito da propriedade privada e ao direito dos proprietários e empresas fazerem uso pleno de todos os recursos naturais e terras do país para a produção agropecuária, mineral e energética e para a expansão urbana e da infraestrutura.
A exploração descontrolada e insustentável de nossos recursos naturais faz parte de nossa história e levou à destruição de 97% da Floresta com Araucárias, ao colapso dos estoques da sardinha brasileira na costa Sul-Sudeste em mais de 75%, à destruição total dos solos do Vale do Paraíba do Sul pela cultura do café sem curva de nível etc. Naturalistas brasileiros já denunciavam a destruição dos recursos naturais no período colonial e durante o império (José Augusto Pádua, 2002, Um Sopro de Destruição). Euclides da Cunha escreveu uma crônica denunciando os “fazedores de deserto” (Contrastes e Confrontos, 1907) e Monteiro Lobato escreveu crônicas denunciando a “velha praga” e o “grilo” (Urupês, 1918, e A Onda Verde, 1921).
PublicidadeMas, a Constituição Federal de 1934 condicionou o exercício do direito de propriedade privada aos interesses coletivos nacionais. Essa determinação foi confirmada pela Constituição Federal de 1988, que condicionou o uso das propriedades privadas ao cumprimento da função social da propriedade definido no artigo 186, que inclui a obrigação de proteção ao meio ambiente e do uso dos recursos naturais de forma racional – para que não venham a faltar.
Depois de muita devastação, a atenção para o meio ambiente começou a mudar em 1973 com a criação da Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), dirigida por Paulo Nogueira Neto, em resposta aos princípios adotados na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente Humano realizada em Estocolmo, em 1972. Os principais legados de Nogueira Neto foram a adoção da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981, e sua participação na Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (conhecida como Comissão Brundtland), que consolidou as bases conceituais do desenvolvimento sustentável (ONU, Nosso Futuro Comum, 1988) e foram fundamentais para o sucesso da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92) e da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável em 2012 (Rio+20), base para a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável adotados pela Assembleia Geral da ONU em 2015.
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade foi criado especificamente para implementar obrigações estabelecidas pela Constituição Federal para a proteção da biodiversidade. O ICMBio é um órgão de gestão ecológica de ecossistemas e da biodiversidade. Não é uma repartição de polícia. Não cabe, portanto, militarizar a chefia da gestão da biodiversidade brasileira, seja na presidência e diretorias do ICMBio, seja na coordenação da Secretaria de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente. Os militares e policiais são treinados para proteger o país de perigos externos e para manter a ordem pública. Não são treinados para a gestão ambiental.
Também não cabe a privatização da gestão das unidades de conservação. Essa é uma função de Estado prevista na Constituição Federal. Cabe, sim, parcerias e concessões para exploração de alguns serviços como o turismo. Se há falta de recursos públicos para cumprir as funções de Estado como a proteção ambiental, cabe ao governo privatizar empresas estatais, reduzir os subsídios e as isenções fiscais às empresas e acabar com a sangria dos desvios de recursos públicos pela corrupção. Em todos os países, inclusive nas ditaduras, a gestão da biodiversidade é exercida por profissionais da área ambiental e não por amadores e interventores.
Penso que já está na hora de o Ministério Público Federal intervir em defesa do cumprimento da Constituição Federal e dos interesses públicos difusos. A Constituição Federal assegura a todos o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e incumbe o poder público de preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais, prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas e proteger a fauna e a flora. São vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies e a definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei. É vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. No âmbito da União, esse é o mandato do ICMBio!
Cabe registrar que, desde a década de 1970, graças aos contínuos investimentos em ciência e tecnologia e ao aprimoramento da legislação ambiental, a agropecuária brasileira tem tido grandes avanços de produtividade e sustentabilidade, comprovando que a proteção do meio ambiente e a produção de alimentos e fibras são perfeitamente compatíveis. O Brasil pode sim ser ao mesmo tempo campeão mundial de proteção da biodiversidade e de produção e exportação de alimentos!
Seria um grande contrassenso se este governo desmontar a estrutura legal e institucional de proteção da biodiversidade brasileira, justamente no país mais rico em biodiversidade e que liderou a construção da agenda global de desenvolvimento sustentável, o que traria grandes prejuízos ao meio ambiente, à sociedade e à economia brasileira e abalaria a imagem do Brasil no exterior. Isso certamente traria barreiras às exportações de produtos brasileiros. Apenas por retaliação de pessoas (“fazedores de desertos” e “grileiros”) que ainda não perceberam que o mundo caminha na direção do desenvolvimento sustentável.
Presidente Bolsonaro, peço sua atenção para os rumos do Ministério do Meio Ambiente em descompasso com sua visão de reconhecer, em seus discursos no exterior, a biodiversidade e as florestas brasileiras como um grande Capital Natural nacional, com grande potencial de contribuir para o desenvolvimento nacional e para o bem-estar da população brasileira. Presidente, o senhor precisa decidir se quer apoiar a banda progressista, competitiva e sustentável do agronegócio nacional ou sua banda podre atrasada, destruidora do meio ambiente e grileira de terras públicas.
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*Braulio Dias é professor do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília, UnB, ex-Secretário Executivo da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza.
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