Ricardo de João Braga *
Em alguns momentos da história os movimentos políticos têm um encontro marcado com a realidade, em encruzilhadas onde desembocam economia, política e políticas públicas. Por debaixo das camadas de retórica partidária e eleitoral e de sentimentos e afeições populares, movem-se as placas tectônicas que sustentam movimentos e ideologias.
Diante da vitória eleitoral de Jair Bolsonaro e o perfil que se antecipa para seu governo – ultraliberal na área econômica e tradicionalista na moral e costumes – entendo que os governos FHC e Lula-Dilma, entre 1995 e 2016, representam uma linha de continuidade em seus traços principais, oscilando em torno do centro do espectro político.
Olhados em detalhe, as diferenças podem ser muitas, mas sob o contraste do próximo governo elas diminuem. FHC e Lula-Dilma comungaram em boa medida de um projeto comum e de linhas de política pública com um nível de semelhança razoável (apesar de o PT apresentar a si mesmo, exageradamente, como totalmente distinto do “neoliberal” FHC). Em essência ambos governos não negaram o capitalismo, tencionaram avançar algumas agendas sociais, pautaram-se por direitos civis básicos, andaram de mãos dadas com o corporativismo, com os grandes interesses empresariais e foram atacados rotineiramente pelo patrimonialismo (e cederam em muitos casos).
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Excluídas as privatizações realizadas por FHC, ambos os projetos políticos buscaram avançar no espírito da constituinte de 1988, que propelia o Brasil a avançar numa linha de socialdemocracia. Contudo, não conseguiram se despir dos nossos problemas ancestrais, nossa gramática de ineficiência estatal e desigualdade de renda, poder e representação. Se o grande problema de FHC foi a política fiscal de seu primeiro governo, esta foi também a causa do naufrágio de Dilma.
Quanto à corrupção nos governos, aqui não se arbitra o tamanho dela ou quem foi seu campeão, não se vai adentrar nas questões morais tão caras ao debate midiático e aos valores da população. A corrupção detém aspectos culturais e institucionais, desperdiça dinheiro público, desincentiva o trabalho, fragiliza o cumprimento de regras e estiola o investimento produtivo.
A corrupção aqui tem o espaço apenas de um elemento que impede o bom funcionamento da economia e das políticas públicas, dado que a preocupação do artigo é sobretudo com o que foi feito no governo e seu impacto na realidade das pessoas. Com corrupção os resultados são piores, mas aqui não falamos dela. Vamos direto aos resultados.
No que diz respeito à autocrítica aqui discutida, ela se aplica sobretudo ao PT e àqueles que defendem projetos de esquerda mais radicais – pois, de 2003 a 2016, eles tiveram a chance real de realizar seus objetivos. Chances reais, digo, porque se trata de lidar com o mundo como ele é, com o Brasil de verdade. Trata-se de passar a limpo o que se aprendeu com esta prova de fogo, e há um enorme estoque de questões a serem discutidas pelo PT e seus aliados de esquerda.
Pelo que se tem assistido na imprensa, o PT e seus próximos negam ao eleitor e ao cidadão uma reflexão sobre seus erros e acertos, e assim bloqueiam seu futuro. É disso que se trata aqui.
Os problemas
A esquerda perdeu a eleição presidencial de 2018 “por gravidade”, um movimento quase natural. Sucumbiu sob sua incapacidade e seus erros não apenas eleitorais, mas sobretudo governativos. Pode ser discutido o desfecho eleitoral caso o ex-presidente Lula houvesse concorrido, mas o fato é que o capital popular e populista do ex-presidente não garantiria uma política de esquerda (até pelo contrário), e sob sua sombra as forças políticas de seu campo não conseguiram se pôr em pé como projeto.
Uma leitura simples e esquemática dos governos brasileiros desde FHC até Dilma poderia ser assim delineada:
GOVERNO FHC:
– implementação parcial de reformas econômicas, administrativa e previdenciária; combate à inflação; alinhamento/inserção no capitalismo internacional; negligência fiscal no primeiro mandato;
– incapacidade de tais reformas gerarem resultados no curto prazo (lenta reestruturação produtiva, negligência com a política energética – “apagão”);
– implosão da fachada neoliberal e vitória de Lula.
