A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) ganhou um novo regimento interno nesta quinta-feira (16). O regimento foi assinado por Marco Vinicius Pereira de Carvalho – que preside a CEMPD desde agosto e é filiado ao PSL – sob o argumento de que preciso era “corrigir irregularidades” no funcionamento da comissão que tem como objetivo reconhecer como mortos políticos as vítimas da ditadura militar de 1964. Para a procuradora regional Eugênia Gonzaga, que presidia a CEMDP até ser demitida por Jair Bolsonaro, no entanto, esse novo regimento fere normas internacionais sobre direitos humanos porque reduz as atribuições da comissão e dá margem para que o governo feche o colegiado.
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Demitida após reconhecer que Fernando Santa Cruz, o pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, foi um morto político; Eugênia Gonzaga lembra que a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos foi criada por lei em 1995 e, desde então, tem atuado em três frentes diferentes: a ratificação dos atestados de óbitos dos mortos políticos da ditadura, a busca dos corpos que seguem desaparecidos e a realização de atividades que relembram os impactos do governo militar sobre os direitos humanos no Brasil. São atividades que, no entendimento da procuradora, ficam prejudicadas com as novas normas publicadas nesta quinta-feira (16) no Diário Oficial da União.
A ex-presidente da CEMDP explica que o regimento criado pelo governo de Jair Bolsonaro acaba com a emissão de atestados de óbito que reconhecem como verdadeira causa da morte das vítimas da ditadura a “perseguição violenta e política do Estado”; limita a busca dos corpos dos militantes políticos que seguem desaparecidos, mesmo passados 30 anos do fim do regime militar; e desobriga o governo de promover medidas de reparação imaterial aos familiares dessas vítimas – medidas que, no entender da procuradora, ajudam a manter viva a história da ditadura militar no Brasil.
Atestados de óbito
As normas publicadas nesta quinta-feira revoga a Resolução nº 2 de 2017, que estabelece os procedimentos “para emissão de atestados para fins de retificação de assentos de óbito das pessoas reconhecidas como mortas ou desaparecidas políticas”. Uma medida que, hoje, ainda é aguardada por mais de 100 famílias brasileiras, segundo a ex-presidente da CEMDP.
“As famílias nos procuravam muito para isso, porque tinham atestados que não informavam nem como, nem quando a pessoa morreu. E este foi o estopim da crise que levou à minha demissão. Bolsonaro me demitiu porque falou que Fernando Santa Cruz não foi demitido pelo estado, já que tem isso de recontar a história e negar os fatos”, lembrou Eugênia Gonzaga, que foi exonerada após emitir um atestado informando que a morte do pai do presidente da OAB se deu “em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado Brasileiro”.
Procurada, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos alegou que a emissão de atestados de óbito não é uma atribuição do colegiado e, por isso, vinha sendo exercida de forma errônea pela antiga gestão. “Entre as alterações, o novo regimento deu fim aos procedimentos adotados erroneamente pela comissão, como emitir atestado de óbito, o que não é uma atribuição do colegiado. As cerimônias para entrega de ‘atestados de óbito’ também foram suspensas. As declarações serão enviadas diretamente para os respectivos familiares”, disse a comissão em nota enviada ao Congresso em Foco pelo Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos.
A descrição da CEMDP que consta no site do Ministério dos Direitos Humanos, por sua vez, sugere que o reconhecimento dessas mortes políticas é uma atribuição da comissão. “A partir da Lei 10.875, de 1º de julho de 2004, os critérios para reconhecimento das vítimas da ditadura civil-militar foram ampliados e dezenas de pessoas vitimadas por agentes públicos em manifestações públicas, conflitos armados ou que praticaram suicídio na iminência de serem presas ou em decorrência de sequelas psicológicas resultantes de atos de torturam, foram reconhecidas”, diz o texto exibido na internet.
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“O governo tem o dever se fazer medidas de memória e verdade em relação aos direitos humanos, visto que o Brasil já tem condenação internacional por conta dos desaparecidos políticos. São medidas como as solenidades de entrega dos novos atestados de óbito, os encontros de familiares e as placas de registro em locais históricos. Medidas que mantêm a história viva para que não se esqueça e não se repita”, relata Eugênia Gonzaga, dizendo que esse recuo na concessão de atestados também deve acabar reduzindo a realização dessas outras medidas de memória e verdade.
