Convido o leitor à imaginação: um carro de algumas toneladas em sua direção a mais ou menos 120 quilômetros por hora. Agora, imagine-se atingido pelo bólido, em cheio. Morte? Prossigamos no exercício textual, vividamente. Tente conceber agora a imagem de uma linda moça de poucos anos de existência, cabelos ruivos e encaracolados ao vento, a puxar-te pela mão direita. Eis a imagem: o solavanco providencial, meu lado direito acolhido por uma força fêmea superior, enquanto o esquerdo se dava ao acaso. Prescindirei de alguma onomatopeia para dizer que, se não fossem as amorosas mãos de Mila, não só meu lado esquerdo – punho, braço, joelho, perna, coração –, ao sabor do asfalto, teria jazido ao entardecer de um dia de fevereiro, 1993, em um dos eixos de Brasília. O lado direito de meu corpo, que Mila capturou definitivamente, também teria composto o funesto cenário.
Mas Mila salvou minha vida. E este é um relato real, baseado em artefatos surreais. Este texto, uma declaração de amor pelo enésimo ano consecutivo (obrigado, Sylvio!), é um tardio lembrete sobre “o dia em que minha vida foi salva, literal e magicamente, por uma mulher“. Imponho-me, porém, um limite de concisão para que este mesmo texto, sobre o dia de meu “renascimento”, misture-se com a aula de grandeza que recebi há pouco, de um jeito quase onírico (ainda estou a sonhar?), de Dona Carminha – é assim que insisto em me dirigir à mãe do autor de “Tempo Perdido”. Dona Carminha, ao saber que eu falaria sobre minha quase morte (alguém aí se lembrou de Quase memória, do Cony?), deu-me um banho de vida. Eu, movido a sorriso que sou, parecia repórter encantado a reportar o amor devoto, em vez do lide. É pura vida a conversa que tive com Dona Carminha – na véspera de seu dia, amada fêmea -, abaixo transcrita.
É só uma conversa-devaneio, advirto. Uma não-entrevista, para o deleite dos fatos.
Eu – Dona Carminha, escreverei sobre a mulher em seu dia. Permita-me beber um pouco do néctar de sua experiência, como estratégia de inspiração, antes de escrever meu texto – a senhora que melhorou o mundo com seu filho; é minha modesta opinião.
Dona Carminha – Pois é… Mas no que eu posso contribuir, mocinho? (desde já, este pobre escriba devidamente posto no benquisto lugar, diminutivamente)
O mero contato com a senhora já me dará o norte do meu texto. Qualquer resposta sua soará, para mim, eivada de graça, sabedoria…
Tomara que seja… (risos, encantadoramente humildes)
O que é um homem para a senhora (eu queria, em vão, prescrutar a razão de ter merecido ser salvo por mãos fêmeas…)?
É complicado responder, porque homem é tanta coisa… Um homem com h maiúsculo é um esteio para a mulher, é a segurança, o norte dela. Não necessariamente ela sendo dependente dele, mas tendo-o como inspiração, como companheiro, como amigo. Quando meu marido morreu, eu disse no enterro que eu havia perdido meu melhor amigo – o que ele foi para mim. Mas, o homem como manutenção de uma família, isso não existe mais, porque a mulher agora também é a senhora da família. Homem e mulher têm que ser complemento um do outro sem um querer ultrapassar o outro. Chorando, rindo, brigando, mas juntos. Dividindo a vida deles, da família, do país.
E o que uma mulher para a senhora, a esta altura da vida? Sem querer contaminar sua resposta, para mim a mulher é tudo.
Para mim também… A mulher verdadeira, a “mulher com H” (olhem aí o título deste texto…) é para o homem o que o homem é para a mulher. Complemento. Claro que a mulher é mais dócil, mais carinhosa. É mais amor – diferentemente do enfoque do homem, que está sempre no sentido do “machão”, mas não necessariamente machista. A mulher é o contrário: é o carinho, o aconchego, o recolhimento, o abrigo – isso de acordo com o meu tempo de mulher. A mulher é, para o homem, a sensação de complemento, de segurança. O homem resolve tudo lá fora, mas, quando chega em casa, precisa ter o que a mulher tem que dar para um homem. Na verdade, eu sempre acho que a mulher determina a vida do homem…
Não tenha dúvida disso, Dona Carminha…
Não estou dizendo, contudo, no sentido de a mulher sair com um pedaço de pau batendo no homem, não! Ora, se mulher é carinhosa, se gosta de seu homem, meu amiguinho… Ela faz qualquer coisa com aquele homem. Ele pode bancar o machão e tal, mas ninguém sai impune de um carinho, de um cafuné, de uma comidinha. E isso sem que a mulher precise ser capacho, mas apenas exercendo sua feminilidade – é isso o que a mulher tem de ter, e é disso que um homem precisa ter em sua mulher, feminilidade.