GOVERNOS LULA E DILMA:
– manutenção do tripé macroeconômico criado em 1999 (equilíbrio fiscal, metas de inflação, câmbio flutuante); cenário externo favorável com o boom das commodities; produção de bons resultados em termos de renda, emprego e inserção social;
– Bolsa Família como expansão da rede de proteção social (foco inédito no mais pobre);
– manutenção da lógica da cidadania como consumo (neoliberal);
– expansão da máquina pública sem modernização;
– desastrado abandono do equilíbrio fiscal após a crise mundial iniciada em 2007; desaceleração da economia mundial; política ineficiente de fomento econômico (subvenções, subsídios, empréstimos do BNDES);
– maior recessão da história brasileira republicana;
– naufrágio do governo PT.
No breve esquema acima fica clara minha opção por analisar a dinâmica política a partir de uma relação estado-sociedade em que o econômico prevalece, pois é ele quem produz ao mesmo tempo oportunidades para a melhoria de vida da população e margem de manobra para o governo (recursos para políticas públicas e apoio popular como capital político). Abaixo discutimos alguns dados que balizam melhor a trajetória delineada antes.
Após a Constituição de 1988 o Brasil manteve seu patamar de baixo crescimento econômico em comparação internacional (no Apêndice [1] apresentam-se todos os dados citados nos próximos parágrafos). Partindo de uma taxa algo superior no início da década de 1990, a economia brasileira cresceu em patamar inferior tanto aos países de renda média quanto à media dos BRICS (grupo composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – nos cálculos e gráficos exclui-se naturalmente o Brasil da composição dos BRICS). Tendo uma melhora relativa entre 2006 e 2010, em seguida mergulhou em patamares de recessão e baixíssimo crescimento.
Quanto ao peso do Estado na economia, um indicador global como o número de dias necessário para abrir uma empresa é sintomático: o desempenho do Brasil é absurdamente elevado para os padrões internacionais. Os principais países do mundo têm facilitado a abertura de empresas e, hoje, o prazo da maioria das economias situa-se num patamar inferior a 50 dias. Em casos como Chile, Colômbia e OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, grupo dos países mais ricos) tal prazo está por volta de 10 dias ou menos. O Brasil, tresloucadamente, exige mais de 80 dias. A força e o peso da burocracia sobre os negócios no Brasil são reconhecidamente imensos e, nesse campo, o país não apresentou melhoras significativas nas últimas décadas.
A queda na desigualdade de renda, grande bandeira e sucesso do governo Lula, caracterizou um movimento importante tanto pelo ineditismo quanto pela sua importância intrínseca de lidar com uma das questões mais cruéis e, infelizmente, estáveis da realidade social. Contudo, a melhora foi tímida. O índice de Gini, que mede a concentração de renda, movimentou-se de valores algo inferiores a 0,6 para níveis pouco acima de 0,5. Esse patamar melhorado coloca o Brasil ao lado da Colômbia mas ainda bastante distante de países vizinhos como Chile e Argentina.
A participação dos 20% mais pobres na renda nacional, embora tenha melhorado no período, ainda não atinge 4%, novamente patamar similar ao da Colômbia e bastante inferior a países mais desenvolvidos. Em resumo, melhoramos, mas não mudamos de patamar.
Quanto ao comércio internacional, embora o Brasil tenha se mostrado mais inserido em determinados mercados, a proporção entre comércio exterior e PIB ainda é bastante baixa. Em comparação internacional nossas exportações e importações somadas representam fatia pequena do PIB, menor do que a média mundial, países vizinhos e economias mais avançadas. Tal estado de coisas reflete uma economia que olha para dentro e é em geral pouco competitiva – exatamente o contrário dos modelos de sucesso atual (China, Chile, sudeste asiático).
O investimento brasileiro em ciência e tecnologia, importantíssimo para a inserção econômica internacional e geração de empregos de qualidade, tem marcado passo: mantém nível similar aos países de renda média e posição muito aquém daquela das economias mais competitivas. Em outras palavras, não houve esforços para melhorar a posição brasileira e nos diferenciarmos do contexto em que hoje estamos inseridos.
Quanto ao uso de energia renovável na matriz energética, o Brasil apresenta historicamente uma vantagem baseada em suas hidrelétricas – em comparação internacional o país se destaca pela sua matriz mais “limpa”. Pelos dados do Banco Mundial os BRICS e os países de renda média apresentam mesmo uma queda relativa no uso de renováveis, enquanto economias mais desenvolvidas têm apresentado avanço. Nesta área, apesar do bom posicionamento, o Brasil poderia e deveria ter almejado um avanço maior, apontando para a economia do futuro, de “energia limpa”.
