O artigo que não escrevi será este aqui. Respostas, muito ligeiramente adaptadas, a um jornalista estrangeiro. Minha visão, um tanto apressada e sujeita a erros, da crise brasileira atual. A minha, apenas. Talvez a sua seja melhor. Manda pra sylvio@congressoemfoco.com.br. Teremos o prazer de publicar.
1) Até que ponto a falta de habilidade política e a arrogância de Dilma contribuíram para a crise que o Brasil enfrenta?
Sem dúvida, a falta de habilidade política de Dilma Rousseff foi um fator determinante para a deflagração do processo que deve levá-la ao afastamento da Presidência da República.
O Brasil é um país muito dividido – em termos econômicos, sociais, culturais e regionais – e com extrema fragmentação no plano político. Basta dizer que temos quase 30 partidos políticos representados no Congresso Nacional. É fundamental que o/a presidente tenha capacidade de negociação, vocação para o diálogo. Essa qualidade, aliás, era comum aos três antecessores de Dilma: Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Lula. Dilma, ao contrário, sempre demonstrou pouca disposição para ouvir e jamais escondeu seu desapreço pelos políticos e pelo Parlamento. É uma pessoa formada na cultura autoritária da burocracia. Uma burocrata, basicamente. Na verdade, nunca foi só um problema apenas com os políticos. Ela nunca foi de ouvir ninguém. É conhecida por tratar mal ministros e auxiliares. E jamais deu a devida atenção para os líderes empresariais e sociais que a procuravam. Sempre se lixou até mesmo pros sindicalistas e militantes de movimentos sociais que formam a base do Partido dos Trabalhadores (PT). Quantas vezes ela simplesmente se recusou a receber gente importante do mundo político e econômico ou expressivos líderes sociais…
2) Isso explica tudo?
Não. Mil vezes não. O impeachment não teria acontecido apenas por isso. A segunda forte razão do impeachment é que Dilma errou muito na economia. Embora seja economista, fez bobagens inomináveis, que nada têm a ver com ideologias, mas, sobretudo, com incompetência mesmo. Enterrou a Petrobras, o que é uma tristeza enorme, pelos dois lados. A nossa primeira presidente mulher – ou presidenta, como queira – não podia errar tanto, isso é muito triste. No dia 17, chorei ao ver a imagem de duas mulheres se abraçando, profundamente doídas, ali em frente ao gramado do Congresso, quando o impeachment foi aprovado. Seria muito melhor se tudo fosse diferente. Mas Dilma usou a Petrobras para controlar o preço dos combustíveis e assim maquiar os índices de inflação. Enterrou a empresa, contrariando milhões de opiniões em contrário. Gastou demais. Perdeu o controle da inflação. Deu subsídios bilionários a grandes empresas, incapazes de transformar todo aquele dinheiro generosamente repassado pelo governo em desenvolvimento econômico e social. Entre os beneficiados, as empreiteiras corruptas que dominam o negócio das obras públicas do Brasil e fracassos retumbantes como Eike Batista e Oi. Levou o Brasil à pior recessão da nossa história. Produziu um déficit público sem paralelo em nossa história recente (déficit nominal de quase 10% do Produto Interno Bruto!!!!). E, deixando aí as impressões digitais que justificam legal e formalmente o impeachment, manipulou acintosamente o orçamento federal. Descumpriu a lei, maquiou dados (para esconder a realidade, facilitando sua reeleição) e violou de diversas formas, repetidas vezes, as regras orçamentárias. O que, segundo a Constituição Federal, caracteriza “crime de responsabilidade”. Para piorar, ela mentiu na campanha eleitoral de 2014. E, logo depois de ganhar a eleição, adotou o programa do adversário, anunciando uma política econômica de forte arrocho monetário e fiscal. Exatamente o que, segundo ela, Aécio Neves (PSDB) faria se saísse vitorioso.
Um terceiro fator fundamental, e aqui Dilma talvez pague mais por suas virtudes do que por seus defeitos, é que ela se tornou vítima da Operação Lava Jato. Difícil acreditar que tenham roubado bilhões da Petrobras e de outras empresas públicas federais sem que Dilma soubesse de nada. No caso da Petrobras, pôde acompanhar o que se passava ali dentro como presidente do Conselho de Administração, ministra de Minas e Energia e como uma ministra da Casa Civil com muitos poderes. Mas o fato é que ela deixou a Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça trabalhar com grande independência, o que levou essas instituições a abrir uma inimaginável caixa de Pandora: bilhões e bilhões de dólares subtraídos dos cofres públicos para alimentar os bandidos que vicejam no país nas áreas política e empresarial. Repare que esse caso põe em evidência, principalmente, as roubalheiras perpetradas pelo PT, pelo PMDB (partido presidido há mais de uma década pelo vice-presidente Michel Temer) e pelo PP, mas atinge quase todos os partidos – inclusive da oposição. O impeachment de Dilma é parte da resposta que a sociedade brasileira exige para fazer face a essa monstruosa cadeia de corrupção construída em nosso país. Se Deus quiser, não será a última.
