A decisão do Alto Comando do Exercito Brasileiro de não punir o general da ativa Eduardo Pazuello, que participou de uma manifestação com o presidente Jair Bolsonaro no último dia 23 de maio, mostra a intrincada relação entre Estado, governo e Forças Armadas. A análise é da professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Franca, Suzeley Kalil, que se dedica ao estudo das Forças Armadas no Brasil desde a década de 1980.
Cientista política que integra o Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes), Suzeley enxerga na ação do Alto Comando um movimento esperado, que se inclina ao que chamou de “Partido Militar”. Para a pesquisadora, como Bolsonaro se elegeu dentro da lógica dessa pretensa legenda, a ação de perdoar o general é de interesse de quem integra os quadros desse “partido”.
A pesquisadora também alerta para as raízes deste problema, que viriam desde a redemocratização. Essa relação, segundo ela, passou por um momento de inabilidade política nos governos do PT, que, em sua visão, deram “brinquedinhos às Forças Armadas sem, no entanto, se ater a problemas estruturais”. A professora considera que cabe ao Congresso Nacional colocar ordem nas coisas – o tempo, no entanto, está correndo.
“Se os parlamentares não assumirem a sua responsabilidade, nós vamos entrar numa época em que a gente vai ter vergonha de ser chamado de brasileiro”, comentou. “Nós estamos transformando este país numa grande Venezuela, com pitadas de Colômbia”, disse, referindo-se a dois países com forte influência militar.
Bolsonaro tem sido comparado ao ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, como uma espécie de repaginação, à direita, do líder bolivariano.
Semelhanças entre eles não faltam: ambos militares, ex-paraquedistas, autoritários, populistas e eleitos com o discurso antissistema. Autores de ataques diários à imprensa e de teses conspiratórias, elegeram inimigo para manter seu séquito mobilizado: Chávez, os Estados Unidos; Bolsonaro, a esquerda. Em 1999, o então deputado Bolsonaro manifestou admiração pelo líder venezuelano: “Gostaria que essa filosofia [militarista] chegasse ao Brasil. Acho ele [Chávez] ímpar.”
Abaixo, trechos da entrevista com Suzeley Kalil, feita nesse domingo (6):
A decisão do Exército de não punir o general da ativa Eduardo Pazuello por participar de um ato político foi sensata ou pode ainda trazer algum risco para o governo?
Eu acho que a gente precisa dividir a resposta em: arriscado pra quem? Arriscado para o Bolsonaro? Para o presidente da República não – ele tá fazendo exatamente o que ele prometeu fazer desde sempre. Eu com a Ana Penido e com o Jorge Rodrigues, em abril do ano passado, colocávamos três hipóteses para o futuro do governo Bolsonaro. O que aconteceu agora da não punição do Pazuello é uma conjunção desses três cenários.
Um era a militarização da política, o que a gente tem visto, inclusive da completa ocupação de cargos por membros das Forças Armadas no governo federal. A segunda é que o Bolsonaro joga com a quebra de hierarquia. E desse sentido ele procura insuflar as bases da própria corporação militar, no sentido de ter elos de ligação com a baixa oficialidade. E a terceira é que o Bolsonaro desestabiliza – e isso é projeto de governo dele – todas as instituições, inclusive as Forças Armadas.
Então, do ponto de vista do projeto de poder, o que ele está fazendo é o que ele prometeu. E tem uma questão por trás que a gente precisa levar em consideração que é o seguinte: a gente parte da hipótese de que o Bolsonaro é que levou os militares ao poder, e que levou as Forças Armadas ao poder. A minha hipótese de trabalho que eu desenvolvo junto com a Ana Penido é que o Bolsonaro é fruto do “Partido Militar”, ele foi o candidato e teve a sua candidatura construída pelo “Partido Militar”. Então do ponto de vista do governo e do Bolsonaro, nada tem de arriscado .
E do ponto de vista das Forças Armadas – há a mesma percepção?
Do ponto de vista das Forças Armadas, tem-se dito que a não punição ao Pazuello enfraquece o o general Paulo Sérgio, comandante do Exército. Eu parto do que é o contrário, porque o o Paulo Sérgio não fez isso sozinho, ele não tomou uma decisão sem consultar o Alto Comando. E se ele tomou a decisão, consultando o Alto Comando, isso significa que o Alto Comando está com ele.
Então, acho que o que querem passar pra população – e a gente está reverberando isso, o que é um grande problema – é que as Forças Armadas vão fazer o que Bolsonaro quer, porque elas respeitam a ordem democrática. Em uma entrevista do ministro da Casa Civil insistindo que o Bolsonaro é comandante em chefe. Só que se esquecem que comando em chefe é para guerra. Não é para uma situação civil. Então está se normalizando a questão de que as Forças Armadas estão fazendo aquilo que o Bolsonaro foi eleito para fazer.
Então, eu acho que não foi uma decisão impensada. Não foi uma decisão fácil, eu acho que foi uma decisão difícil, mas ela está dentro daquilo que se espera que façam as Forças Armadas
Uma decisão como esta pode desestruturar as Forças Armadas?
