Maciel de Aguiar*
O estado do Espírito Santo, no florescer da República Federativa do Brasil, escolheu, a 20 de novembro de 1889, o escritor, poeta, historiador, professor e advogado Afonso Cláudio de Freitas Rosa, nascido em Mangaraí, município de Cachoeiro de Santa Leopoldina, a 2 de agosto de 1859, para ser seu primeiro governador. O que se viu depois marcou indelevelmente a vida pública capixaba e criou uma característica que vem predominando até os dias de hoje, com raríssimas exceções.
Poucos governantes espírito-santenses foram tão cultos, muito menos, letrados. Tivemos também raros doutores e intelectuais. Alguns, mesmo não tendo assento em bancos de faculdade, possuíam sensibilidade para entender os valores de nossa gente e, sobretudo, tê-la como referência para as ações de governo. Outros se cercaram de assessores capazes de suprir suas carências em determinadas áreas e até conseguiram realizar excelentes gestões, mesmo que não tivessem agradado à maioria.
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Nosso primeiro governador republicano reunia as melhores condições intelectuais para iniciar o processo democrático na terra dos “gatos selvagens” — que tinha sua capital pejorativamente chamada pelos mateenses de “roça de milho”. É que na língua nativa a palavra capixaba tem esse significado. À época, dizia-se que “São Mateus era a metrópole e Vitória, a província”. Estabeleceu-se, assim, uma grande rivalidade entre o interior e a capital, até que Jerônimo Monteiro fez Vitória se transformar.
No início da jovem República, quando a maioria da população vivia no interior do estado, a cidade grande não podia ter a densidade demográfica, o poder sócio-econômico ou produzir os gêneros indispensáveis à sobrevivência. Mesmo assim, era o centro político-administrativo, o que a diferenciava dos demais núcleos interioranos. Com o fim da escravidão, os ares da civilidade empurram a velha aristocracia rural mateense e do Sul do estado para Vitória e as famílias coroadas se estabeleceram.
São construídos os palacetes neoclássicos nas praias — Comprida, Santa Helena e Barracão —, onde muitos ex-senhores de escravos emprestavam seus nomes às ruas que se abriam. Eram os tempos modernos que queriam se livrar da pecha da escravidão que havia durado cerca de 200 anos e feito a fortuna de muitos, sobretudo desde que a Lei Eusébio de Queirós proibiu o tráfico da África ao Brasil, fazendo surgir
Então, começávamos com uma enorme vantagem sobre os demais rincões da Federação brasileira. Tínhamos um dirigente dotado de capacidade para iniciar os nossos primeiros passos como civilização e deixar o velho ranço do atraso. Mas, em seu caminho, existiam muitos obstáculos. Alguns, quase irremovíveis — como o hábito de fazer política com o fígado, a execração moral dos adversários e das futricas palacianas — que reverberavam pelas adjacências das praças 8 de Setembro e Costa Pereira.
Com a visão ampla dos problemas que afligiam a economia do Espírito Santo, além dos conhecimentos dos valores e anseios da população, Afonso Cláudio trazia uma trajetória humanista, forjada nas lutas contra o sistema escravocrata. E, como escritor e advogado, havia atuado no registro do que a historiografia oficial havia “esquecido”. Era um estudioso da cultura popular e pioneiro da pesquisa folclórica no Brasil. Portanto, o nosso primeiro governador tinha tudo para dar certo.
Desde jovem, procurou nas letras e nos livros encontrar-se com o homem inquieto e talentoso que logo se construiu em torno de sua personalidade. Ainda jovem, foi viver no Rio de Janeiro. Fez os primeiros estudos no Ateneu Provincial e, em seguida, ingressou no curso de Direito na Faculdade de Recife. Dali, transferiu-se para a Faculdade de Direito de São Paulo, onde fez contato com inúmeros intelectuais e participou do embrionário movimento republicano.
Porém, nem sempre no Espírito Santo prevaleceu a competência, o desprendimento e a tolerância como condições relevantes para conduzir a coisa pública. Assim, feriu suscetibilidades, confrontando-se com as oligarquias e os que dominavam a cena política capixaba. Em decorrência, passou a sofrer ataques sistemáticos de inúmeros grupos que se enfrentavam nas lutas pelo poder, cujos métodos beiravam ao imponderável e o irracional. Vivenciou intermináveis momentos de angústia na função de governador do estado.