Finalmente, temos o divórcio entre (a) uma sociedade dinâmica, que teve grande desenvolvimento econômico e social nos governos Itamar, Fernando Henrique e Lula, período em que a inflação caiu, os empregos aumentarem em número e qualidade, a população ganhou qualidade de vida e melhorou sua formação educacional, assim como suas aspirações pessoais e coletivas; e (b) um sistema político ultrapassado, corrupto e dominado por verdadeiras máfias, que operam os principais partidos políticos do país. Prova disso é o fato de termos visto figuras como Eduardo Cunha e Renan Calheiros presidindo, respectivamente, a Câmara e o Senado. Eles deviam estar na cadeia! E há muito, muito tempo! E vários outros, como Fernando Collor, Lobão, Romero Jucá, Paulo Maluf e tantos mais – assim como Jair Bolsonaro, que faz a apologia da ditadura e da tortura, o que é uma violação clara à Constituição Federal e à segurança de nossa democracia. Não é de hoje que esses e vários outros dão provas de serem criminosos contumazes. Aliás, que má sorte teve o Brasil. Dilma, presidente, fraca, incompetente, totalmente despreparada para o cargo. Michel Temer, sinistro, desleal, oportunista, presidente de um dos partidos mais corruptos do país (por sinal, o partido de Cunha e Renan), escorregadio e também suspeito de vários atos ilícitos, embora tais acusações jamais tenham prosperado na Justiça. O que, diga-se, pode depor menos em favor de Temer e mais em favor do absurdo quadro de impunidade que é uma das mais repugnantes marcas do Brasil. Em nosso país, infelizmente, os poderosos raramente vão para a prisão, por piores que sejam os crimes que cometem; a Lava Jato é um fenômeno extraordinário, por ser precisamente a exceção à regra. Para completar a cadeia sucessória da república, as tristes figuras de Cunha e Renan.
Finalmente, vivemos uma coisa mais grave. O nosso sistema político apodreceu. It’s gone, baby. Ficou ultrapassado, corrupto demais, deixou de representar uma sociedade que se modernizou, ficou mais rica, teve mais acesso ao conhecimento, uma sociedade que deseja e poder ter muito mais. Junho de 2013 mostrou isso, e talvez ele esteja voltando. 2013 ainda está aí. O que é fundamental, para mim, é que o velho acabou e o novo não nasceu. Só nascerá com algum tipo de acordo entre “coxinhas” e “petralha”. Há gente horrível nesses dois lados da batalha. Mas, dos dois lados, a maioria é muito bacana. Gente que rala, gente do bem e que talvez só esteja precisando respeitar um pouco mais as opiniões alheias. Enquanto não fizermos esse acerto, envolvendo (lógico) as principais forças políticas, sociais e econômicas do país, afundaremos nesta crise que vem de 2013. Já temos praticamente quatro anos de crise. Precisamos sair dela. Para isso, os líderes e as pessoas que vão às ruas têm de se tratar melhor, ouvir mais, encontrar pontos de convergência.
3) Grande parte dos congressistas brasileiros tem problemas judiciais. O atual Congresso tem legitimidade para votar o impeachment de Dilma?
É verdade. Perto de 200 dos 594 congressistas (513 deputados e 81 senadores) respondem a inquéritos ou a ações penais (veja quais são os deputados e os senadores investigados) no Supremo Tribunal Federal (STF). Muitos, quanto a isso pode ter absoluta certeza, têm folha corrida para passar até o último dia de suas vidas na cadeia. O mandato parlamentar lhes dá esse privilégio: só podem ser julgados pelo STF pelos seus crimes e ainda mandam em todos nós, cidadãos e contribuintes. Fazem as nossas leis. Decidem o que é certo e o que é errado. Aí está o sistema podre que precisamos superar. Enquanto não o superamos, parece-me óbvio que as decisões dessa gente – por piores que sejam – têm validade legal. No caso do impeachment de Dilma, inclusive, eles estão simplesmente verbalizando uma vontade expressa por mais de 60% da população brasileira.
A outra alternativa seria manter Dilma no poder até o final de 2018, o que poderia trazer custos ainda piores para o país.
4) Michel Temer enfrenta um problema de legitimidade por não ter sido eleito e por ter sido citado na Operação Lava Jato?
Eleito ele foi. Foi eleito vice-presidente, junto com Dilma. Ou seja: é a pessoa que PT, PMDB e partidos aliados escolheram para substituir a Dilma, no caso de vacância da presidente no cargo. Legitimidade as pesquisas mostram que ele não possui. Basta dizer que, segundo pesquisa feita pelo Ibope em abril, somente 8% dos brasileiros disseram que Michel Temer deve presidir o país. Veja que 25% disseram o mesmo da Dilma. Ou seja: além de todos os rolos dele e do PMDB, o sujeito tem um terço do prestígio de uma presidente que o povo quer ver longe do Palácio do Planalto…
5) De que modo a suspensão de Eduardo Cunha do cargo de presidente da Câmara pode afetar Michel Temer?