Mudando de assunto, lembro-me bem, Dona Carminha, do dia em que comemos um coq au vin (o nome afrescalhado para “galinha ao vinho”), o prato predileto de seu filho Renato Russo…
E eu não sabia fazer mais o prato, não é?
Claro que sabia! A carne se desfazia em meu palato, de tão deliciosa… Inesquecível.
(risos de modesta mestre cooker) No fim, acabou saindo, não é?
Magistralmente!
Que bom, porque agora eu não sei mais fazer o coq au vin (risos ainda mais modestos)… Esqueci, guri! Agora é que não lembro mais… O prato que o Júnior comia com gosto, como que a dizer “oba!, hoje tem coq au vin!”…
É como o peixe de coco que minha mãe fazia para mim… Uma delícia!
Então, mulher também é isso. Mas isso não quer dizer que a mulher não enfrente situações, principalmente quando o marido está com o problema de suprir alguma coisa em casa. Esse negócio de “mulher boneca” não existe mais. No entanto, a feminilidade não pode, de maneira alguma, deixar de existir na mulher, porque é isso o que complementa um homem – que, por sua vez, provê a segurança, aquela proteção de que nós precisamos.
Fim da conversa, que manteve seu rumo em suave devaneio. Resolvo, insolentemente, pedir que Dona Carminha me dissesse qual cantora (“Pode já ter morrido?”, antecipou-se a mãe do legionário-mor) a comove. Clara Nunes, a Iemanjá personificada em lindíssima brasileira, foi a resposta-buquê. A mim ofertada, recifense filho do mar que sou. “Ela era feliz, brejeira, tinha uma voz maravilhosa. Quando ela cantava, me alegrava”, entregou Dona Carminha, arrebatando-me de uma vez por todas e para sempre.
Para manter a tradição, ilustro de música esta loa. Odoyá, Clara!
Pronto. Creio ter enchido de vida essas bem traçadas linhas, para desdizer o ensejo do texto lá em cima. Que, na verdade, também é vida pura: feliz do homem que, por óbvio fruto de sua mãe, tem sua vida assegurada por uma mulher que não o gerou. Ao menos em tese (e agora me dirijo a você, Mila): desde que você me salvou da morte, minha sagrada querida, vejo-me gerado a cada instante. A minha vida, meu caro anjo, já esteve em suas mãos. Ainda bem.
Depois daquele dia, eu ficaria um mês internado a me recuperar do braço esquerdo quebrado, do joelho esquerdo quase fraturado. A grande fissura, no entanto, foi em minha cabeça: a vida parecia querer me dizer, com o acidente, que a realidade enfim começaria, inclementemente, a carregar nas tintas da obra infinita de um ser humano.
No hospital, conheci a Miss Rondônia – Andréia, lembro-me bem do nome – que caiu de costas em cima de uma goiaba verde, depois de subir na goiabeira da rua, aos 15 anos; a paralisia jamais sequer diminuirá sua beleza morena. Já chorei ao lembrar de seu sorriso entristecido. Conheci também o rapaz de 20 e poucos anos que, filho de abastado fazendeiro, viu o céu subitamente revolto derrubar um coqueiro em suas costas, condenando-o à tetraplegia. Também jamais esquecerei da lágrima a correr-lhe a face esquerda do rosto – no breve e lancinante diálogo que até hoje me comove – que centralizava os resquícios de vida. Enfim, a realidade, como disse, caprichava no roteiro dramático…
A título de curiosidade: no instante em que escrevo, mais para o início do texto, escuto Rita Lee me alertando: “Não provoque: é cor de rosa-choque” (coincidência?); e, ao fim do texto, mais ou menos 40 minutos depois da primeira letra, eis que soa… Renato Russo!!! E não tenho controle sobre os fatos: o som é mecânico, de um café à madrugada… “Ela passou do meu lado, ‘oi, amor, eu lhe falei…'”, diz o mancebo em “Hoje a noite não tem luar”. Para lembrar a obra-prima, como mais um pergaminho lido em reverência à sua majestade mulher, registro-a e me despeço. Até ano que vem?
p.s.: como em cada ano, registro os links das loas dos anos anteriores, para quem tem paciência ou, como eu,lê até rótulo descartado. Repórter desde site por alguns anos, um dia tive a feliz ideia de decantar o ser amado em prosa apaixonada, anualmente. Ei-los.
O azul onírico do plenário em verso e Rosa (2013)
A mulher quando as ruas eram de fogo (2012)
Mulher, a auto-homenagem (2011)
Sobre Iemanjá, Clarice e a “menina do pedido de criança” (as três marias) (2010)
Mais flores em vocês (2009)
Flores em vocês (2008)