Pressionado pela ameaça da execração moral — cuja prática já era a forma de se chegar ao Palácio Anchieta —, renunciou ao mandato. Os opositores, vitoriosos, haviam efetivamente impedido o início da civilidade. Julgou-se, portanto, impossibilitado de continuar vivendo sob a égide da mediocridade e tendo de se engalfinhar nos embates fratricidas pelo poder. Foi morar no Rio de Janeiro, onde exerceu a advocacia e a magistratura. Não mais voltou ao estado. Faleceu a 16 de junho de 1934 na Cidade Maravilhosa, onde foi sepultado.
Sua renúncia teve efeito devastador na vida pública capixaba. Comentava-se, à época, que “pessoas cultas e civilizadas teriam dificuldade para governar o estado do Espírito Santo”. A afirmação era baseada em inúmeros conflitos políticos com soluções que não passavam necessariamente pelo respeito às normas da legalidade e, sobretudo, ao que preconizava a Constituição. Desde então, as soluções com base no respeito às leis para a resolução dos problemas foram sendo relegadas.
À época, já vivendo no Rio de Janeiro, indagado pelos motivos da renúncia, Afonso Cláudio alegou que não queria ser um “tirano com pose de democrata e comandar pelo temor um grupo de puxa-sacos”. E mais: “Não gostaria de ter à disposição a Justiça para condenar, a Assembléia para lhe beijar a mão, a imprensa para atacar os inimigos e a polícia para prender e soltar quem quisesse”. Muitos não o perdoaram e a historiografia oficial “esqueceu” que Afonso Cláudio revelou o modus operandi da política capixaba.
Por longos anos se instalou um tempo de temor, ameaças e execrações. As regras do jogo eram ditadas pelos chefes de Polícia, que recebiam ordens expressas do governador e realizavam as prisões dos adversários, sobretudo na ditadura do Estado Novo. Esses delegados se constituíram nas principais autoridades que — arrogantes e prepotentes — “garantiam a ordem” e os favores aos correligionários. As ações criminosas dos apadrinhados se tornaram uma prática cada vez mais latente e de difícil punição.
Os “benefícios da lei”, como uma característica indelével na relação das autoridades com os cidadãos, principalmente no trato das questões pessoais, lindeiras e dos conflitos políticos, era uma vantagem considerável. Quando eleito um governador, a função mais disputada nos municípios era a de “Delegado de Polícia”. Quem detinha a influência sobre essa indicação, mesmo não sendo o prefeito da cidade, se convertia no principal tentáculo do chefe do executivo no local, e em torno dele gravitava o poder.
Em vez de enfrentar e punir os que cometiam crimes de mando e de grilagem de enormes extensões de terra — quando muitas autoridades se apoderaram de grandes glebas, inclusive com o assassinato de índios e antigos quilombolas —, esses delegados atuavam na prisão e morte dos envolvidos no ritual milenar da Cabula, realizado nas matas do Cricaré, acusando-os de “feitiçaria”. Muitos foram assassinados por serem posseiros, mas acabavam acusados pela prática da cerimônia religiosa.
Os “caçadores” saiam de Vitória e realizavam as prisões e “aproveitavam” para atender aos políticos locais, aliados do governador. Assim, os expulsavam de seus legítimos domínios e assassinavam os que resistiam nas terras desde o fim da escravidão. Fizeram surgir as enormes fazendas de alguns detentores do poder. Sem contar as prisões para intimidar. É genuinamente capixaba a expressão “manda prender e manda soltar”. Sua prática, como um fundamento sociológico da atividade política capixaba, se perpetuou.
Afonso Cláudio quis romper com a tradição. Não suportou a pressão das elites e abdicou aos salamaleques dos que o cortejavam. Pagou o preço da ousadia. Sua obra, sob vários aspectos da história e da cultura do povo capixaba, deveria ser utilizada nas escolas. No entanto, poucos conhecem sua trajetória política, os motivos da renúncia e muito menos sabem de sua existência. Não obstante, a literatura por ele produzida teve enorme repercussão no Brasil e desfrutou de respeito e admiração.