Desaparecidos
O procedimento de busca dos corpos dos desaparecidos políticos também foi alterado pelo novo regimento da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. As novas normas determinam que o trabalho de reconhecimento de pessoas desaparecidas será feito apenas com base nos requerimentos que foram apresentados pelos familiares nos prazos determinados pela Lei nº 9.140, que recebeu esses pedidos durante 120 dias de 1995 e outros 120 dias de 2004.
“Outra modificação trazida pela reformulação é o fim do chamamento de familiares para protocolarem requerimentos na comissão”, informou a CEMDP, explicando que a antiga gestão mantinha um e-mail “para que os familiares protocolassem pedidos e os provocava para fazê-lo, mesmo sabendo que os prazos já estavam vencidos”.
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Eugênia Gonzaga, por sua vez, vê problemas em cumprir estritamente os prazos dessa lei. Ela alega que, na época, os familiares não foram informados de que precisavam requerer a busca dos corpos dos seus entes queridos. E diz que, por isso, é possível que não haja requerimento para todas as 150 pessoas que seguem desaparecidas desde a ditadura militar. “As famílias não foram orientadas. Então, como você limita isso agora, passados mais de 15 anos do fim desse prazo de requerimentos?”, questionou.
A procuradora ainda afirmou que esse entendimento vai contra as orientações internacionais de direitos humanos que dizem que crimes políticos como esses não prescrevem. “Desconsidera que, depois da Comissão da Verdade, outras vítimas foram reconhecidas. E desconsidera que em 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) obrigou o Brasil a fazer a reparação material e imaterial dessas famílias, inclusive com a busca dos corpos”, acrescentou.
Fim da comissão?
Para Eugênia Gonzaga, esse novo regimento abre uma brecha para que o governo acabe com a CEMDP em um futuro próximo. “Se o que vai prevalecer são os requerimentos apresentados naquele prazo, eles podem dizer daqui a um tempo que não tem mais requerimento, não tem mais trabalho a fazer. Podem aniquilar o único órgão estatal que ainda cuidava desse tema”, lamentou a procuradora, ressaltando, mais uma vez, que a não existência de requerimentos não significa a não existência de desaparecidos políticos. Ela explica que só a Comissão da Verdade, que funcionou após o prazo de registro desses requerimentos, reconheceu 434 vítimas do regime militar brasileiro e disse que era dever do Estado fazer o reconhecimento dessas mortes políticas.
A procuradora conclui, então, que o esvaziamento das atribuições da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos é um reflexo do entendimento que o presidente Jair Bolsonaro tem sobre o período militar. “Ele não admite que houve ditadura no Brasil”, lembrou.
Ela diz até que esse esvaziamento já começou desde agosto, quando foi demitida com outros membros da comissão para que nomes ligados a Bolsonaro assumissem o colegiado. São nomes que, segundo especialistas em direitos humanos, têm a mesma visão do presidente sobre a ditadura e já chegaram a homenagear militares da época como o Coronel Ustra. Um deles é o deputado Filipe Barros (PSL-PR), que ficou no lugar do deputado Paulo Pimenta (PT-RS) na comissão.
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A procuradora afirma, então, que tudo isso pode as organizações internacionais de direitos humanos a notificaram novamente o Brasil, que já foi interpelado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Organização das Nações Unidas por conta das dificuldades do reconhecimento dos mortos e desaparecidos políticos da ditadura.
Resposta
A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, que é vinculada ao Ministério de Damares Alves, por sua vez, negou quaisquer dessas intenções. Por nota, o presidente da CEMPD, Marco Vinicius Pereira de Carvalho, afirmou que o novo regimento só visa combater irregularidades para adequar a comissão à Lei 9.140/95, que criou o colegiado, estabeleceu sua competência e reconheceu como mortos os desaparecidos políticos.
“É importante para que seja dada mais transparência aos processos. Estamos adequando o regimento à lei para corrigir irregularidades que vinham sendo praticadas com base no regimento anterior, mas que não estavam previstas na lei de regência”, afirmou Carvalho.
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