O mês de junho passou sem permitir que Santo Antônio, São João e São Pedro se despedissem de mim. Desde que a sergipana Propriá aconchegou o meu recém-nascido respirar, esta foi a primeira vez em que o festivo mês de junho desafinou feito uma “sanfona velha do fole furado” nos arraiais nordestinos, sem que fosse transformada em afinadíssimo baião.
E não poderia ser diferente quando se fica saudoso da musicalidade de Luiz Gonzaga, da poesia de Patativa do Assaré, dos arraiais repletos de obras de Mestre Vitalino e Beto Pezão, dos trajes cangaceiros de Lampião e Maria Bonita, das rimas místicas em louvor a Antônio Conselheiro, Padre Cícero e Frei Damião, do apadrinhamento testemunhado pelas caseiras fogueiras e das comidas típicas recheadas de milho e mandioca.
Esta sensação de vazio sacudiu a minha forrozeira alma nordestina, obrigada a se quedar em casa em desanimado xaxado virtual. A minha e a de todas as pessoas nascidas na parte brasileira que segue resistindo, enfrentando e reagindo aos ventos autoritários que querem destruir a Constituição, a democracia e as institucionais nacionais. E que não desiste de esperançar por melhores dias, mesmo quando os fogos soltados no mês de junho não tinham como finalidade os alegres, culturais e tradicionais festejos juninos, mas sim rojões repletos de pólvoras fascistas contra a democracia e o STF.
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Pode-se até escrever, plagiando o genial cantor Flávio José, que o mês de junho de 2020 feriu a “natureza das coisas”, tanto no campo da tradicional alma festiva do jeito de ser nordestino, quanto no campo da comportamental cidadania brasileira.
Esclareço, agora, que retirei da composição de Flávio José o título desta crônica, pois – concordando com o seu autor – não devemos nos avexar, já que “a natureza não tem pressa, segue seu compasso, inexoravelmente chega lá.” Afinal, como ali registrado, musical ou cientificamente, “se avexe não, amanhã ela para na porta da sua casa. Se avexe não, que a burrinha da felicidade nunca se atrasa”. Mas não pense – “avexadamente” – que Flávio José está contrariando o baiano Raul Seixas e pedindo para ficarmos no trono de um apartamento, com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a inexorável morte chegar, contente por ter vencido na vida, agradecendo ao Senhor por ter um emprego e ser um cidadão respeitável.
Não! Não está o cancioneiro nordestino a nos dizer que as coisas acontecerão no tempo certo em que devem acontecer, queiram ou não as pessoas acomodadas, apressadas, alienadas, vanguardistas, pessimistas, alienadas e todas as outras que se enquadram em tudo ou em quase nada. Sabe ele, gonzagamente, que o seu sertão permanece ardendo, abandonado pelo presidente de plantão, deixando triste a asa branca diante de tanta judiação. Compreende que as mortes de vidas nordestinas seguem severinas, vítimas de preconceitos estruturais, como narrou com precisão o pernambucano João Cabral de Melo Neto. Mas, sobretudo, como cancioneiro de primeira grandeza, ele vivenciou, patativamente, por ter nascido em “uma terra que o povo padece, mas não esmorece e procura vencer”.
Daí o conselho musical de que a verdadeira “natureza das coisas” é de que “toda caminhada começa no primeiro passo”, pois, “seja princesa ou seja lavadeira, pra ir mais alto, vai ter que suar”. Não seria outra reação adotada para quem tem o prazer da conterraneidade com Ariano Suassuna, Aperipê, Castro Alves, Celina Guimarães, Dandara, Esperança Garcia, Evandro Lins e Silva, Fausto Cardoso, Francisco Julião, Frei Caneca, Graciliano Ramos, Helder Câmara, Luiz Gama, Luiza Mahin, João Mulungu, Jorge Amado, José de Alencar, Margarida Alves, Maria Firmina, Maria Quitéria, Nísia Floresta, Rui Barbosa, Serigy, Violante Bivar, Tobias Barreto, Zumbi e tantas outras pessoas que cunharam com sangue, suor e lágrimas a alma sertaneja. “Amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada”, mas não há outro caminho a ser trilhado senão aquele já traçado pelo paraibano Geraldo Vandré, quando enfrentada e derrotada a ditadura civil-militar instalada em 1964: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer.”
Seguindo a natureza das coisas, a sociedade retomou – nas ruas, nas redes sociais, nas pesquisas, nos movimentos sociais e em incontáveis manifestos – o seu acolhimento à democracia como posta na Constituição Federal. Vozes abalizadas já pedem o afastamento e/ou impeachment do presidente plantonista. A unidade começa a ser palavra de ordem em cada canto e recanto do país. Eu a escuto com o meu assumido sotaque nordestino: Se avexe não, já demos o primeiro passo. Se avexe não, a democracia é o compasso. Se avexe não, a luta tem meu abraço. Se avexe não, o seu ódio não tem espaço. Se avexe não, o fascismo não tem morada. Se avexe não, a lagarta já criou asas.
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