Durante o tempo em que viveu no Rio de Janeiro, dedicou-se à função de professor e à advocacia. Nem mesmo na cidade capixaba à qual empresta o nome, seus livros são estudados nas escolas. Muito menos existem nas bibliotecas públicas do estado. Mas ele não deixou de ser celebrado por escritores como Euclides da Cunha — seu contemporâneo e autor de Os Sertões. E o célebre Câmara Cascudo se referia à obra de Afonso Cláudio como “a maior referência dos estudos sobre a escravidão em nosso país”.
Recentemente, a Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo (Sedu) fez uma licitação para comprar mais de 600 mil livros, no valor acima de 14 milhões de reais. Mas “esqueceu” de incluir na relação alguns bons títulos de vários autores capixabas, sobretudo para a aplicação da Lei Federal 10.639 — que estabelece a obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-brasileiras nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Também não figurou na lista um único título da imprescindível obra de Afonso Cláudio.
A compra foi capitaneada pela subsecretária pedagógica Adriana Sperandio. Algumas instituições questionaram a finalidade dos livros para uso nas escolas públicas. A bem da verdade, a compra foi uma imoralidade, além de um desserviço à educação pública. A permanência da subsecretária no comando das licitações é atribuída ao governador Paulo Hartung. Mas a insatisfação vem de muitos diretores e educadores. Se vivêssemos num Estado com um mínimo de respeito pela educação, o governador impediria a misteriosa aquisição.
E, como de prática, foi “tudo legal”. Publicado no Diário Oficial de 18 de dezembro de 2007 (vide na página 37 os valores dos lotes e as empresas vencedoras). Para se ter idéia da farra com o dinheiro público, compraram do livro Xangô de Baker Street, do humorista Jô Soares, 1.860 mil exemplares. Nossas crianças agora vão estudar com Xangô de Baker Street. Quando terminar seu inquilinato no Palácio Anchieta, Paulo Hartung não poderá contestar que seu governo, principalmente na educação, foi uma piada de gosto duvidoso.
Mas esta não foi a única compra de fundamento escuso na Sedu. Nos anos anteriores, outras milionárias licitações fizeram a alegria de grandes editoras. Uma coisa é certa: o governador despeja milhões de reais no mercado editorial brasileiro e pode se considerar um excelente gestor para autores, editoras e, sobretudo, para a indústria gráfica de outros rincões da Federação. Já os escritores, editores e donos de gráfica do Espírito Santo podem dizer — se tiverem coragem — que são sobreviventes do “Governo Paulo Hartung”.
Para quem enfrentou os tenebrosos anos da ditadura militar — publicou dezenas de livros como resposta aos crimes dos órgãos de repressão, enfrentou a tortura e a prisão, viveu na clandestinidade, mudou de nome, participou da “Passeata dos 100 Mil”, fez pichações em louvor à liberdade, teve a morte lambendo os calcanhares e não teve medo —, afirmar que é sobrevivente de um governo farsante e aprendiz de tirano é “café pequeno”. Não temos medo. Aqui, nas barrancas do Cricaré, só tememos lobisomem. Bicho homem, não!
Se a escabrosa compra de exatos R$ 14.751.219,82 (milhões de reais) em livros inúteis ocorresse em tempos pretéritos, seria um escândalo com manchete nos jornais. Muitas “vozes da moralidade” fariam coro a uma CPI. Mas, como estamos no reinado do “Imperador Dom PH I”, o fato imoral cairá no esquecimento. E parte do Ministério Público Estadual — que defende Paulo Hartung com fidelidade canina —, ao menos se prestará para instaurar sindicância ou intimar este cronista para comprovar a denúncia.
Como não teremos em nossas escolas públicas as obras de Afonso Cláudio e de outros bons escritores do Espírito Santo, juram alguns servidores da Sedu que a compra de quase toda uma edição do Xangô de Baker Street foi uma tentativa de “fazer uma média” com o comediante, que tem um programa de entrevistas na TV Globo. Por certo, Jô Soares não concorda com o despautério. Mas, quem sabe o seu Xangô não desvende a ardilosa compra e seus beneficiários. Depois, manda tudo para o Ministério Público Federal.