Isso já está sendo feito nos últimos tempos.Nós adormecemos – nós, a inclusive a academia adormecemos durante os governos petistas, pensando “como a nossa democracia tá consolidada, olha que lindo que estão as instituições”. E a gente deixou de notar que as instituições não param no tempo e evoluem. E elas evoluem para o bem e para o mal.
No caso das Forças Armadas, efetivamente nós perdemos oportunidade de ouro na Constituinte, de fazer Forças Armadas, de fato, instrumentos da defesa. E permitimos essa ascensão – principalmente governos petistas, que foram extremamente inábeis em perceber que o que eles estavam fazendo era dando brinquedinhos, pra usar uma figura da Wendy Hunter – brinquedinhos pras Forças Armadas sem, de fato, olhar pras estruturas. Então, permitiu que se reorganizassem o que nós chamamos de Partido Militar.
Algumas autoridades têm falado em “anarquia”. O uso, na sua visão, é correto?
Eu não acredito nisso – veja, eu não estou dizendo que não houve quebra de hierarquia e nem que não haja indisciplina nos quartéis. Mas de que lado houve a queda de hierarquia? As Forças Armadas estão alinhadas. Então, até agora, o que a gente viu várias, pontos que se pensava ‘agora vai, agora quebra [a hierarquia], agora vai acontecer’ quando, na verdade, quem está falando isso são os civis. E, quando se olha para os quartéis, eles tão quietinhos.
Quem que reverbera a indisciplina? As polícias militares. E contra quem elas reverberam a indisciplina? Contra os governadores. A gente pode vir a ter uma situação como a de 1961 [quando ministros militares se opuseram à posse de João Goulart, quando da renúncia de Jânio Quadros]? É possível. Na minha opinião, é uma probabilidade muito pequena. Ela é, pelo menos, do ponto de vista desses deputados que estão chamando de anarquia. Pode acontecer um 1961, mas ao ingresso – ou seja, a favor do Bolsonaro.
E sobre quem recairia uma situação como esta?
A responsabilidade disso é muito do Congresso Nacional, inclusive. A gente tem uma Constituição, se a gente prestar atenção que é justamente nesse sentido que ela não equilibra os poderes, que numa República se se supõe que sejam equilibrados. O Congresso tem muito poder, muito poder. Mas a responsabilidade nunca é do Congresso – e a pandemia mostra isso: eles não foram responsabilizados nem pelos ganhos. Foi o Congresso Nacional, como a gente sabe, que deu o ano passado o auxílio emergencial. Quem capitaneou isso? O Bolsonaro.
Esse desequilíbrio desenha também outras instituições. Inclusive, a a instituição Forças Armadas, né? Temos que nos perguntar para que (servem) as Forças Armadas.
É uma pergunta que se fazia ao em meados dos anos 1980, na constituinte principalmente. Veio uma leva de gente falando que “não existe Estado sem Forças Armadas”. Mas a gente tem Forças Armadas contra o Estado. Nós temos Forças Armadas que se colocam pra além do Estado, acima do Estado, que se arrogam o direito de serem o poder tutelar, mas sem a responsabilidade desse poder.
Eles são pessoas que são, deveriam ser, muito bem preparadas. Deveriam desenhar cenários de guerra compatíveis com a realidade. Mas em 2019 saiu aquele desenho de guerra possível e o inimigo era a França. Como é que se pode pensar que o que até um outro dia era um aliado, agora é o inimigo?
Essa decisão do Exército de poupar um general – quando punições por transgressões em escalões mais baixos são comuns – representa um tipo de corporativismo?
As Forças Armadas têm como primeira regra da corporação é a autodefesa. As Forças Armadas não são diferentes de uma célula viral: da hora que elas veem que elas não têm um corpo para invadir, elas baixam todas as energia para manter a vida e ali na frente atacar outra vez, Então sim: elas se autopreservam, e esse é o primeiro sentido da corporação.
Existe pouco ou não existe pouca punição? Depende. Tomemos o caso do Bolsonaro: todo o processo dele foi pra ser punido, ele deveria ter sido expulso do Exército, como mostra a leitura de um livro sobre o processo dele. Mas se chegou no momento final e se entendeu que ‘se punirmos esse cara agora, a corporação vai sofrer, então vamos fazer de conta que não existiu nada, vamos fazer de conta que ele não foi terrorista’ , porque é o que ele foi… Mas, para as Força Armadas era melhor jogar pra baixo do tapete e não punir o Bolsonaro.
Agora, vamos pensar em 1964, no golpe militar. A categoria profissional que mais perdeu foi as Forças Armadas. Exatamente. O número de militares cassados é impressionante. Pesquisas feitas pelo tema mostram que, naquela ocasião, eles não varreram para baixo do tapete, porque aquela conjuntura permitia. Para eles se manterem no poder, aliás, eles tinham que fazer isso, eles tinham que acabar com a divergência.
Tem que se olhar qual que é o momento, vendo sempre quem está sendo punido. Quem é punido são aqueles militares que falam, que fazem o discurso, que pode tencionar o que pensa o Alto Comando.
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