Em políticas públicas importantíssimas como educação, o Brasil fez um grande esforço em universalizar o acesso à escola, mas mesmo nesse campo, embora as melhorias sejam grandes, ainda estamos numa posição desconfortável. O Brasil vem desde a década de 1990 tentando colocar “toda criança na escola” ao mesmo tempo em que diminui a reprovação e o atraso de seus alunos. Se considerada a adequação da faixa etária dos alunos ao nível educacional em que deveriam estar, somente nos últimos anos o Brasil alcançou o patamar da Colômbia na educação primária, e ainda estamos distantes dos níveis de países mais ricos ou mesmo vizinhos como Argentina e Chile. Além disso, a questão da qualidade desafia-nos permanentemente (o desempenho em avaliações internacionais como o PISA é ruim) e possuímos um cruel e enorme estoque de analfabetos absolutos e funcionais.
Na saúde, considerado o indicador de leitos em relação ao número de habitantes, o Brasil ainda se encontra distante de países desenvolvidos, valendo destacar que na série apresentada pelo Banco Mundial o desempenho nacional apresenta queda ao longo do tempo.
Em relação à cobertura de saneamento básico adequado, o Brasil, assim como diversos outros países, apresenta evolução positiva desde 2000. Contudo, a cobertura no Brasil manteve-se sempre inferior à média mundial. Além disso, a taxa de crescimento brasileira é bastante inferior àquela de países como China e Chile.
Quanto à expectativa de vida ao nascer, que reflete ganhos gerais em saúde no país, os avanços foram substanciais desde 1991, principalmente devido à queda da mortalidade infantil. De fato, no período houve um movimento generalizado de avanço em todo o mundo. A evolução brasileira conseguiu que o país ultrapassasse o nível da Colômbia e distanciássemos-nos positivamente da média mundial, aproximando-nos da Argentina.
Em relação ao sinistro número de homicídios, o Brasil aproxima-se da liderança nos países aqui selecionados, devido tanto à sua tendência crescente quanto ao movimento de queda na Colômbia. A taxa de homicídios brasileira está muito acima de países avançados e também de nossos vizinhos Argentina e Chile; quatro vezes maior que o primeiro, e nove vezes superior ao segundo.
Os dados discutidos acima não são exaustivos, contudo dão uma boa amostra da dinâmica econômica, social e de políticas públicas nas últimas décadas. Infelizmente a economia brasileira tem apresentado pouco vigor e perdido espaço no cenário internacional devido à sua pouca competitividade. Quanto aos avanços em políticas públicas, embora em várias áreas tenha havido aumento de gastos, colhemos alguns resultados bons mas muitos outros medianos ou ruins. Ineficiência da gestão, problemas no desenho das políticas públicas e na articulação entre os entes federados e áreas de governo são causas desses resultados medíocres.
Parece claro que não há nada no cenário das últimas décadas que faça o cidadão, o eleitor e o analista considerarem que o Brasil percorreu um caminho de excelência. Nossas carências são enormes, a atenção pública para os problemas cresce e os resultados alcançados não impactaram a realidade profundamente nem empolgaram os cidadãos. Não há saudade.
A partir do apresentado, entendo assim que mais do que a afirmação de um governo de direita; o que se viu na eleição de 2018 foi a constatação da não efetividade do governo petista e a insuficiência dos resultados que ele apresentou ao público. Digo que não houve afirmação do governo de direita porque apenas parcialmente a agenda de direita recebeu apoio popular – a agenda moral. Economicamente o brasileiro médio demanda mais crescimento e oportunidades, além de melhores serviços públicos, contudo tem pouco conhecimento de em que consiste uma agenda econômica liberal e suas consequências.
[1] No Apêndice são apresentados dados sobre as questões aqui citadas. Como regra os dados provêm das compilações globais realizadas pelo Banco Mundial. A cobertura dos dados varia no tempo e espaço de acordo com as variáveis de interesse, com os dados econômicos sendo mais abrangentes que os sociais. Para quem deseja acesso aos dados primários: https://data.worldbank.org/indicator. Aos interessados nos dados trabalhados apresentados no artigo, por favor solicite-os no ricaflav2010@gmail.com.
Amanhã (27/12/2018): “A autoindulgência de uma esquerda real de desempenho mediano”
* Professor do mestrado profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados. Economista e doutor em Ciência Política.
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A esquerda no poder demonstrou tamanho grau de incompetência e corrupção, que o melhor para nossa democracia é que continue achacada e desmoralizada, sem fazer autocrítica para se reerguer, em uma berlinda mais que merecida após a herança maldita que deixou para o país.