Nós, os capixabas, ainda não soubemos apreciar as qualidades de um governante que ousou enfrentar o modus operandi da fratricida política espírito-santense, e muito menos temos a intenção de resolver os conflitos que norteiam a vida pública usando os fundamentos da democracia, mesmo que, com imperfeições. Temos predileção por governantes falaciosos. Aqui, exercer a consciência crítica é um “crime estadual”. No entanto, foram algumas vozes solitárias de abnegados capixabas que ajudaram a desmascarar alguns capciosos.
No estado do Espírito Santo, ao contrário do que fez Afonso Cláudio, alguns se proclamam próceres, e se julgam acima do bem e do mal. Estabelecem que vão exercer o poder até quando lhes caírem os dentes. Somente em nosso estado é possível alguém ser cínico e farsante ao mesmo tempo. E, ainda, avisar aos incautos, com a cumplicidade da “imprensa amiga”, que ficará no poder até o ano 2025. Essa insanidade só é possível devido à omissão de muitos intelectuais, jornalistas e autoridades que se curvam diante da mistificação.
Há décadas — desde quando éramos a “terra dos gatos selvagens” — somos tentados a celebrar quem tem à disposição “a Justiça para condenar, a Assembléia para lhe beijar a mão e a imprensa para difamar os inimigos”. E, hoje, ainda se faz uso de instrumentos de exceção para intimidar os que discordam, imputando-lhes a chancela de “membro do crime organizado”. Nos dias atuais, qualquer cidadão capixaba que ousar expressar uma opinião contrária ao governador enfrenta a polícia política do Estado: o Doi-Codi (imoral).
Mas a maioria dos governadores do Espírito Santo não usou desses expedientes escusos. Todos exerceram atividade profissional além do exercício dos cargos públicos. Sustentaram suas famílias com o fruto do labor na ação privada. Se o trabalho é a honra do homem, em nome de que honra alguém pode se arvorar se nunca trabalhou na vida? Sempre exerceu o expediente da malandragem para forjar a crença de que necessitamos de um “imperador”. Só se for para desfilar nos corredores palacianos com cetro, coroa e vestes cor de rosa.
A imprensa nacional, por conta de muitos salamaleques, acredita que vivemos a corrida do ouro. É uma deslavada mentira. A geração de empregos é uma fantasia. As poluidoras tomaram de assalto o estado financiando os políticos e em troca recebem créditos de ICMS. Depois, tudo volta para as campanhas, num ciclo imoral. Sem contar as escutas telefônicas. Aqui, tem “guardião” grampeando “guardião”. É o Estado abjeto. Descemos ao ponto mais vertical da degradação para encobrir a corrupção organizada e profissional.
A história registra, no entanto, que coube ao ex-governador Jones dos Santos Neves, em
Afonso Cláudio, por sua formação humanista — sem se distanciar dos valores culturais do povo espírito-santense —, jamais se converteria num ridículo governador que posa de imperador a comandar uma corja de puxa-sacos e a se deliciar com os bajuladores que escrevem na “imprensa amiga”. Afonso Cláudio não tinha vocação para o acinte. Por isto, recusou-se a ocupar a principal cadeira do Palácio Anchieta. Quando renunciou não o fez em desrespeito ao Estado ou ao povo. Deixou uma bússola aos tempos que haveriam de vir.
Nós, os capixabas, dos estranhos dias de hoje, não entendemos o grandioso gesto de um governador que renunciou para não ser obrigado a utilizar o aparelho do Estado em benefício próprio e, sobretudo, como instrumento de intimidação dos adversários. Assim, trocamos uma história de civilidade pela intolerância. Trocamos a generosidade pelo Estado policialesco. Trocamos os anseios de liberdade pela volta da infame tirania. Trocamos o bem-estar das cidades pelo trânsito caótico e a irresponsável política de (in)segurança.
Dizem que é “Um Novo Espírito Santo”. Assim, aceitamos a troca da racionalidade pela mistificação de um imperador de araque. E nessa troca para pior — desde a covarde capitulação territorial para Minas Gerais e Bahia —, subtraímos de nós mesmos a coragem, a honra e a dignidade. Celebramos um governador travestido de bisonho monarca e aniquilamos o legado de um estadista. E, como ápice do acinte e da perfídia, trocamos a mais bela e lúcida literatura capixaba por milhares de livros Xangô de Baker Street.
*Maciel de Aguiar é escritor, ex-secretário de Estado da Cultura do Espírito Santo e reside no Porto de São Mateus.
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