Em princípio, Temer ganha com o afastamento de Eduardo Cunha da presidência da Câmara dos Deputados. Cunha é o Sr. Problema. Uma pessoa sem limites para alcançar seus (quase sempre pouco defensáveis) objetivos. Cunha ajudou muito Michel Temer ao viabilizar a aceitação do processo de impeachment na Câmara. Agora, se ficasse no cargo, teria mais a atrapalhar do que a auxiliar. Só que ele continuará rondando, como uma sombra. Inclusive, é ele que manda no presidente interino da Câmara, Waldir Maranhão. O perigo é o Cunha resolver falar. Porque ele conhece muita coisa do mundo subterrâneo da política brasileira, inclusive sobre Temer e sobre figuras da oposição que agora estão indo para o governo.
Temer terá de ter muita habilidade no trato com o Cunha. Não pode lhe dar poder demais porque aí dará asas a uma cobra traiçoeira. Mas não pode privá-lo também de todos os poderes, porque nesse caso ele pode se sentir desprestigiado e pode querer incendiar o circo.
6) Como vê o papel que o PT poderá ter voltando à oposição?
Fará muito bem ao PT voltar a ser oposição. O PT é um acontecimento. Um fato político da maior importância, até mesmo em termos mundiais. Um grande partido de esquerda, de perfil majoritariamente moderado, que arrebanhou milhões de simpatizantes e militantes para colocar na Presidência da República de um país de tradição escravocrata e elitista um operário que sequer completou o ensino básico. O PT, na oposição, contribuiu muito para fiscalizar os partidos que estiveram no poder nas últimas décadas (PSDB e PMDB, sobretudo). Era uma promessa de ser algo diferente, nunca visto na história do Brasil. Cumpriu uma parte do que prometeu, ao propiciar nos dois governos Lula forte incremento de renda e emprego dos setores mais oprimidos da nossa sociedade. Mas o PT também prometia “ética na política” e foi sob a sua batuta que a nação, entre furiosa e assustada, conheceu os piores escândalos de corrupção vistos por aqui.
Hoje, o PT é um símbolo do cinismo da política brasileira. Para evitar a discussão sobre suas contradições e sobre os crimes cometidos por seus principais dirigentes, joga lama nos detratores. Quem defende o impeachment é chamado de “coxinha”. Ora, grande parte dos “coxinhas” de agora é formada pelos brasileiros de classe média e classe média alta que constituíam os primeiros eleitores do PT: trabalhadores especializados, profissionais de nível superior concentrados especialmente nas grandes cidades, pequenos empresários etc.
O PT precisa ir para a oposição e fazer uma severa autocrítica, sob pena de desaparecer ou se tornar absolutamente irrelevante.
7) A democracia brasileira poderá se recuperar após a eventual saída de Dilma do governo?
Com certeza, sim, meu caro Fernando (Fuentes, do jornal chileno La Tercera). Saíremos desta para uma situação melhor. Somos uma nação grande, rica em recursos humanos, naturais e materiais. Temos um povo bom, trabalhador, criativo. Em algum momento, os bandidões vão perder a parada. Espero estar vivo (tenho 54 anos, quase 40 de jornalismo) para viver esse dia.
E agora encerro e sorrio, e acho bom a Dilma sair. Uma pena ter faltado a ela a grandeza de renuncia. Preferiu fazer o país sangrar, tratando como inimigos a maioria que queria o seu impeachment. Que papelão, Dilma! Diga-se de passagem: até pouco tempo atrás eu era pessoalmente contrário ao impeachment. Mas a Dilma teve tantas chances. Queimou todas. Nos últimos dias na Ilha Fiscal, protagoniza um show de demagogia e gastança absolutamente deplorável. Faz-se de esquerdista perdulária, incitadora das massas, depois de ter tirado do povo bilhões para entregar aos ricaços beneficiados pelos subsídios, pelos empréstimos do BNDES (um lugar onde o dinheiro pro jatinho particular pode sair mais barato do que o capital de giro tomado por um microempreendedor).
Lamento muito que tudo isso tenha acontecido com uma mulher. Espero que, como pessoa e como mulher, Dilma seja tratada com dignidade e dentro dos limites impostos por uma democracia (que não funciona sem algum limite). Precisamos de mais, muito mais mulheres na política. Mas também precisamos de competência e uma relação menos safada, no mínimo, com o interesse público. O PT e todos os partidos que estão ou estiveram no poder precisam mudar suas práticas. Não vai ser fácil, mas não temos outra opção a não ser lutar para que isso aconteça.
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