Por Karine Oliveira*
Ontem dormi tarde depois de uma longa conversa com uma menina de 12 anos. Ela tem acompanhado com bastante interesse os protestos e discussões sobre racismo que vêm acontecendo nos últimos dias nos Estados Unidos, após o assassinato de George Floyd. Sua identificação com a causa negra é tal, que a única vez em que ela me pediu pra sair de casa nos últimos 80 dias foi pra ir a um protesto “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam), caso aconteça algum na cidade onde moramos.
Ela tem avó negra e avô português por parte do pai, e avô com ascendência negra e índia e avó com ascendência branca por parte da mãe. O seu dilema era sobre se afirmar como negra e correr o risco de não ser aceita por “não ser negra o suficiente” e, com isso, não queria ofender (foi essa a palavra que usou) ninguém do movimento negro. Caso se afirmasse como branca, estaria desrespeitando a sua ancestralidade e a memória da avó paterna.
Eu me vi no lugar dela porque tenho convivido ao longo dos últimos anos com os mais diferentes grupos. E se em um não sou suficientemente branca, no outro não sou suficientemente negra. Num não sou de direita o bastante e noutro não sou de esquerda o bastante. Num não sou pobre o suficiente, noutro não tenho dinheiro suficiente. Num não sou feminista o suficiente e noutro sou considerada extremista. Não, não é uma crise de identidade e nem vivo em cima do muro. Eu realmente participo de grupos em que as pessoas têm visões de mundo radicalmente distintas. E é mais ou menos como me enxergam, dependendo do grupo em que estou.
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Num desse grupos, uma observação minha sobre a não representatividade e a não diversidade em uma live chamada “Do trabalhador”, que tinha como tema “Defesa da Democracia por um Projeto Nacional” e como protagonistas quatro homens brancos, enveredou para uma interessante discussão sobre a relevância versus a inconveniência das pautas identitárias no processo político-partidário, com ênfase na questão do racismo.
Quando criança e jovem, eu não tinha qualquer consciência de como eram raras as pessoas negras nas escolas particulares e católicas em que estudei – e que quando elas estavam lá, geralmente eram bolsistas. Trinta anos depois, tenho consciência de que o cenário na escola particular em que minha filha estuda é praticamente o mesmo e é uma das escolas mais inclusivas da rede particular de onde moramos.
PublicidadeCresci tendo em casa empregadas negras e empregados negros que eram consideradas “da família” e levavam pra casa as roupas velhas e a comida que sobrava. Lembro como se fosse hoje de meu pai, mestiço, irritar-se com alguma dessas pessoas dizendo que “negro quando não caga na entrada, caga na saída”. Lembro de quando era jovem e minha tia avó, também mestiça, católica praticante e Filha de Maria, dizer ao ver um negro na televisão que “era tão feio que ela não acreditava que deus tivesse criado gente assim” e do meu espanto só em pensar que pudesse existir um Deus assim. Lembro-me da minha mãe dizendo não tão sutilmente que meu primeiro marido era “feio” para mim, como sinônimo de não ser branco e de que uma de suas primeiras frases quando segurou minha filha no colo foi “ainda bem que ela nasceu com o cabelo bom”.
Cresci ouvindo – e até certa idade rindo – de piadas com pessoas negras, com transtorno mental, obesas, idosas, pobres, gays, lésbicas, prostitutas, mulheres, mulheres loiras, portugueses, crianças etc.
Mulher de classe média baixa, de pele relativamente clara e sem nunca ter tido grandes perrengues na vida por conta dessas características, eu já achei que feminismo era exagero, que respeitar inflexão de gênero em um documento oficial de uma conferência estadual de cultura – quando eu estava na comissão organizadora – era frescura.
Já me incomodei com pessoas pobres pedindo dinheiro nos sinais e não via grande problema em ter pouquíssimas pessoas negras estudando comigo na faculdade. Não enxergava nada de errado em uma mesa enorme de abertura de um evento para falar de defesa de direitos formada só por homens brancos. Já considerei normal que existissem escolas exclusivas para pessoas “especiais”. Já reproduzi em algum momento o discurso de que as pessoas que recebiam bolsa família ficavam “acomodadas”. Em meu favor, quero dizer que me redimi de tudo isto há um tempo.
Foi convivendo com a diversidade e a riqueza de causas das pautas identitárias que aprendi a reconhecer o racismo, o machismo, a homofobia, o capacitismo, a psicofobia, a gordofobia, a xenofobia, a aporofobia e todas as outras formas de discriminação que ainda residem em mim. Foi assim que eu saí do “not all” (mas nem todo mundo é), pra reconhecer que há sim, entranhados em mim tantos preconceitos, que de alguns deles eu sei que ainda nem me dei conta. Essa desconstrução é um processo diário e passa pelo reconhecimento de que somos todos produtos de uma sociedade racista, que via de regra nega que o é. Esse reconhecimento costuma doer, porque arranha nossa autoimagem, principalmente no início.
O Brasil vive hoje uma gravíssima crise de saúde e uma grave crise econômica, agravadas pela crise política causada por um anti-presidente que se elegeu destilando ódio a todos os grupos socialmente e economicamente vulneráveis. Eleito com a promessa de “acabar com o politicamente correto”, como se isso fosse moda ou tendência e não um conjunto de escolhas e atitudes que partem do reconhecimento da discriminação, à qual grande parte das pessoas foi e continua sendo submetida.
Em 3 de junho de 2020, o general vice-presidente Hamilton Mourão, que integra e corrobora as ações desse desgoverno genocida, publicou um artigo tão reacionário quanto ele próprio onde manipula a verdade e ao mesmo tempo em que credita mentirosamente à imprensa o insuflamento da crise entre o Executivo e Legislativo e o Judiciário, tacha de baderna os protestos antirracistas e pela democracia. Nega a existência do racismo no País.
Em 2019, a polícia nos EUA matou 1.099 pessoas. Destas, 259 eram negras. Em 2019, a polícia no Brasil matou 5.804 pessoas. Destas, 4.533 eram negras.
No mesmo dia em que Mourão disse que o racismo não era um problema, o Brasil recebeu aturdido a notícia de que na cidade do Recife, uma criança negra de cinco anos fora morta na véspera pela negligência da “patroa” de sua mãe. Sarí Corte Real havia mandado a mãe de Miguel passear com os cachorros e, enquanto uma manicure lhe fazia as unhas, impacientou-se com a criança e deixou-a sozinha no elevador para ir procurar a mãe.
Miguel caiu do nono andar direto para a morte. Sarí, que aprincípio não teve seu nome revelado pela polícia, cujo delegado responsável chamou a situação de “fatalidade”, pagou 20 mil reais de fiança e voltou pra casa. E se a mãe de Miguel, que dormia no trabalho e em plena pandemia não teve o direito de cuidar do seu filho, tivesse feito o mesmo com o filho da “patroa”?
Se já não estivesse convencida de que o racismo mata, como matou Miguel e, da importância de que as gerações seguintes àquela menina que mencionei lá no primeiro parágrafo não tenham nenhuma dúvida quanto à sua identidade e pertencimento, para mim só essa declaração do general seria suficiente para evidenciar que a pauta do antirracismo é central na construção de qualquer projeto que se pretenda democrático para o Brasil.
#VidasNegrasImportam
*Karine Oliveira é ativista em direitos humanos e gestora social no Instituto Soma Brasil. Atua nas áreas de participação e incidência cidadã, educação para a cidadania, direito à cidade e monitoramento da gestão pública. Perfil no Facebook.
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