A internet permitiu e acelerou a criação de novas formas de interação humana através de mensagens instantâneas, fóruns de discussão e redes sociais. O comércio, serviços e também os governos passaram a ter uma presença online significativa. Os negócios e as finanças globais mudaram com a disponibilidade e agilidade ofertadas. Muitos dos debates no Congresso Nacional sobre estratégias para melhorar a qualidade de vida e promover direitos dos brasileiros giram em torno da expansão da educação à distância, da telemedicina, do serviço público digital.
Há nove anos, o então relator da ONU para a Liberdade de Expressão, Frank LaRue, já defendia em relatório a necessidade de se reconhecer o acesso à rede como essencial para o exercício da dignidade e o desenvolvimento pessoal. A Organização dos Estados Americanos (OEA) também entende o acesso à internet como fundamental para a realização efetiva do direito de buscar, receber e difundir informação em sua dupla dimensão, individual e coletiva, conforme o artigo 13 da Convenção Americana. Isso por conta de sua natureza multidirecional, interativa, velocidade e alcance global, a um custo relativamente baixo, e de seus princípios de design descentralizado e aberto. Além disso, o Informe Anual da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de 2013 reforça que “a Internet serve como uma plataforma para a realização de outros direitos humanos, como o direito de participar na vida cultural e de desfrutar dos benefícios de progresso científico e tecnológico”.
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E ainda assim, os parlamentares brasileiros não estão devidamente atentos às estratégias de financiamento da ampliação da infraestrutura que dá suporte a aplicações esteja disponível, em qualidade e preço adequados, para todos os cidadãos do país. Prova disse é a análise do processo envolvendo a proposta de emenda constitucional 187/2019 que tramita no Senado Federal que institui reserva de lei complementar para criar fundos públicos e extingue todos aqueles que não forem ratificados em dois anos após vigência da emenda constitucional. Afora o que significa a desvinculação para a população, queremos chamar a atenção para a aparente ausência de preocupação quanto ao Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), constituído por recursos pagos por empresas de telecomunicações e voltado para o financiamento da implementação de serviços no setor. Em outras palavras, é por meio deste Fundo que é possível expandir a infraestrutura de suporte e assegurar a universalização do acesso à internet.
À medida que se avança o debate sobre a essencialidade do acesso à conexão à internet para o exercício da cidadania, inclusive conforme tipificado pelo marco civil da internet, é impensável desvincular recursos voltados para a garantia da universalização do acesso e destiná-los para outro fim, como a construção ou manutenção de rodovias, por exemplo. Esquecem que a universalização do acesso à internet é um passo importante para a superação da pobreza no Brasil, porque impede que mais um degrau seja criado entre os que têm renda para a vida digna e os que passam por privações cotidianas.
Analisando as diversas emendas propostas à PEC 187/2019, não se observa a tentativa de resguardar o Fust da extinção. Ou, se houver mesmo à desvinculação, não há propostas de emendas para o estabelecimento de um percentual a ser destinado para a expansão da infraestrutura de suporte à conexão à internet – ainda que Senadores da Comissão de Constituição e Justiça tenham apontado a necessidade de aplicação dos recursos desvinculados à ciência e tecnologia, de forma genérica. Rodovias e ferrovias receberão recursos da porção liberada de destinação específica, caso o substitutivo da PEC 187/2019 produzido pelo relator na CCJ do Senado, Otto Alencar, seja vencedora ao final do processo legislativo. Mas, entre as infraestruturas estratégicas para a superação da pobreza, da desigualdade e da estagnação econômica, não está a infraestrutura para acesso à internet.
Após vários anos de dificuldade de aplicação dos recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações – previsto no Art. 81, inciso II da Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/97) e instituído por meio da Lei 9.998/2000 – há um projeto de aplicação dos recursos, encabeçado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e que tem apoio tanto dos agentes privados quanto dos servidores e sociedade civil organizada. E, mais do que isso, que estabelece critérios para a aplicação dos recursos, bem como uma governança – com participação da sociedade e dos agentes privados -, partindo de um diagnóstico técnico e levando em conta as prioridades da população. Aprovado como anteprojeto de lei na Anatel e enviado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), este projeto foi incorporado em substitutivo ao Projeto de Lei do Senado 1.418/2019, aprovado por aquela casa e pela Câmara dos Deputados recentemente, em novembro do ano passado. Segue agora apenas para análise das alterações no Senado. Estamos muito perto!
Acabar com o Fust significa relegar ao mercado a tarefa de levar este serviço essencial para a população de todo o país. Se por um lado os pequenos provedores de conexão têm feito um excelente trabalho em conectar áreas que as grandes teles consideram pouco atrativas economicamente, eles seguem dependentes de maior suporte de crédito e de infraestrutura de atacado/longas distâncias para oferecer o serviço em pequenas localidades. No Nordeste, 43% dos domicílios ainda não contam com conexão – alguma, de qualquer tipo! – conforme levantamento da pesquisa TIC Domicílios realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Este percentual é de 37% no Norte e de 36% no Centro-Oeste. Nas classes D e E, 60% ainda não possuem conexão. Do total de domicílios conectados, 37% não dispõe de banda larga fixa, o que significa que pesam sobre estas famílias os preços mais elevados por bit trafegado e as restrições de franquia. Significa que boa parte das famílias ainda vive no curral informativo dos apps cujo tráfego é liberado, nos quais predominam os memes e títulos chamativos para disputa de narrativa.
Assim, o Intervozes orienta que os Senadores da República, na Comissão de Constituição e Justiça, aptos a decidir o futuro dos fundos públicos, atentem para a necessidade de resguardar o FUST por meio de emenda de plenário, caso esta PEC siga tramitando. Ou, se não for possível ganhar esta batalha, que incluam, por emenda de plenário, a obrigação de destinação de recursos desvinculados para a ampliação da infraestrutura de suporte à banda larga, ao lado da destinação para rodovias. E, por último, preparem-se para a criação de lei complementar de manutenção do Fust. Só assim vamos avançar na garantia da cidadania do século 21 a todos os brasileiros.
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